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LIVRO/LANÇAMENTO
Quando Carpeaux era Karpfen
Pesquisador gaúcho faz primeiro estudo sistemático sobre autor austríaco, que mudou sobrenome ao vir para o Brasil
CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL
Poucos estrangeiros trouxeram
ao Brasil uma bagagem cultural
tão grande quanto a do austríaco
Otto Maria Carpeaux. Quando
morreu, em 1978, no mesmo Rio
de Janeiro ao qual chegara em
1939, não houve quem não usasse
o lugar comum "enciclopédico"
para tentar defini-lo.
A bagagem que veio é conhecida. Mas pouquíssimo se sabe da
que o intelectual deixou no Velho
Continente. Foi mais do que a sua
ampla biblioteca, que ele largou
na Europa, de onde saiu às pressas fugindo de Hitler.
Com 39 anos de idade, deixou
para trás, enterrados mais de sete
palmos abaixo do solo europeu,
uma intensa carreira intelectual,
uma igualmente forte atuação política e pelo menos quatro nomes:
Otto Karpfen (como fora batizado) e as criações Otto Maria Karpfen, Otto Maria Fidelis e Leopold
Wiessinger, com os quais publicara alguns livros.
Quando lhe perguntavam algo
sobre seu período austríaco, Carpeaux desconversava; quando indagavam sobre as obras que escrevera nessa época, respondia
apenas que "estavam superadas".
Agora a primeira metade da vida de um dos principais críticos e
historiadores literários do Brasil
começa a sair da sombra.
Esse é um dos temas do livro
"De Karpfen a Carpeaux", do pesquisador gaúcho Mauro Souza
Ventura, que está sendo lançado
pela editora Topbooks.
Não é trabalho de hoje. Ventura
começou a pesquisar a obra do
autor de "História da Literatura
Ocidental" em 1995, para seu
doutorado em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo.
Quando já circunscrevera a tarefa à análise do método crítico de
Carpeaux, o que faria a partir da
leitura de 250 artigos que o intelectual reuniu em livros, topou
com duas obras raras.
Em viagens a Viena e a Berlim, a
pesquisadora Maria do Carmo
Malheiros, colega de Ventura, havia conseguido localizar (e xerocar) dois trabalhos da fase européia do intelectual: "Wege Nach
Rom" (Caminhos para Roma), de
1934, e "Österreich Europäische
Sendung" (A Missão Européia da
Áustria), de 1935.
O alemão de Ventura não dava
nem para "guten tag" (bom dia),
mas ele partiu para cima da língua
de Goethe. Estudou quatro anos, e
leu até gastar as cópias dos trabalhos europeus de Carpeaux.
"Minha surpresa foi que acabei
achando correspondências entre
o conteúdo de "Missão Européia
da Áustria" e os artigos que ele escrevia no Brasil", relata Ventura.
E assim começava a nascer, com
o subtítulo "Formação Política e
Interpretação Literária na Obra
do Crítico Austríaco-Brasileiro",
o livro "De Karpfen a Carpeaux",
inacreditavelmente o primeiro estudo sistemático sobre o autor.
Nos dois capítulos iniciais, o trabalho aborda a formação política
e intelectual de Karpfen, em um
período em que a outrora poderosa Viena começava a duvidar pela
primeira vez da inscrição que os
Habsburgos espalharam desde o
século 15 em portais de toda a Europa: A.E.I.O.U (Austria Erit in
Orbe Ultima - a Áustria sobreviverá a todos na terra).
Depois de estudos em diversas
cidades européias -pouco documentados-, o jovem vienense
adota como primeiro tema a teologia, assunto de dois livros seus.
No segundo, "Caminhos para Roma", inclui o nome Maria entre
Otto e Karpfen, marca de sua conversão ao cristianismo.
Outra mudança nominal ilumina um segundo movimento. Com
o pseudônimo Otto Maria Fidelis,
coroa sua forte atuação ainda nos
anos 30 como militante político
em defesa da não-integração da
Áustria na "Grande Alemanha".
Em "Missão Européia da Áustria", sinaliza que permanecia fiel
(daí o Fidelis) aos princípios do
antigo Império Austro-Húngaro.
Souza Ventura sustenta que
com essa atuação Karpfen ganha
relevo como ideólogo do Partido
Social Cristão, conservador. Não
comprovada, mas dada como certa, é a admiração que teria despertado por parte do chanceler ultraconservador Engelbert Dolfuss,
de quem há quem diga que Karpfen foi assessor direto.
Quando Hitler invadiu a Áustria, em março de 1938, ao anti-Alemanha Karpfen só restava fugir. Mas mesmo a Bélgica, onde
ele se refugia, fica perigosa um
ano depois, com a expansão do
nazismo. Com ajuda do Vaticano,
ele embarca no navio belga Copacabana, destino Rio de Janeiro.
Nos trópicos, a trajetória do intelectual muda de latitude. A crítica e a história literária, temas dos
capítulos restantes de "De Karpfen a Carpeaux", entram em campo.
"A relação dele com as letras,
me arrisco a dizer, foi acidental.
Aconteceu por ter encontrado no
Brasil o comentário sobre literatura como modo de sobrevivência, algo que ele podia fazer rápido", diz Ventura. "Uma das conclusões que tiro é que ele se preparou para ser algo mais ambicioso
que um crítico literário. Queria
ser um filósofo, algo assim."
E o "filósofo" Karpfen transforma-se, em um país ainda culturalmente voltado a Paris, no "crítico
literário" com o afrancesado sobrenome Carpeaux.
Os dois não chegam a ser totalmente "médico" e "monstro" na
visão de Ventura. "Existe uma fissura entre Karpfen e Carpeaux,
mas podemos chegar a uma síntese a partir de alguns valores, sobretudo a ligação que ele tem com
o espírito barroco da Áustria" (escreve Carpeaux: "O barroco foi o
último estilo que abrangeu ecumenicamente toda a Europa").
O pesquisador também não encontra falta de coerência entre o
conservador Karpfen da juventude e o Carpeaux da maturidade,
uma das vozes mais presentes durante o regime militar na defesa
dos direitos humanos, sobretudo
em artigos no extinto jornal "Correio da Manhã".
"Ele sempre foi liberal, defendeu as liberdades civis. Erroneamente se atribui à atuação dele
nos anos 70 um caráter esquerdista, marxista. Isso ele nunca foi."
É nessas facetas que Ventura
vem trabalhando mais detalhadamente agora. O pesquisador, que
está traduzindo os trabalhos em
alemão de Otto, prepara um livro
sobre o pensamento político de
Karpfen e Carpeaux.
DE KARPFEN A CARPEAUX. De: Mauro
Souza Ventura. Editora: Topbooks.
Quanto: R$ 35 (257 págs.).
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