São Paulo, Sexta-feira, 17 de Dezembro de 1999


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CARLOS HEITOR CONY
A mania de dar nome às coisas e pessoas

Não há referência explícita em nenhum livro, sagrado ou profano, de que Deus tenha chamado Adão logo após tê-lo feito de barro e sopro, dando-lhe o privilégio de ser o primeiro a nomear as coisas do mundo também recém-criado. Apesar disso, em todos os povos e línguas, surgiu a lenda que explica porque árvore se chama árvore, água se chama água, céu se chama céu e por aí vai.
Como todo criador, Deus limitou-se a criar, fez tudo, o dia e a noite, o céu e os mares. Mas o furor criativo era tal e tanto que ele não teve imaginação, vontade ou tempo para dar nomes aos bois que ia criando. Deixou essa tarefa para o homem, uma vez que para o homem fazia diferença ser dia ou noite, pisar em terra, comer lagartixa ou maçã.
E foi assim que todas as coisas, anônimas até então, foram desfilando diante da dupla, Deus e Homem. E o homem foi nomeando tudo o que via: galinha, porco, estrela, vento, nuvem, pedra, passarinho, cobra, terra, sol. E tudo o que sentia: frio, medo, fome, sono etc.
Os nomes pegaram. Mais tarde, à medida que inventaram o gramofone, a aspirina, o e-mail e a camisinha, outros homens entraram na jogada, mas tendo como base, como chassi da linguagem, os nomes fundamentais lançados, inventados ou adaptados pelo primeiro homem. Inclusive o nome "mulher", que foi invenção sua, pois, quando Deus teve a infeliz idéia de criá-la, pensou em dar uma "companheira" ao homem, e não uma mulher.
Examinando-se em perspectiva essa primeira função do primeiro homem, até que ele se saiu razoavelmente bem. Eu discordo, por exemplo, de algumas palavras, como "galinha", que não devia ser galinha, que é diminutivo feminino de galo. E "farinha" seria o que em relação a faro? Sem falar na bruta confusão entre "supositório" e "suposição". Enfim, nada é perfeito, e mesmo Adão, antes da queda, podia ser o rei da criação, mas não o rei da cocada preta.
Acontece que, alguns séculos depois, uma espécie de cronista social da antiguidade, vivendo na complicada corte do Império Romano, achou que era o novo Adão e começou a dar nome às coisas que ainda não tinham nome. Foi Petrônio, que passou à história como Petronius Arbiter, em vernáculo, Petrônio Árbitro.
Ele decidia o que os patrícios deviam dizer, pensar e fazer. Separava o bem do mal, isto serve e aquilo não serve, a toga deve ir até o tornozelo ou até o joelho, a mulher deve estar por baixo e por cima no ato sexual. E outras coisas assim.
Petrônio teve sucessores que, com as modificações tecnológicas dos meios de comunicação, sobrevivem hoje na mídia como jornalistas, colunistas, cronistas, animadores de auditório, âncoras de TV e toda uma fauna afim. Uns pelos outros, são os novos Petrônios, ou melhor, tentam ser o novo Adão que nomeia as coisas e sabe distinguir uma galinha de um elefante, um elefante de um rio, um rio de uma barata.
Neste final de ano, os novos Petrônios estão excitadíssimos, procurando nomear coisas do passado que já foram nomeadas. E palpitar sobre coisas do futuro que ainda não existem e por isso estão isentas de nomeação.
Vejo as listas disso e daquilo que todas as semanas são divulgadas. Os Petrônios são mais ou menos parecidos entre si. Alguns deles são cultos, outros incultos. Mesmo assim, decidem sobre os melhores e piores com uma desenvoltura que Adão não teve quando, ao lado do Criador, e por delegação do próprio, podia chutar o que quisesse sem ser contraditado.
Outro dia, vi uma lista sobre os melhores e piores momentos do século que acaba. Houve quem votasse como melhor a batida do violão do João Gilberto. E outro que considerou o traseiro da Carla Perez um insulto ao Brasil e à humanidade.
De minha parte, recusei fazer esse tipo de lista (fiz e me arrependi, no início do ano, de uma relação de livros, mas fiquei sem saber a diferença entre o 75º e o 76º livro mais importante dos últimos cem anos), daí que me distraio quando leio que entre as coisas abomináveis do nosso tempo estão os campos de extermínio dos nazistas, a bomba de Hiroshima, a Aids e a Adriane Galisteu.
Conheço em linhas gerais os jurados que se investem da função de novo Adão. Tem gente que seria reprovada num simples ditado, um ditado na base do "Ivo viu a uva" ou "Vovô viu a ave".
Admiro, por Júpiter, mais que admiro, invejo essa turma que sabe perfeitamente qual é o melhor e pior político, o melhor ou pior disco dos Rolling Stones. Invejo sobretudo aqueles que, por experiências melhores do que as minhas, consideram o bumbum da Carla Perez, as pernas da Cláudia Raia e as curvas da Tiazinha como o nível mais baixo da civilização humana.
Não sei não, mas acho que Adão, o primeiro de todos, está fazendo falta. Se ele visse o rebolado de uma delas, na certa pediria licença ao Criador para, além de nomear, aderir.


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