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RESENHA DA SEMANA
Analogias e premonições
BERNARDO CARVALHO
COLUNISTA DA FOLHA
Para quem tem referências
básicas da literatura contemporânea de língua alemã,
"Austerlitz", o quarto e mais recente romance de W.G. Sebald,
cuja edição inglesa acaba de ser
publicada, pode parecer à primeira vista um pastiche dos livros de Thomas Bernhard.
O discurso narrativo embutido dentro de outro discurso
narrativo ("...assim nos contou
Ashman, disse Austerlitz..." etc.)
é uma marca registrada de Bernhard. Como nos romances do
escritor austríaco, "Austerlitz" é
uma narrativa de "segunda
mão", resultado do encontro do
narrador com o personagem
que lhe conta a história. Para
completar, Sebald cita Wittgenstein e tem uma obsessão pela arquitetura tão intensa quanto a de Bernhard em seu romance "Correções". A diferença diz
respeito ao significado. A arquitetura aqui é "uma espécie de
metafísica histórica".
Austerlitz é um historiador da
arquitetura. O narrador o conhece, por acaso, na sala de espera da estação de trens de Antuérpia e daí em diante outros
encontros ao longo dos anos
permitem que o personagem
prossiga lhe contando o progresso de sua investigação sobre
o próprio passado.
Austerlitz não sabe de onde
veio. Só descobriu o verdadeiro
nome quando já era adolescente. Foi adotado quando criança,
no início da Segunda Guerra,
por um pastor calvinista e sua
mulher, que viviam isolados no
interior do País de Gales. Não
conhece nada anterior à sua
adoção. Em sua observação da
arquitetura, Austerlitz termina
por associá-la à sua história pessoal. Sua relação com os prédios
e monumentos lhe provoca premonições sobre as suas origens.
Aos poucos, por uma série de
intuições diante de obras arquitetônicas, ele vai descobrir que
os verdadeiros pais eram tchecos e dará início à sua busca entre Praga e Paris.
Nascido na Alemanha, em
1944, W.G. Sebald se instalou na
Inglaterra em 1970. É professor
de literatura. Influenciado por
Borges, seus romances são como paródias de ensaios. Sebald
usa fotografias para ilustrar o
texto, como documentos, provas. São em geral fotografias
pessoais ou aleatórias, de lugares por onde passou ou recolhidas ao longo dos anos. E é aí que
emerge o humor, a ironia e o
drama.
Num tempo em que o leitor
costuma dar mais crédito ao romance que se diz baseado em fatos reais e que lhe dá a ilusão de
uma realidade por trás da ficção,
seja histórica ou (auto)biográfica, Sebald faz a paródia das
duas. Usa elementos de ambas
para subvertê-las. Austerlitz
tenta tirar da arquitetura uma
resposta e uma compensação
para a sua falta de memória. Um
dos temas centrais do romance é
a relação nebulosa entre memória e imaginação, o que é lembrado e o que é imaginado, e a
difícil fronteira entre os dois.
"Fiquei ali sentado por meia
hora, até a partida do meu trem,
tentando abrir o meu caminho
de volta pelas décadas, lembrar
como, ao ser carregado nos braços de Agáta - pelo que Vera
me contou, disse Austerlitz -,
estiquei o pescoço, incapaz de
despregar os olhos da abóbada
que se estendia pela vastidão das
alturas acima de nós."
O esforço da memória leva
Austerlitz à imaginação. Para
ele, os efeitos são sempre o
oposto da vontade que lhes deu
origem. Os planos, quando postos em prática, tornam-se o contrário do que havia sido planejado; as imagens, em vez de revelar, se dissolvem ao aparecer; a
busca da estabilidade produz
instabilidade; a filantropia acaba
reduzindo os beneficiários a vítimas; a história parece abolir o
tempo, e os monumentos são as
construções das suas próprias
ruínas.
Sua metafísica, baseada numa
estranha analogia entre as formas arquitetônicas e urbanísticas e os estados da consciência e
do conhecimento humano,
também lhe permite ver na arquitetura o lugar da simultaneidade, onde o passado, o presente e o futuro convivem imbricados. Ao entrar nos prédios, ele é
transportado para o passado e
projetado para o futuro, numa
combinação de imaginação e
premonição.
Na arquitetura, o passado dos
outros que por ali passaram se
revela também como passado
do indivíduo ali inserido no presente, uma espécie de inconsciente coletivo, como se os mortos e os vivos estivessem de alguma forma ligados, elementos intercambiáveis de uma expressão
a todos abrangente, a que se costuma dar o nome de ficção.
Austerlitz
Autor: W.G. Sebald
Tradução para o inglês: Anthea Bell
Editora: Hamish Hamilton
Quanto: US$ 25,95 (416 págs.)
Onde encontrar: www.amazon.com
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