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Mídia dos EUA é racista, acusa cineasta
Para Winterbottom, de "O Caminho para Guantánamo", imprensa duvida dos protagonistas de seu filme por eles serem muçulmanos
Obra que estréia hoje mistura ficção e realidade
para contar a história de três
jovens ingleses detidos sem
acusação na prisão dos EUA
LUCIANA COELHO
EDITORA-ADJUNTA DE MUNDO
Acordar as pessoas do torpor
político que tomou parte do
mundo quanto à guerra ao terror de George W. Bush era a
meta do diretor britânico Michael Winterbottom com seu
"O Caminho para Guantánamo", que estréia hoje no país.
Para tanto, o cineasta, que
costuma mesclar realidade e
ficção, decidiu contar a história
dos Três de Tipton -três jovens muçulmanos britânicos
detidos durante quase dois
anos por militares americanos
sem nenhuma acusação.
Munido de horas de depoimento, Winterbottom reproduziu na tela a história que Shafiq, Ruhel e Asif lhe contaram,
desde outubro de 2001, quando
deixaram Tipton (reduto de
imigrantes islâmicos no centro
da Inglaterra) rumo ao Paquistão para o casamento de Asif,
até março de 2004, quando saíram de Guantánamo.
Apesar do limbo legal dos
mais de 400 "combatentes inimigos" detidos na prisão dos
EUA em Cuba ser um dos principais alvos das críticas ao governo Bush, foi a versão de como os Três de Tipton acabaram
presos o que mais atraiu a atenção da mídia americana ao falar
do filme. "Racismo" é a leitura
de Winterbottom. "Se fossem
três cristãos brancos que tivessem ido para algum país para
ajudar quem precisasse, ninguém ia achar que eles estavam
mentindo", disse o cineasta.
A seguir, trechos da entrevista do diretor à Folha, feita por
telefone, de Nova Déli (Índia),
onde filma "A Mighty Heart".
FOLHA - Como trabalhar simultaneamente com ficção e realidade?
MICHAEL WINTERBOTTOM - Isso
muda de filme para filme. Por
exemplo, em "A Festa Nunca
Termina" queríamos contar
histórias reais, que as pessoas
tivessem a sensação de que
aconteceram, mas ao mesmo
tempo tínhamos um compromisso um pouco mais frouxo
com os fatos, o importante era
narrar a experiência. Já em "O
Caminho para Guantánamo" a
idéia era que essas três pessoas
passaram por isso, e nós tentamos contar sua história. Em vários sentidos foi bem simples:
eles nos contavam o que havia
acontecido, e nós tentávamos
fazer disso um filme.
FOLHA - Uma reconstituição?
WINTERBOTTOM - Exatamente. E
eu não estou falando de uma
versão ficcionalizada da história. Nós nos ativemos ao que
eles disseram, não tentamos
criar um tipo X de personagem
nem momentos dramáticos.
FOLHA - Como você decidiu filmar
a história dos Três de Tipton?
WINTERBOTTOM - Quando foram
soltos, contatamos o advogado
deles. Nossas conversas duraram uns seis meses até que os
três topassem a idéia. Então fomos até a casa deles e praticamente vivemos com eles por
um mês -todos os dias íamos lá
e gravávamos os depoimentos.
Depois, tínhamos horas de gravação e cerca de 400 páginas de
transcrições com a versão deles
dos fatos. Isso virou uma espécie de manuscrito do filme.
FOLHA - A reconstituição foi baseada somente nesses depoimentos?
WINTERBOTTOM - Houve outros
testemunhos que acabaram
ajudando a contextualizar, como um livro escrito por um interrogador americano que foi
responsável por eles em Candahar. Também para filmar a
operação no Afeganistão tínhamos imagens reais de telejornais da época. Da mesma forma, para Guantánamo, também tínhamos muita filmagem
de arquivo oficial para reconstituir exatamente como ela é.
FOLHA - Ainda assim, houve críticas na imprensa ao fato de você ter
baseado o filme na versão deles.
WINTERBOTTOM - Quanto a
questionarem a versão deles
para ir para o Afeganistão, para
mim é impossível dizer exatamente o que aconteceu. Você
tem três pessoas que dizem que
foram até Karachi, ouviram numa mesquita que irmãos muçulmanos precisavam de ajuda
no Afeganistão e decidiram ir
para lá. Eu estava nessa mesma
época no Paquistão e absolutamente todo mundo com quem
eu falava achava que, como
bom muçulmano, deveria ajudar seus irmãos no Afeganistão.
A idéia de que você precisa ser
um radical ou um extremista
para fazer isso é uma besteira.
FOLHA - Como você acha que essa
experiência os afetou?
WINTERBOTTOM - Só os conheci
depois, mas eles dizem ter descoberto com tudo isso uma religiosidade que não tinham.
FOLHA - Cinco anos após o 11 de
Setembro, as platéias estão mais
sensíveis a esse tipo de história?
WINTERBOTTOM - Tenho dúvidas. Normalmente eu vinha
conseguindo reações positivas,
mas quando mostrei o filme
nos EUA, para jornalistas, havia essa inferência de que eles
[os Três de Tipton] deveriam
estar mentindo. Que para estar
lá os caras tinham de ser terroristas, porque afinal a América
tem de combater as pessoas
más [fala de Bush reproduzida
no filme], logo eles são pessoas
más. Foi deprimente.
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