São Paulo, quarta-feira, 17 de novembro de 2010

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MARCELO COELHO

Diamantes no escuro


A realidade daquele lugar parece tirada das mais esquisitas profundezas do mundo de Guimarães Rosa


O PAI está morrendo, no fundo de um casebre escuro. Chama o filho, com voz fraca: precisa revelar-lhe um segredo. Mas o rapaz tem medo de chegar perto. Fica parado no batente da porta, respondendo apenas: "Sinhô?... Sinhô?".
O velho morre, sem contar ao filho o que queria. O lugar é de garimpo, no norte de Minas, e o segredo (dizem) só podia ser um: o velho tinha achado, muitos anos atrás, um diamante enorme. Enterrara-o, perto de um bananal. E tinha querido revelar o tesouro para o filho.
"Mas por que o velho deixou o diamante enterrado tanto tempo?", pergunta um dos realizadores do filme, que se chama "Terra Deu, Terra Come" e está em cartaz no Espaço Unibanco.
A resposta não tem mistério. "Tinha medo que matassem ele." Cobiça, inveja, maldade, avareza. Há feiticeiros também.
Outros garimpeiros, ficamos sabendo, tinham o mesmo hábito. Na ausência de herdeiros diretos, preferiam enterrar as pedras a deixá-las nas mãos de algum amigo, vizinho ou parente distante. Tesouros de fazendeiros, tesouros de escravos.
O documentário de Rodrigo Siqueira, premiado no festival É Tudo Verdade, desenterra histórias e personagens de um cafundó a muitas léguas de Diamantina.
Foi lançado em 2009, mas a realidade material e cultural daquele lugar parece tirada das profundezas mais antigas e esquisitas de Guimarães Rosa (1908-1967).
A fala dos personagens precisa sempre de legenda e surge grossa de um aluvião arcaico. Fantasmas e assombrações não "aparecem": "representam", diz o principal personagem do filme, para quem tiver "esprito forte".
Um crítico erudito, se lesse em Guimarães Rosa o verbo "representar" no sentido de "aparecer", diria que o escritor introduziu no texto um contrabando de filosofia alemã.
"Vorstellen", no jargão idealista, ou seja, "pôr na frente" (vor-stellen), significa exatamente ter de um objeto alguma representação mental.
Mas quem usa o termo é um negro de 81 anos, de uma família em que ninguém "é sabido". A comunidade em que vive, de descendentes de escravos, esquece aos poucos os cânticos e rituais fúnebres que, com muita ironia mineira, e um senso de surrealismo moderníssimo, serão "representados" diante da câmera.
Câmera que, na outra família da vizinhança, esta de brancos, descendentes dos antigos senhores de escravos, mas igualmente miseráveis hoje em dia, será objeto de estranheza. "Coisa do sujeito", diz o velho Pedro Pessanha, ou melhor, seu Pidirim Pessanha.
O "sujeito" é o Diabo, com quem não é difícil entrar em conluio. Há quem tenha "parte inteira" com ele, e quem tenha só "meia parte".
Os que têm "parte inteira" não se enterram. O "sujeito" vem e leva o corpo antes do funeral. Daí a necessidade de rituais próprios, com as surpresas que a excelente montagem do documentário irá deixar para o final.
"Terra Deu, Terra Come": o título do filme se refere, assim, tanto às pedras preciosas quanto aos cadáveres, que parecem estar sempre curvando para baixo as pessoas daquele lugar. Prende-as, também, a lembrança do passado.
Houve dias de descobrir muita "canjica", como chamam os diamantes. Vendidos, claro, a preço ínfimo. Seu Pidirim, mais amargo, culpa os próprios garimpeiros.
A alegria de descobrir as pedras dava-lhes a ilusão de contarem com a proteção divina. Acontecia-lhes também de já irem tratar da venda meio "bicudos", isto é, bêbados.
Numa vida tão exposta ao acaso das descobertas, à traição das emboscadas e à desaparição quase que mágica do dinheiro recebido, é natural que a presença do Diabo seja tão constante. Quem enriquece talvez seja pactário; quem mata pode ser homem de bem.
E quem terá coragem de enfrentar um encontro com os mortos? O diamante continua escondido na terra, símbolo do medo e da inibição de um filho diante do pai que está morrendo. Fica lá, diz alguém, "como um botão de mágoa".
O descendente de escravos, enquanto isso, brinca de receber espíritos, cobre-se de uma máscara africana, feita de papelão e fita isolante preta, e tira, da escuridão de Minas, da escuridão do Brasil, um diamante feito de pura imaginação e fingimento. Perdido no meio do nada, recria um mito da ausência e da presença, da retribuição e da avareza, do enriquecimento e da miséria.

coelhofsp@uol.com.br



AMANHÃ NA ILUSTRADA:
Contardo Calligaris



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