São Paulo, terça-feira, 18 de janeiro de 2005

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BERNARDO CARVALHO

Uma idéia do outro mundo

Quando o meu romance "Mongólia" saiu na França, no final do ano passado, mais de um jornalista me perguntou se eu já tinha lido François Jullien. Disseram-me que tinha a ver. Eu nem sabia quem era François Jullien (no Brasil, a editora 34 publicou dele "Figuras da Imanência", sobre o I-Ching, e "Tratado da Eficácia", sobre temas ligados à economia). Encomendei três livros do autor pela internet: "Processo ou Criação - Uma Introdução ao Pensamento Chinês", "Elogio da Insipidez - A Partir do Pensamento e da Estética da China" e "O Desvio e o Acesso - Estratégias do Sentido na China, na Grécia". Três livros que eu devorei, fascinado, entre o Natal e o Ano Novo.
Jullien é filósofo e sinólogo. Faz questão de se definir como helenista, embora à primeira vista tudo leve a crer que a sua especialidade é a China: "(...) talvez seja da Grécia que eu procuro me aproximar. (...) Esta viagem ao distante país da "sutileza" dos sentidos é um convite a nos voltarmos para o nosso pensamento".
A China (ou, antes, o pensamento chinês, já que o autor se atém à análise dos textos clássicos e insiste em dizer que não é antropólogo) é o desvio que o filósofo tomou para conseguir refletir sobre o mundo e o pensamento ocidentais de um ponto de vista que lhes fosse totalmente exterior. E nada pode ser mais exterior do que a China, onde a língua, além de escapar ao sistema lingüístico indo-europeu, é ideográfica em vez de fonética.
No pensamento chinês de tradição confuciana não há essa distância que permite ao sujeito europeu analisar um objeto de fora. Não há essa exterioridade que Jullien vai procurar na China como contraponto do pensamento ocidental. Para o pensamento chinês nada é exterior ou transcendente, o mundo não está dividido entre o aqui e o além, entre o real e o ideal, entre uma dimensão física e outra metafísica, que é o fundamento do pensamento ocidental. Tudo acontece num constante processo de transformação a que estão submetidos tanto o sujeito como o objeto. A subjetividade e a objetividade só podem existir em correlação, em movimento, em relação interativa, de impregnação. As conseqüências disso são enormes, para o bem ou para o mal. A própria idéia de representação e de arte como a compreendemos no Ocidente, não havendo mais um sujeito independente e exterior ao processo a que tudo está submetido, perde o sentido.
No caso da literatura (e Jullien está tratando especificamente da poesia) tanto a obra como a leitura fazem parte desse processo. Daí que não pode existir a idéia romântica de um criador-artista à imagem de um deus ou demiurgo. A leitura é parte da criação da obra, que é permanente e infinita. A estética chinesa privilegia o insípido, o evasivo, o desvio e a alusão. Encarar um objeto de frente significa matá-lo, fixá-lo, podar as possibilidades inesgotáveis do sentido, interromper o processo e o movimento.
Jullien escreve sobre o jardim chinês: "Esse jardim não acaba em lugar nenhum; seus caminhos voltam-se sempre sobre si mesmos. (...) A cada desvio, a paisagem não pára de se renovar. (...) À maneira de uma via sinuosa do sentido, esse passeio é um desdobramento, ele se dá pela impregnação progressiva da paisagem em nós (...), e como tal, não tem fim. (...) A leitura e o passeio compartilham o mesmo sentimento do inesgotável".
O desvio passa a ser sinônimo de acesso. Para aceder ao objeto é preciso desviar dele: "Pintar as nuvens para evocar a Lua", porque a Lua em si, em sua "essência", não pode ser pintada. Como não há transcendência, também não pode haver a idéia abstrata de "essência" ou de "verdade". Nada existe em princípio. Nada é fixo. As coisas só existem em relação com as outras. E daí que o conhecimento se dá por um processo alusivo. O pensamento chinês, ao contrário da psicanálise, desconfia do poder de explicitação da palavra. O discurso não revela; ele elucida pelo não-dito, pelo implícito, pela alusão.
Se por um lado essa diferença radical é fascinante em si, porque abre um campo de possibilidades inusitado na maneira de nos relacionarmos com o mundo (afinal, há outros modos de compreendermos o que nos cerca, uma outra lógica), por outro ela também nos mostra, por oposição, o que há de fascinante no próprio pensamento ocidental. Sem a transcendência, não dá para imaginar um ideal, algo que não existe. É a própria imaginação que fica comprometida. Não pode haver a idéia de um deus absoluto (o que é interessante) ou de um outro mundo mas também não pode haver um ideal de liberdade ou de revolução. Porque esse ideal é inconcebível. A liberdade passa a ser as possibilidades reais, existentes na relação entre os homens, a margem de manobra da sutileza.
Se, por um lado, o ideal metafísico pode ser uma ilusão (e de fato há conseqüências trágicas dessa ilusão sob a influência do Ocidente, das guerras de religião às revoluções comunistas), por outro ele dá rédeas à imaginação, permitindo especular e lutar por algo que ainda não existe. A sabedoria chinesa, ao contrário, está baseada num sentido prático e resignado diante do que existe, incluindo aí as leis criadas pelos homens. E esse pode ser um mundo sufocante, onde a arte como ruptura, como busca do que não há, não passa de uma idéia do outro mundo.


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