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São Paulo, sábado, 18 de janeiro de 2003

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LIVRO/LANÇAMENTO

Quando Carpeaux era Karpfen

Pesquisador gaúcho faz primeiro estudo sistemático sobre autor austríaco, que mudou sobrenome ao vir para o Brasil

CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Poucos estrangeiros trouxeram ao Brasil uma bagagem cultural tão grande quanto a do austríaco Otto Maria Carpeaux. Quando morreu, em 1978, no mesmo Rio de Janeiro ao qual chegara em 1939, não houve quem não usasse o lugar comum "enciclopédico" para tentar defini-lo.
A bagagem que veio é conhecida. Mas pouquíssimo se sabe da que o intelectual deixou no Velho Continente. Foi mais do que a sua ampla biblioteca, que ele largou na Europa, de onde saiu às pressas fugindo de Hitler.
Com 39 anos de idade, deixou para trás, enterrados mais de sete palmos abaixo do solo europeu, uma intensa carreira intelectual, uma igualmente forte atuação política e pelo menos quatro nomes: Otto Karpfen (como fora batizado) e as criações Otto Maria Karpfen, Otto Maria Fidelis e Leopold Wiessinger, com os quais publicara alguns livros.
Quando lhe perguntavam algo sobre seu período austríaco, Carpeaux desconversava; quando indagavam sobre as obras que escrevera nessa época, respondia apenas que "estavam superadas".
Agora a primeira metade da vida de um dos principais críticos e historiadores literários do Brasil começa a sair da sombra.
Esse é um dos temas do livro "De Karpfen a Carpeaux", do pesquisador gaúcho Mauro Souza Ventura, que está sendo lançado pela editora Topbooks.
Não é trabalho de hoje. Ventura começou a pesquisar a obra do autor de "História da Literatura Ocidental" em 1995, para seu doutorado em teoria literária e literatura comparada pela Universidade de São Paulo.
Quando já circunscrevera a tarefa à análise do método crítico de Carpeaux, o que faria a partir da leitura de 250 artigos que o intelectual reuniu em livros, topou com duas obras raras.
Em viagens a Viena e a Berlim, a pesquisadora Maria do Carmo Malheiros, colega de Ventura, havia conseguido localizar (e xerocar) dois trabalhos da fase européia do intelectual: "Wege Nach Rom" (Caminhos para Roma), de 1934, e "Österreich Europäische Sendung" (A Missão Européia da Áustria), de 1935.
O alemão de Ventura não dava nem para "guten tag" (bom dia), mas ele partiu para cima da língua de Goethe. Estudou quatro anos, e leu até gastar as cópias dos trabalhos europeus de Carpeaux.
"Minha surpresa foi que acabei achando correspondências entre o conteúdo de "Missão Européia da Áustria" e os artigos que ele escrevia no Brasil", relata Ventura.
E assim começava a nascer, com o subtítulo "Formação Política e Interpretação Literária na Obra do Crítico Austríaco-Brasileiro", o livro "De Karpfen a Carpeaux", inacreditavelmente o primeiro estudo sistemático sobre o autor.
Nos dois capítulos iniciais, o trabalho aborda a formação política e intelectual de Karpfen, em um período em que a outrora poderosa Viena começava a duvidar pela primeira vez da inscrição que os Habsburgos espalharam desde o século 15 em portais de toda a Europa: A.E.I.O.U (Austria Erit in Orbe Ultima - a Áustria sobreviverá a todos na terra).
Depois de estudos em diversas cidades européias -pouco documentados-, o jovem vienense adota como primeiro tema a teologia, assunto de dois livros seus. No segundo, "Caminhos para Roma", inclui o nome Maria entre Otto e Karpfen, marca de sua conversão ao cristianismo.
Outra mudança nominal ilumina um segundo movimento. Com o pseudônimo Otto Maria Fidelis, coroa sua forte atuação ainda nos anos 30 como militante político em defesa da não-integração da Áustria na "Grande Alemanha". Em "Missão Européia da Áustria", sinaliza que permanecia fiel (daí o Fidelis) aos princípios do antigo Império Austro-Húngaro.
Souza Ventura sustenta que com essa atuação Karpfen ganha relevo como ideólogo do Partido Social Cristão, conservador. Não comprovada, mas dada como certa, é a admiração que teria despertado por parte do chanceler ultraconservador Engelbert Dolfuss, de quem há quem diga que Karpfen foi assessor direto.
Quando Hitler invadiu a Áustria, em março de 1938, ao anti-Alemanha Karpfen só restava fugir. Mas mesmo a Bélgica, onde ele se refugia, fica perigosa um ano depois, com a expansão do nazismo. Com ajuda do Vaticano, ele embarca no navio belga Copacabana, destino Rio de Janeiro.
Nos trópicos, a trajetória do intelectual muda de latitude. A crítica e a história literária, temas dos capítulos restantes de "De Karpfen a Carpeaux", entram em campo.
"A relação dele com as letras, me arrisco a dizer, foi acidental. Aconteceu por ter encontrado no Brasil o comentário sobre literatura como modo de sobrevivência, algo que ele podia fazer rápido", diz Ventura. "Uma das conclusões que tiro é que ele se preparou para ser algo mais ambicioso que um crítico literário. Queria ser um filósofo, algo assim."
E o "filósofo" Karpfen transforma-se, em um país ainda culturalmente voltado a Paris, no "crítico literário" com o afrancesado sobrenome Carpeaux.
Os dois não chegam a ser totalmente "médico" e "monstro" na visão de Ventura. "Existe uma fissura entre Karpfen e Carpeaux, mas podemos chegar a uma síntese a partir de alguns valores, sobretudo a ligação que ele tem com o espírito barroco da Áustria" (escreve Carpeaux: "O barroco foi o último estilo que abrangeu ecumenicamente toda a Europa").
O pesquisador também não encontra falta de coerência entre o conservador Karpfen da juventude e o Carpeaux da maturidade, uma das vozes mais presentes durante o regime militar na defesa dos direitos humanos, sobretudo em artigos no extinto jornal "Correio da Manhã".
"Ele sempre foi liberal, defendeu as liberdades civis. Erroneamente se atribui à atuação dele nos anos 70 um caráter esquerdista, marxista. Isso ele nunca foi."
É nessas facetas que Ventura vem trabalhando mais detalhadamente agora. O pesquisador, que está traduzindo os trabalhos em alemão de Otto, prepara um livro sobre o pensamento político de Karpfen e Carpeaux.

DE KARPFEN A CARPEAUX. De: Mauro Souza Ventura. Editora: Topbooks. Quanto: R$ 35 (257 págs.).


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