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MARCELO COELHO
A ameaça imaginária do canibal
O anúncio na internet dizia o seguinte: "Se você tem
até 30 anos e um corpo normal,
está perfeito para mim. Quero
trucidá-lo e consumir sua carne
deliciosa. Por favor, responda detalhando idade, altura e peso, de
preferência com foto. Seu mestre-açougueiro, Franky".
Franky era o apelido do técnico
em informática alemão Armin
Meiwes, também conhecido como
o canibal de Rotenburg.
O anúncio atraiu Bernd-Juergen Brandes, de 42 anos (um tanto acima da idade desejada, como
reclamou o canibal). Consentiu
em ter seu pênis amputado, desde
que fosse usado um analgésico. O
pênis foi refogado numa frigideira. Açougueiro e vítima comeram
o bizarro quitute. Depois de um
banho, já inconsciente, Brandes
foi morto a facadas. O canibal fatiou-o, guardou-o num freezer e o
consumiu aos poucos, até ser descoberto pela polícia. O julgamento deve durar até fevereiro do ano
que vem.
Não é preciso pensar muito para querer que Meiwes seja condenado. O caso é chocante demais;
de alguma forma, nossa sensibilidade não tem como tolerar que
um caso desses fique impune.
Mas os argumentos em defesa
do canibal não são desprezíveis. A
maior parte do tempo, aliás, raciocinamos de modo a legitimar o
que aconteceu.
Afinal de contas, Brandes procurou o açougueiro porque quis.
Um inglês, cujo nome não foi divulgado, respondera antes ao
anúncio de Meiwes na internet.
Foi recebido no chalé rotenburguense. Teve, contudo, um acesso
de pânico ao se ver enrolado em
filmes plásticos enquanto Meiwes
marcava com caneta hidrográfica
os cortes que seriam feitos em sua
carne. Pediu licença e voltou em
segurança ao país de Tony Blair.
Os advogados de defesa citam
outras pessoas que desistiram do
sacrifício e que puderam sair livremente da casa do canibal.
Em que sentido, então, seria
Meiwes uma ameaça pública?
Nossa mentalidade liberal não
condena o suicídio assistido ou a
eutanásia. Um doente terminal
que prefira um fim indolor a uma
agonia prolongada parece-me lúcido se procurar os serviços de um
médico como o "dr. Morte" para
ajudá-lo nessa decisão.
Em matéria de sexo, nem se fala. Se há consentimento dos envolvidos, tudo -estamos prontos
a concordar- é permitido. Nenhuma autoridade civil ou religiosa pode interferir nos prazeres
íntimos de quem quer que seja,
desde que crianças não se envolvam na história.
Coisas chocantes nessa área
não faltam. Há quem associe o
prazer sexual à ingestão de excrementos. Moças e rapazes se oferecem, na internet, para agir como
cachorros ou pôneis de seus senhores. Jogos de asfixia e pisoteamento contam com muitos adeptos. O sexo sem camisinha entre
possíveis soropositivos, numa espécie de roleta-russa, é disponibilizado em sites por todo o planeta.
Some-se a idéia do suicídio assistido ao princípio da não-interferência em assuntos sexuais, e a
culpa de Armin Meiwes se dissipa. Minha sensação, entretanto, é
que ele precisa ser condenado. Só
não sei conciliar essa sensação
com meu liberalismo.
Dizer que o canibal é uma
ameaça pública significa dizer
que o que aconteceu com Brandes
poderia, em última análise, acontecer com pessoas que não querem ser mortas e devoradas. Todas as evidências vão no sentido
de que Brandes queria ser morto.
Mas podemos pensar que mesmo
ele, no torpor anestésico que precedeu a morte, tivesse querido
voltar atrás. A sociedade deveria
então protegê-lo do jogo em que
consentiu? Não sei.
Parece não ser legítimo, ou não
ser plausível, que uma pessoa
queira dar fim à própria vida
apenas em razão de um capricho
sexual. O pressuposto é que, se alguém tem determinada fantasia
erótica, está implícito que queira,
além de realizá-la, continuar vivendo. É preciso que viva para
desfrutar do que fantasiou. Nesse
sentido, toda fantasia talvez seja
inesgotável. Requer renovação.
O que choca a nossa mentalidade é que, nesse caso, a vítima ao
mesmo tempo afirmou uma fantasia e o encerramento categórico
dessa fantasia; transpôs o limite
além do qual nenhuma liberdade
erótica faz sentido. Talvez fosse isso o que Brandes procurava: a
consumação cabal de seu desejo,
no rito de uma refeição definitiva.
Como se quisesse libertar-se da
compulsividade da internet, de
tudo o que há nela de oferecimento e procura incessante.
De modo que o caso põe em xeque não apenas o nosso "laissez-faire", o nosso liberalismo contratual em matéria de sexo, mas
também o mercado especulativo,
o bazar das fantasias aberto com
a internet. É essa a ameaça imaginária que o canibal representa
aos costumes sexuais contemporâneos. Daí, quem sabe, surja
com mais força o desejo de condená-lo.
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