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BERNARDO CARVALHO
Uma idéia do outro mundo
Quando o meu romance
"Mongólia" saiu na França,
no final do ano passado, mais de
um jornalista me perguntou se eu
já tinha lido François Jullien. Disseram-me que tinha a ver. Eu nem
sabia quem era François Jullien
(no Brasil, a editora 34 publicou
dele "Figuras da Imanência", sobre o I-Ching, e "Tratado da Eficácia", sobre temas ligados à economia). Encomendei três livros do
autor pela internet: "Processo ou
Criação - Uma Introdução ao
Pensamento Chinês", "Elogio da
Insipidez - A Partir do Pensamento e da Estética da China" e "O
Desvio e o Acesso - Estratégias do
Sentido na China, na Grécia".
Três livros que eu devorei, fascinado, entre o Natal e o Ano Novo.
Jullien é filósofo e sinólogo. Faz
questão de se definir como helenista, embora à primeira vista tudo leve a crer que a sua especialidade é a China: "(...) talvez seja da
Grécia que eu procuro me aproximar. (...) Esta viagem ao distante
país da "sutileza" dos sentidos é um
convite a nos voltarmos para o
nosso pensamento".
A China (ou, antes, o pensamento chinês, já que o autor se atém à
análise dos textos clássicos e insiste em dizer que não é antropólogo) é o desvio que o filósofo tomou
para conseguir refletir sobre o
mundo e o pensamento ocidentais
de um ponto de vista que lhes fosse
totalmente exterior. E nada pode
ser mais exterior do que a China,
onde a língua, além de escapar ao
sistema lingüístico indo-europeu,
é ideográfica em vez de fonética.
No pensamento chinês de tradição confuciana não há essa distância que permite ao sujeito europeu analisar um objeto de fora.
Não há essa exterioridade que Jullien vai procurar na China como
contraponto do pensamento ocidental. Para o pensamento chinês
nada é exterior ou transcendente,
o mundo não está dividido entre o
aqui e o além, entre o real e o
ideal, entre uma dimensão física e
outra metafísica, que é o fundamento do pensamento ocidental.
Tudo acontece num constante
processo de transformação a que
estão submetidos tanto o sujeito
como o objeto. A subjetividade e a
objetividade só podem existir em
correlação, em movimento, em relação interativa, de impregnação.
As conseqüências disso são enormes, para o bem ou para o mal. A
própria idéia de representação e
de arte como a compreendemos
no Ocidente, não havendo mais
um sujeito independente e exterior ao processo a que tudo está
submetido, perde o sentido.
No caso da literatura (e Jullien
está tratando especificamente da
poesia) tanto a obra como a leitura fazem parte desse processo. Daí
que não pode existir a idéia romântica de um criador-artista à
imagem de um deus ou demiurgo.
A leitura é parte da criação da
obra, que é permanente e infinita.
A estética chinesa privilegia o insípido, o evasivo, o desvio e a alusão. Encarar um objeto de frente
significa matá-lo, fixá-lo, podar as
possibilidades inesgotáveis do sentido, interromper o processo e o
movimento.
Jullien escreve sobre o jardim
chinês: "Esse jardim não acaba em
lugar nenhum; seus caminhos voltam-se sempre sobre si mesmos.
(...) A cada desvio, a paisagem não
pára de se renovar. (...) À maneira
de uma via sinuosa do sentido, esse passeio é um desdobramento,
ele se dá pela impregnação progressiva da paisagem em nós (...),
e como tal, não tem fim. (...) A leitura e o passeio compartilham o
mesmo sentimento do inesgotável".
O desvio passa a ser sinônimo de
acesso. Para aceder ao objeto é
preciso desviar dele: "Pintar as
nuvens para evocar a Lua", porque a Lua em si, em sua "essência", não pode ser pintada. Como
não há transcendência, também
não pode haver a idéia abstrata de
"essência" ou de "verdade". Nada
existe em princípio. Nada é fixo.
As coisas só existem em relação
com as outras. E daí que o conhecimento se dá por um processo
alusivo. O pensamento chinês, ao
contrário da psicanálise, desconfia do poder de explicitação da palavra. O discurso não revela; ele
elucida pelo não-dito, pelo implícito, pela alusão.
Se por um lado essa diferença
radical é fascinante em si, porque
abre um campo de possibilidades
inusitado na maneira de nos relacionarmos com o mundo (afinal,
há outros modos de compreendermos o que nos cerca, uma outra lógica), por outro ela também
nos mostra, por oposição, o que
há de fascinante no próprio pensamento ocidental. Sem a transcendência, não dá para imaginar
um ideal, algo que não existe. É a
própria imaginação que fica
comprometida. Não pode haver a
idéia de um deus absoluto (o que
é interessante) ou de um outro
mundo mas também não pode
haver um ideal de liberdade ou de
revolução. Porque esse ideal é inconcebível. A liberdade passa a
ser as possibilidades reais, existentes na relação entre os homens, a margem de manobra da
sutileza.
Se, por um lado, o ideal metafísico pode ser uma ilusão (e de fato
há conseqüências trágicas dessa
ilusão sob a influência do Ocidente, das guerras de religião às revoluções comunistas), por outro ele
dá rédeas à imaginação, permitindo especular e lutar por algo
que ainda não existe. A sabedoria
chinesa, ao contrário, está baseada num sentido prático e resignado diante do que existe, incluindo
aí as leis criadas pelos homens. E
esse pode ser um mundo sufocante, onde a arte como ruptura, como busca do que não há, não passa de uma idéia do outro mundo.
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