UOL


São Paulo, quarta-feira, 17 de dezembro de 2003

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

MARCELO COELHO

A ameaça imaginária do canibal

O anúncio na internet dizia o seguinte: "Se você tem até 30 anos e um corpo normal, está perfeito para mim. Quero trucidá-lo e consumir sua carne deliciosa. Por favor, responda detalhando idade, altura e peso, de preferência com foto. Seu mestre-açougueiro, Franky".
Franky era o apelido do técnico em informática alemão Armin Meiwes, também conhecido como o canibal de Rotenburg.
O anúncio atraiu Bernd-Juergen Brandes, de 42 anos (um tanto acima da idade desejada, como reclamou o canibal). Consentiu em ter seu pênis amputado, desde que fosse usado um analgésico. O pênis foi refogado numa frigideira. Açougueiro e vítima comeram o bizarro quitute. Depois de um banho, já inconsciente, Brandes foi morto a facadas. O canibal fatiou-o, guardou-o num freezer e o consumiu aos poucos, até ser descoberto pela polícia. O julgamento deve durar até fevereiro do ano que vem.
Não é preciso pensar muito para querer que Meiwes seja condenado. O caso é chocante demais; de alguma forma, nossa sensibilidade não tem como tolerar que um caso desses fique impune.
Mas os argumentos em defesa do canibal não são desprezíveis. A maior parte do tempo, aliás, raciocinamos de modo a legitimar o que aconteceu.
Afinal de contas, Brandes procurou o açougueiro porque quis. Um inglês, cujo nome não foi divulgado, respondera antes ao anúncio de Meiwes na internet. Foi recebido no chalé rotenburguense. Teve, contudo, um acesso de pânico ao se ver enrolado em filmes plásticos enquanto Meiwes marcava com caneta hidrográfica os cortes que seriam feitos em sua carne. Pediu licença e voltou em segurança ao país de Tony Blair.
Os advogados de defesa citam outras pessoas que desistiram do sacrifício e que puderam sair livremente da casa do canibal.
Em que sentido, então, seria Meiwes uma ameaça pública?
Nossa mentalidade liberal não condena o suicídio assistido ou a eutanásia. Um doente terminal que prefira um fim indolor a uma agonia prolongada parece-me lúcido se procurar os serviços de um médico como o "dr. Morte" para ajudá-lo nessa decisão.
Em matéria de sexo, nem se fala. Se há consentimento dos envolvidos, tudo -estamos prontos a concordar- é permitido. Nenhuma autoridade civil ou religiosa pode interferir nos prazeres íntimos de quem quer que seja, desde que crianças não se envolvam na história.
Coisas chocantes nessa área não faltam. Há quem associe o prazer sexual à ingestão de excrementos. Moças e rapazes se oferecem, na internet, para agir como cachorros ou pôneis de seus senhores. Jogos de asfixia e pisoteamento contam com muitos adeptos. O sexo sem camisinha entre possíveis soropositivos, numa espécie de roleta-russa, é disponibilizado em sites por todo o planeta.
Some-se a idéia do suicídio assistido ao princípio da não-interferência em assuntos sexuais, e a culpa de Armin Meiwes se dissipa. Minha sensação, entretanto, é que ele precisa ser condenado. Só não sei conciliar essa sensação com meu liberalismo.
Dizer que o canibal é uma ameaça pública significa dizer que o que aconteceu com Brandes poderia, em última análise, acontecer com pessoas que não querem ser mortas e devoradas. Todas as evidências vão no sentido de que Brandes queria ser morto. Mas podemos pensar que mesmo ele, no torpor anestésico que precedeu a morte, tivesse querido voltar atrás. A sociedade deveria então protegê-lo do jogo em que consentiu? Não sei.
Parece não ser legítimo, ou não ser plausível, que uma pessoa queira dar fim à própria vida apenas em razão de um capricho sexual. O pressuposto é que, se alguém tem determinada fantasia erótica, está implícito que queira, além de realizá-la, continuar vivendo. É preciso que viva para desfrutar do que fantasiou. Nesse sentido, toda fantasia talvez seja inesgotável. Requer renovação.
O que choca a nossa mentalidade é que, nesse caso, a vítima ao mesmo tempo afirmou uma fantasia e o encerramento categórico dessa fantasia; transpôs o limite além do qual nenhuma liberdade erótica faz sentido. Talvez fosse isso o que Brandes procurava: a consumação cabal de seu desejo, no rito de uma refeição definitiva. Como se quisesse libertar-se da compulsividade da internet, de tudo o que há nela de oferecimento e procura incessante.
De modo que o caso põe em xeque não apenas o nosso "laissez-faire", o nosso liberalismo contratual em matéria de sexo, mas também o mercado especulativo, o bazar das fantasias aberto com a internet. É essa a ameaça imaginária que o canibal representa aos costumes sexuais contemporâneos. Daí, quem sabe, surja com mais força o desejo de condená-lo.


Texto Anterior: Análise: "Galera" é "Malhação" com menos glamour
Próximo Texto: Artes plásticas: Catálogo apresenta MAC ao cenário internacional
Índice


UOL
Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.