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FERNANDO GABEIRA
Meninos do Rio, fuzis e cocaína
Desde o atentado contra o
ônibus 350, que resultou na
morte de cinco pessoas no Rio,
continuo tentando entender esse
momento da violência urbana.
O que me impressiona é a dificuldade do tema emergir na
agenda política. Queiramos ou
não, há um leve preconceito contra ele. Lembro-me de como repórteres de polícia eram vistos
com complacência paternal. A
violência era sintoma com o qual
nos debatíamos, seduzidos pelo
sensacionalismo: as causas eram
do domínio da grande política.
Como encarar o processo de insegurança crescente sem que, ao
longo desses anos, tenha sido
apresentado um plano conjunto
para detê-lo? Refiro-me a algo
que pudesse ser publicado para
que as pessoas checassem seu êxito, ou seu fracasso, a cada duas
semanas.
Não pretendo ter sozinho a solução para isto. No entanto, faço
alguns comentários que, no bojo
de uma nova crise, podem ter alguma validade.
Temos algum "know-how" em
tratar com grupos armados violentos. Estamos exercitando em
Porto Príncipe, sobretudo em Bel
Air. As primeiras inspeções foram
com veículos blindados, evoluindo-se depois para soldados no
chão e, hoje, a interação entre comunidade e Exército já permite
que cada um tenha seu time e jogue futebol nas ruas. Pesou a favor do Exército a disposição de
prestar um serviço fundamental,
que é a retirada do lixo.
Durante a ditadura militar,
também foram organizados comandos. Naquela época havia
tortura e não se respeitavam as
leis. Isso é inválido. Um ponto que
sempre me chamou a atenção naqueles comandos: sua capacidade
de contornar as burocracias. Tinham a mobilidade necessária
para combater grupos cujo grande mérito, era, precisamente a
mobilidade.
O que me parece estranho é a
possibilidade de gastarmos, em
dois anos, US$ 200 milhões no
Haiti e, ao mesmo tempo, aplicarmos grandes cortes nas verbas de
segurança do Brasil. Pior que um
plano de má qualidade é a ausência de algo que possa ser chamado
assim. A única exceção, espero,
será o Pan de 2007 no Rio.
Essa escassez de ações de articulações é registrada num momento
especial. Muitos adolescentes subiram na hierarquia do tráfico. A
onipotência é comum na idade.
Imaginem como ela não é transformada quando se tem um fuzil
na mão e se cheira cocaína.
Quem teve a oportunidade de
acompanhar o depoimento de
uma menina de 13 anos, Gaguinha, saiu emocionado com o que
ouviu. Ela, juntamente de Brenda, a namorada de Lorde, o traficante que ordenou o atentado,
parou o ônibus para que fosse incendiado.
Elas sabiam do que se tratava.
Mas tudo indica que elas, como os
outros participantes, não deram a
mínima para a possibilidade de
mortes. Como vivem todos num
ambiente onde chegar aos 18 anos
já uma vitória, é possível dizer
que avaliam de forma diferente a
vida humana. Têm menos escrúpulos diante do assassinato.
Para as pessoas que vêem nisso
tudo um problema social e vislumbram a solução numa remota
mudança profunda em nossa sociedade, essas observações parecem conservadoras.
Como intervir com polícia num
problema que depende de empregos e de tantas outras melhorias
na própria qualidade de vida?
A sensação que tenho é esta:
quanto mais tarde se intervier,
mais difícil e doloroso será. A polícia de Los Angeles, percebendo
que era impossível combater todos os grupos simultaneamente,
traçou uma prioridade: dissolver
os mais violentos. Além disso,
compreendendo que, no imaginário dos jovens, o tráfico tinha
muito peso, passou a combatê-lo
também como modo de vida,
criando programas de comunicação voltados para enfraquecer a
imagem dos seus heróis.
Antes que seja combatido, afirmo apenas que não quero transplantar o trabalho do Haiti para
o Brasil, sou profundamente crítico da Operação Bandeirantes,
onde sofri e vi tantos sofrimentos,
nem considero perfeito o trabalho
policial de Los Angeles.
Uma única coisa: deveríamos
examinar os exemplos disponíveis e criar um projeto que pudesse ser acompanhado pela população. Já existem protestos, mas a
verdade é que a sociedade brasileira ainda não encontrou seu caminho no combate à violência urbana. O colapso de alguns Estados tem estimulado iniciativas.
Falta tradição. Em Israel, as
pessoas são atentas; em Cuba, os
comitês de defesa da revolução
são um instrumento da ordem;
na Suíça, a população parece ser
sensível a qualquer barulho depois das 22h. Cada sociedade encontra sua fórmula. Por que hesitamos tanto em tentar um trabalho conjunto? Por que tratamos o
problema com perguntas incompletas, como no referendo?
Estaríamos mesmo, como querem os adversários, nos inclinando à direita por questionar?
É estranho ser político no Brasil
e fingir que não se ouvem os tiros.
Quando escrevi o primeiro artigo
sobre o Tolerância Zero, depurando seus aspectos autoritários e
reconhecendo algumas de suas
inegáveis qualidades, pensei que
iria iniciar um debate. Que nada.
No governo Sarney, redigimos o
texto final de um plano de segurança e fomos para casa tranqüilos, certos de que era um marco
zero. Pensávamos que alguma
coisa estava se movendo. Mas
eram apenas viaturas novas.
O Brasil não tem projetos, pois
nem a esquerda nem a direita superaram suas posições e muito
menos surgiu um presidente capaz de construir a ponte.
Se todos pudessem conversar algumas horas com Gaguinha, talvez saíssem inspirados para tentar algo novo. Meninos, fuzis e cocaína são uma combinação temível. O que será preciso fazer para
que se entenda essa mensagem?
@ - contato@gabeira.com.br
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