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CARLOS HEITOR CONY
O lobo bom e a menina má
Como ficar em paz sabendo que uma velha e uma menina má irão sacrificar um Lobo Bom?
ESTOU DEITADO na rede, vendo
o domingo passar lá fora, sobre as águas da Lagoa. São
fossentas essas tardes dominicais.
Mas duas crianças salvam a minha
lavoura. Estão de visita, brincaram
lá no fundo, num quarto de bagunça
que mantenho ao lado da despensa.
Cansadas, vieram para a sala, me
viram em posição posta de sossego e
pularam para dentro da rede, pedindo-me uma história. Aleguei preguiça, não sabia nenhuma história. Mas
elas me deram a dica:
- Conte a história do Lobo Mau.
Não sei por que, esta historinha da
Chapeuzinho Vermelho ainda descola excelente ibope entre crianças
da nova fornada. Já tentaram me explicar o lado libidinoso da fábula,
mas não creio muito nesses babados. A verdade é que a história, tecnicamente, continua perfeita.
Evidente que não ia encher as
crianças com essas considerações. O
desafio era contar ou não contar a
história. Optei por uma alternativa:
- Tá bem, vou contar a história,
mas não a do Lobo Mau. Prefiro contar a história do "Lobo Bom e da Menina Má".
- O quê?, perguntou uma das
crianças. Isso é mentira! O lobo é
que é mau!
- Não. Na minha história, é diferente. Veja só.
E comecei. A família do Lobo vivia
quieta numa casa modesta, perto da
floresta. Todos os dias, o Lobo Pai
saía para procurar comida, frutas,
leite e voltava à tarde, cansado da
faina e dos riscos que enfrentava.
Um dia, a tarde caiu e o Lobo Pai não
voltou. A Loba Mãe, preocupada, começou a chorar.
O Lobinho Bom tentou consolar a
mãe: acontecera um imprevisto
qualquer, logo o pai chegaria com a
comida. Mas a noite caiu e nada do
Lobo Pai aparecer. A Loba Mãe caiu
em prantos: "Vai ver que os ferozes
caçadores da floresta mataram seu
pai!". Aí, as duas crianças me interromperam dizendo que os caçadores não eram maus, eram salvadores
da pátria.
Continuei. O Lobinho Bom colocou um chapeuzinho amarelo na cabeça e, sem que a mãe soubesse, saiu
pela floresta procurando o pai. Perdeu-se nos inúmeros atalhos da mata, somente de manhãzinha encontrou uma casinha muito bonita, com
um jardinzinho em frente. Bateu lá,
a fim de saber se tinham visto um lobo assim assim. Era o seu pai que
não havia voltado para casa.
Uma menina de chapéu vermelho
na cabeça começou a rir do lobinho.
Depois, chamou uma velha que era
sua avó e disse:
- Veja, vovó, esse otário está procurando pelo lobo que ontem matamos e comemos!
Lobinho Bom não acreditou no
que ouviu. Então, aquela menina tão
bonitinha, com um chapéu vermelho na cabeça, seria capaz de tamanha maldade? Ainda por cima, a sua
avó, de óculos no meio do nariz, teria
a coragem de matar e comer um Lobo Bom, que era arrimo de família?
A velha, pervertida pelo tempo,
começou a salivar: "Vamos pegar esse lobinho. Ele é mais tenrinho, o de
ontem estava meio duro, não deu
bom caldo! Tive que tomar um Alka-seltzer para digerir aquele velho".
Aí, a Menina Má sorriu para o Lobinho bom e o convidou para que ele
entrasse em sua casa para ver se podiam fazer alguma coisa para ressuscitar o Lobo Bom. O Lobinho
acreditou na menina e entrou na casa, mas não reparou que a menina tinha um laço na mão.
Quando percebeu que ia ser laçado, o Lobinho Bom começou a chorar e pedir clemência. O que seria de
sua mãe, que agora ficaria sozinha?
A velha já estava no fogão, fazendo a
vinha d'alhos para temperar o lobinho. E aí...
E aí, as duas meninas me olharam
com seriedade. Uma delas foi grosseira:
- Basta! Não quero mais esta história. Está toda errada! Você não sabe nada.
Pulou da rede. A outra fez o mesmo, em silêncio, um silêncio que me
condenava. Voltaram para o quarto
dos fundos e me deixaram em paz.
Quer dizer, quem pode ficar em
paz sabendo que um Lobinho Bom
será imolado e que uma velha degenerada, salivada e cúpida e uma menina de chapeuzinho vermelho,
muito fingida e má, já preparam o altar do seu sacrifício?
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