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CONTARDO CALLIGARIS
O mundo como nação
O Perserec (Personnel Security Research, em Monterey, Califórnia) é um centro de
pesquisa em segurança empresarial e institucional.
Acabo de ler um relatório recente do Perserec: "Technological,
Social, and Economic Trends that
are Increasing U.S. Vulnerability
to Insider Espionage" (tendências
tecnológicas, sociais e econômicas
que aumentam a vulnerabilidade
dos EUA à espionagem interna;
www.fas.org/sgp/othergov/
dod/).
O relatório começa salientando
os aspectos do mundo atual que
facilitam o trabalho do espião:
possibilidade de digitalizar as informações, ampliação do mercado das informações (mais concorrentes ou países querendo comprar), internacionalização do comércio e da ciência com aumento
de contatos do pessoal com concorrentes e estrangeiros, expansão da internet (facilidade da
transmissão e do anonimato na
correspondência).
A seguir, são examinadas as
motivações dos espiões. Constata-se que, cada vez mais, os americanos vivem crises financeiras pessoais produzidas por seus hábitos
"agressivamente consumistas".
Talvez por causa dessas crises, a
prática compulsiva do jogo está
aumentando. As dívidas são fontes prováveis de motivação para a
espionagem.
Enfim, o texto chega às três
questões seguintes.
1) Diminuiu a lealdade institucional. As empresas obedecem
brutalmente às necessidades do
mercado, racionalizando, transferindo, demitindo. Os funcionários mudam de empresa segundo
seu interesse econômico e suas
ambições. Acaba o mito da empresa como família e a sensação
de pertencer a uma comunidade
de trabalho.
2) Fato relevante para as repartições públicas, um número crescente de americanos tem laços étnicos com outros países. Isso sempre foi o caso nos EUA, mas a facilidade das comunicações faz com
que o imigrante não seja obrigado a queimar os barcos. Telefonar
"para casa" (justamente, qual
"casa"?) sai de graça ou quase, e
viajar a cada ano para o país de
origem está ao alcance da pequena classe média. Conseqüência:
nos novos imigrantes, o sentimento de pertencer à nação americana pode ser dúbio e conflituoso. A
permissão de manter uma dupla
nacionalidade é mais a expressão
do que a causa dessa situação.
3) Um número crescente de
americanos vêem o mundo como
uma sociedade global, de pessoas
e grupos interdependentes, e não
como um teatro em que se afrontariam "nações". Um cidadão pode se tornar espião para servir o
interesse superior da "comunidade mundial". É citado o caso de
Ana Montes, uma analista do serviço de informações do Ministério
da Defesa que transmitiu dados
sigilosos para Cuba. Montes não
era comunista nem filocubana,
mas se sentia "moralmente obrigada" a agir para "promover a
tolerância e a cooperação em nossa única pátria, que é o mundo".
Sem querer, o relatório mostra
que um suposto mal-estar da dita
pós-modernidade (o sentimento
de não pertencer a quase nada) é
apenas a realização de um dos
maiores sonhos da modernidade.
Explico. Uma grande idéia moderna diz que, se nós nos concebermos como agentes econômicos
(como produtores, trabalhadores
etc., e não como membros de tribos e clubes), passaremos a reconhecer a igualdade de todos: a espécie humana será nosso povo e o
mundo, nossa pátria.
Esse sonho atravessa tanto o
iluminismo francês quanto o anglo-saxão. A idéia marxista do internacionalismo proletário não
tem outra origem.
Pois bem, ao que parece, o iluminismo está funcionando. Aos
poucos, a espécie humana em sua
diversidade começa a nos aparecer como um povo só e o planeta
como uma única grande nação.
É normal que isso incomode a
segurança nacional de qualquer
país e, no caso, a dos EUA, mas,
de uma certa forma, o que está
acontecendo é um efeito do próprio projeto americano. As Américas, esquecendo seus pecados
originais (extermínios dos índios
e escravatura), prefiguram o sonho moderno do mundo como
pátria, por serem o lugar onde vivem sociedades compostas pela
imigração de etnias, fés e passados diferentes.
Estamos longe do declínio final
das nações. Há os que protegem
sua identidade de grupo semeando bombas. Há os que erigem barreiras comerciais para privilegiar
sua nação. Há os que seguem
acreditando nas seleções nacionais, embora sejam compostas
por jogadores que vivem e criam
filhos em vários outros países. E,
claro, há os que confundem seu
país com o mundo-pátria (como
se já existisse) e se arrogam o direito de serem os gendarmes de
todos.
No entanto, ao ler o relatório,
parece que a verdadeira crise que
ameaça hoje o "império" é a realização de seu próprio sonho: a
nação composta por sujeitos do
mundo inteiro se identifica com
um mundo em que a idéia de nação perde sentido. Com isso, ela
pode se desfazer como nação.
Nota. Sobre a crise em curso na
França, talvez reste prever que ela
não encontrará solução na integração "nacional" dos jovens de
ascendência árabe. Pelo passivo
histórico e pelas paixões em jogo
(décadas de retórica da nação
árabe e séculos de retórica da nação francesa), a crise só poderá ser
resolvida na perspectiva (longínqua) de um mundo que seja a pátria de todos.
@ - ccalligari@uol.com.br
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