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CARLOS HEITOR CONY
A mania de dar nome às coisas e pessoas
Não há referência explícita em
nenhum livro, sagrado ou profano, de que Deus tenha chamado
Adão logo após tê-lo feito de barro
e sopro, dando-lhe o privilégio de
ser o primeiro a nomear as coisas
do mundo também recém-criado.
Apesar disso, em todos os povos e
línguas, surgiu a lenda que explica porque árvore se chama árvore, água se chama água, céu se
chama céu e por aí vai.
Como todo criador, Deus limitou-se a criar, fez tudo, o dia e a
noite, o céu e os mares. Mas o furor criativo era tal e tanto que ele
não teve imaginação, vontade ou
tempo para dar nomes aos bois
que ia criando. Deixou essa tarefa
para o homem, uma vez que para
o homem fazia diferença ser dia
ou noite, pisar em terra, comer lagartixa ou maçã.
E foi assim que todas as coisas,
anônimas até então, foram desfilando diante da dupla, Deus e
Homem. E o homem foi nomeando tudo o que via: galinha, porco,
estrela, vento, nuvem, pedra, passarinho, cobra, terra, sol. E tudo o
que sentia: frio, medo, fome, sono
etc.
Os nomes pegaram. Mais tarde,
à medida que inventaram o gramofone, a aspirina, o e-mail e a
camisinha, outros homens entraram na jogada, mas tendo como
base, como chassi da linguagem,
os nomes fundamentais lançados,
inventados ou adaptados pelo primeiro homem. Inclusive o nome
"mulher", que foi invenção sua,
pois, quando Deus teve a infeliz
idéia de criá-la, pensou em dar
uma "companheira" ao homem, e
não uma mulher.
Examinando-se em perspectiva
essa primeira função do primeiro
homem, até que ele se saiu razoavelmente bem. Eu discordo, por
exemplo, de algumas palavras,
como "galinha", que não devia
ser galinha, que é diminutivo feminino de galo. E "farinha" seria
o que em relação a faro? Sem falar
na bruta confusão entre "supositório" e "suposição". Enfim, nada
é perfeito, e mesmo Adão, antes
da queda, podia ser o rei da criação, mas não o rei da cocada preta.
Acontece que, alguns séculos depois, uma espécie de cronista social da antiguidade, vivendo na
complicada corte do Império Romano, achou que era o novo Adão
e começou a dar nome às coisas
que ainda não tinham nome. Foi
Petrônio, que passou à história
como Petronius Arbiter, em vernáculo, Petrônio Árbitro.
Ele decidia o que os patrícios deviam dizer, pensar e fazer. Separava o bem do mal, isto serve e
aquilo não serve, a toga deve ir
até o tornozelo ou até o joelho, a
mulher deve estar por baixo e por
cima no ato sexual. E outras coisas assim.
Petrônio teve sucessores que,
com as modificações tecnológicas
dos meios de comunicação, sobrevivem hoje na mídia como jornalistas, colunistas, cronistas, animadores de auditório, âncoras de
TV e toda uma fauna afim. Uns
pelos outros, são os novos Petrônios, ou melhor, tentam ser o novo Adão que nomeia as coisas e
sabe distinguir uma galinha de
um elefante, um elefante de um
rio, um rio de uma barata.
Neste final de ano, os novos Petrônios estão excitadíssimos, procurando nomear coisas do passado que já foram nomeadas. E palpitar sobre coisas do futuro que
ainda não existem e por isso estão
isentas de nomeação.
Vejo as listas disso e daquilo que
todas as semanas são divulgadas.
Os Petrônios são mais ou menos
parecidos entre si. Alguns deles
são cultos, outros incultos. Mesmo
assim, decidem sobre os melhores
e piores com uma desenvoltura
que Adão não teve quando, ao lado do Criador, e por delegação do
próprio, podia chutar o que quisesse sem ser contraditado.
Outro dia, vi uma lista sobre os
melhores e piores momentos do
século que acaba. Houve quem
votasse como melhor a batida do
violão do João Gilberto. E outro
que considerou o traseiro da Carla Perez um insulto ao Brasil e à
humanidade.
De minha parte, recusei fazer
esse tipo de lista (fiz e me arrependi, no início do ano, de uma relação de livros, mas fiquei sem saber
a diferença entre o 75º e o 76º livro
mais importante dos últimos cem
anos), daí que me distraio quando leio que entre as coisas abomináveis do nosso tempo estão os
campos de extermínio dos nazistas, a bomba de Hiroshima, a
Aids e a Adriane Galisteu.
Conheço em linhas gerais os jurados que se investem da função
de novo Adão. Tem gente que seria reprovada num simples ditado, um ditado na base do "Ivo viu
a uva" ou "Vovô viu a ave".
Admiro, por Júpiter, mais que
admiro, invejo essa turma que sabe perfeitamente qual é o melhor
e pior político, o melhor ou pior
disco dos Rolling Stones. Invejo
sobretudo aqueles que, por experiências melhores do que as minhas, consideram o bumbum da
Carla Perez, as pernas da Cláudia
Raia e as curvas da Tiazinha como o nível mais baixo da civilização humana.
Não sei não, mas acho que
Adão, o primeiro de todos, está fazendo falta. Se ele visse o rebolado
de uma delas, na certa pediria licença ao Criador para, além de
nomear, aderir.
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