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MÚSICA ERUDITA
As tocatas de Bach
ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha
A palavra barroco não tem relação alguma com barro. Vem do
árabe e significa originalmente um
tipo irregular de pérola. A profusão de ornamentos e arabescos da
arquitetura do século 17 justifica o
uso do termo; mas a música barroca tem pouco de
"barroca", nesse
sentido de formas livres e extravagantes
-especialmente a música barroca alemã, e acima de tudo a de
Johann Sebastian Bach
(1685-1750), o
maior de todos
os compositores
barrocos.
Se fosse levado
em conta o prestígio de sua obra,
como padrão de
referência para o
ensino da música
desde o início do
século passado, a
expressão mais
correta para
Bach seria "clássico"; mas isso
causaria confusão com os compositores "clássicos" do século
18.
"Clássico",
aliás, não estaria
tão longe do espírito da música de Bach, que, embora sinuosa e ornamentada, é um
modelo por excelência da economia e integração dos elementos. A
idéia crucial da composição, para
Bach, é o que ele chamava "invenção": não só um primeiro tema,
mas a consciência de tudo o que se
pode fazer com ele.
Uma peça musical barroca é exatamente isso, a exploração sistemática de uma idéia musical; adequando-a também às leis do contraponto e às convenções de cada
gênero (prelúdio, fuga, dança etc).
Muitas das peças para teclado de
Bach tem um caráter quase privado, como se seus prazeres só fossem plenamente acessíveis para
quem está tocando a partitura. Inversões, retrógrados, aumentação
e diminuição de temas, a presença
escondida de um motivo nalguma
voz interna: são coisas que nem
sempre saltam aos ouvidos, mas
fazem parte da "invenção" da música.
O talento inigualado de Bach é,
em boa medida, "seu entendimento das possibilidades emocionais
inerentes ao contraponto... os efeitos dramáticos que podem ser tirados de uma melodia invertida
ou sobreposta a si mesma", como
escreveu Charles Rosen ("The
New York Review of Books",
9/10/97).
Entre as peças ideais para serem
apresentadas em público, por outro lado, estão as tocatas e suítes
da fase inicial de sua carreira, que
formam a maior parte do repertório desse novo CD do cravista
Pierre Hantaï (gravadora Virgin).
Combinando influências italianas, francesas e do norte da Alemanha, as tocatas já anunciam o
controle de todas as coisas que se
vai ouvir nas "Suítes Inglesas";
mas guardam uma certa inocência
e despretensão, de quem ainda está à vontade para experimentar o
próprio gênio, sem maior compromisso, num território novo.
Entende-se então por que o pianista Glenn Gould considerava as
tocatas mais "modernas" do que
quase tudo o que Bach escreveu
depois. Isso se daria, paradoxalmente, segundo ele, pela relativa
falta de domínio técnico para lidar
com as consequências harmônicas
do que estava fazendo: "O que se
escuta é uma quebra de comunicação entre as dimensões horizontal
e vertical" ("The Glenn Gould
Reader", ed. Knopf).
Essa suposta quebra de comunicação entre contraponto e harmonia serve a Gould como estímulo
para uma interpretação genialmente idiossincrática das tocatas.
Pierre Hantaï, aos 33 anos, parece
pronto para enfrentar a comparação e oferece leituras muito diferentes das tocatas "BWV 913",
"914" e "915".
Mestre expansivo dos ornamentos, que há muito deixaram de ser
só enfeites na interpretação da
música barroca, Hantaï soa, mesmo assim, muito mais duro do que
seria de esperar de um cravista
francês.
O que chama a atenção de imediato, na sua interpretação das tocatas, não são os ornamentos nem
a fluência da melodia, planando livre sobre o baixo-contínuo, mas
sim o pulso, a sensação confiante
de avanço, o sentido de futuro em
cada nota.
A isso se soma um perfil anguloso das linhas e até uma certa aspereza no desenho da forma. Estilisticamente, não é nem italiano (ornamentos demais) nem francês
(sensual de menos). Hantaï parece
em busca de uma terceira via: um
Bach propriamente barroco e propriamente alemão, novidade
maior do que parece.
Segundas e terceiras audições
vão revelando pequenas nuances
que dão vida musical à abstração
da teoria do estilo. Para os alaudistas e violonistas, acostumados a
um ritmo bem mais lento e fraseado mais solto, sua interpretação
da "Suíte aufs Lautenwerk, em Mi
Menor", talvez chegue às raias do
incômodo. Também os violinistas
não vão engolir facilmente a sua
versão da "Sonata BWV 964", que
é uma transcrição da "Sonata em
Lá Menor para Violino Solo".
Mas Hantaï faz dessas, como das
outras peças, uma música do cravo, só do cravo e nada mais que do
cravo (excepcionalmente bem
gravado, diga-se de passagem); e
apenas dessa perspectiva pode-se
aceitar ou rejeitar sua interpretação.
"Há certos momentos... em que
as relações matemáticas da música
(de Bach), as regras místicas do
contraponto despertam em mim
um verdadeiro terror", escreveu o
contista romântico E. T. A. Hoffmann. "Bach foi um raio de luz
brilhando em meio ao negrume da
degradação completa", comentou
Engels, outro admirador espantado do século 19.
Nosso Bach hoje parece menos
preso à fantasia e mais fantasticamente preso à composição. Bach,
para nós, não é apenas um músico:
ele é a música, como se conhece
essa arte há 300 anos.
Das grandes missas às mais simples tocatas, Bach é a nossa referência; e o disco de Pierre Hantaï
serve para demonstrar a necessidade sempre saudável de renovar
esse legado pelas vias e desvios da
interpretação.
Disco:Toccatas, Suíte BWV 996, Sonata
BWV 964
Compositor: J.S. Bach
Cravista: Pierre Hantaï
Lançamento: Virgin
Quanto: RÏ 18, em média
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