São Paulo, sábado, 17 de novembro de 2001

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RESENHA DA SEMANA

Analogias e premonições

BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA

Para quem tem referências básicas da literatura contemporânea de língua alemã, "Austerlitz", o quarto e mais recente romance de W.G. Sebald, cuja edição inglesa acaba de ser publicada, pode parecer à primeira vista um pastiche dos livros de Thomas Bernhard.
O discurso narrativo embutido dentro de outro discurso narrativo ("...assim nos contou Ashman, disse Austerlitz..." etc.) é uma marca registrada de Bernhard. Como nos romances do escritor austríaco, "Austerlitz" é uma narrativa de "segunda mão", resultado do encontro do narrador com o personagem que lhe conta a história. Para completar, Sebald cita Wittgenstein e tem uma obsessão pela arquitetura tão intensa quanto a de Bernhard em seu romance "Correções". A diferença diz respeito ao significado. A arquitetura aqui é "uma espécie de metafísica histórica".
Austerlitz é um historiador da arquitetura. O narrador o conhece, por acaso, na sala de espera da estação de trens de Antuérpia e daí em diante outros encontros ao longo dos anos permitem que o personagem prossiga lhe contando o progresso de sua investigação sobre o próprio passado.
Austerlitz não sabe de onde veio. Só descobriu o verdadeiro nome quando já era adolescente. Foi adotado quando criança, no início da Segunda Guerra, por um pastor calvinista e sua mulher, que viviam isolados no interior do País de Gales. Não conhece nada anterior à sua adoção. Em sua observação da arquitetura, Austerlitz termina por associá-la à sua história pessoal. Sua relação com os prédios e monumentos lhe provoca premonições sobre as suas origens. Aos poucos, por uma série de intuições diante de obras arquitetônicas, ele vai descobrir que os verdadeiros pais eram tchecos e dará início à sua busca entre Praga e Paris.
Nascido na Alemanha, em 1944, W.G. Sebald se instalou na Inglaterra em 1970. É professor de literatura. Influenciado por Borges, seus romances são como paródias de ensaios. Sebald usa fotografias para ilustrar o texto, como documentos, provas. São em geral fotografias pessoais ou aleatórias, de lugares por onde passou ou recolhidas ao longo dos anos. E é aí que emerge o humor, a ironia e o drama.
Num tempo em que o leitor costuma dar mais crédito ao romance que se diz baseado em fatos reais e que lhe dá a ilusão de uma realidade por trás da ficção, seja histórica ou (auto)biográfica, Sebald faz a paródia das duas. Usa elementos de ambas para subvertê-las. Austerlitz tenta tirar da arquitetura uma resposta e uma compensação para a sua falta de memória. Um dos temas centrais do romance é a relação nebulosa entre memória e imaginação, o que é lembrado e o que é imaginado, e a difícil fronteira entre os dois.
"Fiquei ali sentado por meia hora, até a partida do meu trem, tentando abrir o meu caminho de volta pelas décadas, lembrar como, ao ser carregado nos braços de Agáta - pelo que Vera me contou, disse Austerlitz -, estiquei o pescoço, incapaz de despregar os olhos da abóbada que se estendia pela vastidão das alturas acima de nós."
O esforço da memória leva Austerlitz à imaginação. Para ele, os efeitos são sempre o oposto da vontade que lhes deu origem. Os planos, quando postos em prática, tornam-se o contrário do que havia sido planejado; as imagens, em vez de revelar, se dissolvem ao aparecer; a busca da estabilidade produz instabilidade; a filantropia acaba reduzindo os beneficiários a vítimas; a história parece abolir o tempo, e os monumentos são as construções das suas próprias ruínas.
Sua metafísica, baseada numa estranha analogia entre as formas arquitetônicas e urbanísticas e os estados da consciência e do conhecimento humano, também lhe permite ver na arquitetura o lugar da simultaneidade, onde o passado, o presente e o futuro convivem imbricados. Ao entrar nos prédios, ele é transportado para o passado e projetado para o futuro, numa combinação de imaginação e premonição.
Na arquitetura, o passado dos outros que por ali passaram se revela também como passado do indivíduo ali inserido no presente, uma espécie de inconsciente coletivo, como se os mortos e os vivos estivessem de alguma forma ligados, elementos intercambiáveis de uma expressão a todos abrangente, a que se costuma dar o nome de ficção.


Austerlitz
    
Autor: W.G. Sebald
Tradução para o inglês: Anthea Bell
Editora: Hamish Hamilton
Quanto: US$ 25,95 (416 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com




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