São Paulo, sexta-feira, 17 de novembro de 2006

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CARLOS HEITOR CONY

O lobo bom e a menina má

Como ficar em paz sabendo que uma velha e uma menina má irão sacrificar um Lobo Bom?

ESTOU DEITADO na rede, vendo o domingo passar lá fora, sobre as águas da Lagoa. São fossentas essas tardes dominicais.
Mas duas crianças salvam a minha lavoura. Estão de visita, brincaram lá no fundo, num quarto de bagunça que mantenho ao lado da despensa.
Cansadas, vieram para a sala, me viram em posição posta de sossego e pularam para dentro da rede, pedindo-me uma história. Aleguei preguiça, não sabia nenhuma história. Mas elas me deram a dica:
- Conte a história do Lobo Mau.
Não sei por que, esta historinha da Chapeuzinho Vermelho ainda descola excelente ibope entre crianças da nova fornada. Já tentaram me explicar o lado libidinoso da fábula, mas não creio muito nesses babados. A verdade é que a história, tecnicamente, continua perfeita.
Evidente que não ia encher as crianças com essas considerações. O desafio era contar ou não contar a história. Optei por uma alternativa:
- Tá bem, vou contar a história, mas não a do Lobo Mau. Prefiro contar a história do "Lobo Bom e da Menina Má".
- O quê?, perguntou uma das crianças. Isso é mentira! O lobo é que é mau!
- Não. Na minha história, é diferente. Veja só.
E comecei. A família do Lobo vivia quieta numa casa modesta, perto da floresta. Todos os dias, o Lobo Pai saía para procurar comida, frutas, leite e voltava à tarde, cansado da faina e dos riscos que enfrentava. Um dia, a tarde caiu e o Lobo Pai não voltou. A Loba Mãe, preocupada, começou a chorar.
O Lobinho Bom tentou consolar a mãe: acontecera um imprevisto qualquer, logo o pai chegaria com a comida. Mas a noite caiu e nada do Lobo Pai aparecer. A Loba Mãe caiu em prantos: "Vai ver que os ferozes caçadores da floresta mataram seu pai!". Aí, as duas crianças me interromperam dizendo que os caçadores não eram maus, eram salvadores da pátria.
Continuei. O Lobinho Bom colocou um chapeuzinho amarelo na cabeça e, sem que a mãe soubesse, saiu pela floresta procurando o pai. Perdeu-se nos inúmeros atalhos da mata, somente de manhãzinha encontrou uma casinha muito bonita, com um jardinzinho em frente. Bateu lá, a fim de saber se tinham visto um lobo assim assim. Era o seu pai que não havia voltado para casa.
Uma menina de chapéu vermelho na cabeça começou a rir do lobinho. Depois, chamou uma velha que era sua avó e disse:
- Veja, vovó, esse otário está procurando pelo lobo que ontem matamos e comemos!
Lobinho Bom não acreditou no que ouviu. Então, aquela menina tão bonitinha, com um chapéu vermelho na cabeça, seria capaz de tamanha maldade? Ainda por cima, a sua avó, de óculos no meio do nariz, teria a coragem de matar e comer um Lobo Bom, que era arrimo de família?
A velha, pervertida pelo tempo, começou a salivar: "Vamos pegar esse lobinho. Ele é mais tenrinho, o de ontem estava meio duro, não deu bom caldo! Tive que tomar um Alka-seltzer para digerir aquele velho".
Aí, a Menina Má sorriu para o Lobinho bom e o convidou para que ele entrasse em sua casa para ver se podiam fazer alguma coisa para ressuscitar o Lobo Bom. O Lobinho acreditou na menina e entrou na casa, mas não reparou que a menina tinha um laço na mão.
Quando percebeu que ia ser laçado, o Lobinho Bom começou a chorar e pedir clemência. O que seria de sua mãe, que agora ficaria sozinha? A velha já estava no fogão, fazendo a vinha d'alhos para temperar o lobinho. E aí...
E aí, as duas meninas me olharam com seriedade. Uma delas foi grosseira:
- Basta! Não quero mais esta história. Está toda errada! Você não sabe nada.
Pulou da rede. A outra fez o mesmo, em silêncio, um silêncio que me condenava. Voltaram para o quarto dos fundos e me deixaram em paz.
Quer dizer, quem pode ficar em paz sabendo que um Lobinho Bom será imolado e que uma velha degenerada, salivada e cúpida e uma menina de chapeuzinho vermelho, muito fingida e má, já preparam o altar do seu sacrifício?


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