São Paulo, quarta, 18 de fevereiro de 1998

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MÚSICA ERUDITA
As tocatas de Bach

ARTHUR NESTROVSKI
especial para a Folha

A palavra barroco não tem relação alguma com barro. Vem do árabe e significa originalmente um tipo irregular de pérola. A profusão de ornamentos e arabescos da arquitetura do século 17 justifica o uso do termo; mas a música barroca tem pouco de "barroca", nesse sentido de formas livres e extravagantes -especialmente a música barroca alemã, e acima de tudo a de Johann Sebastian Bach (1685-1750), o maior de todos os compositores barrocos.
Se fosse levado em conta o prestígio de sua obra, como padrão de referência para o ensino da música desde o início do século passado, a expressão mais correta para Bach seria "clássico"; mas isso causaria confusão com os compositores "clássicos" do século 18.
"Clássico", aliás, não estaria tão longe do espírito da música de Bach, que, embora sinuosa e ornamentada, é um modelo por excelência da economia e integração dos elementos. A idéia crucial da composição, para Bach, é o que ele chamava "invenção": não só um primeiro tema, mas a consciência de tudo o que se pode fazer com ele.
Uma peça musical barroca é exatamente isso, a exploração sistemática de uma idéia musical; adequando-a também às leis do contraponto e às convenções de cada gênero (prelúdio, fuga, dança etc).
Muitas das peças para teclado de Bach tem um caráter quase privado, como se seus prazeres só fossem plenamente acessíveis para quem está tocando a partitura. Inversões, retrógrados, aumentação e diminuição de temas, a presença escondida de um motivo nalguma voz interna: são coisas que nem sempre saltam aos ouvidos, mas fazem parte da "invenção" da música.
O talento inigualado de Bach é, em boa medida, "seu entendimento das possibilidades emocionais inerentes ao contraponto... os efeitos dramáticos que podem ser tirados de uma melodia invertida ou sobreposta a si mesma", como escreveu Charles Rosen ("The New York Review of Books", 9/10/97).
Entre as peças ideais para serem apresentadas em público, por outro lado, estão as tocatas e suítes da fase inicial de sua carreira, que formam a maior parte do repertório desse novo CD do cravista Pierre Hantaï (gravadora Virgin).
Combinando influências italianas, francesas e do norte da Alemanha, as tocatas já anunciam o controle de todas as coisas que se vai ouvir nas "Suítes Inglesas"; mas guardam uma certa inocência e despretensão, de quem ainda está à vontade para experimentar o próprio gênio, sem maior compromisso, num território novo.
Entende-se então por que o pianista Glenn Gould considerava as tocatas mais "modernas" do que quase tudo o que Bach escreveu depois. Isso se daria, paradoxalmente, segundo ele, pela relativa falta de domínio técnico para lidar com as consequências harmônicas do que estava fazendo: "O que se escuta é uma quebra de comunicação entre as dimensões horizontal e vertical" ("The Glenn Gould Reader", ed. Knopf).
Essa suposta quebra de comunicação entre contraponto e harmonia serve a Gould como estímulo para uma interpretação genialmente idiossincrática das tocatas. Pierre Hantaï, aos 33 anos, parece pronto para enfrentar a comparação e oferece leituras muito diferentes das tocatas "BWV 913", "914" e "915".
Mestre expansivo dos ornamentos, que há muito deixaram de ser só enfeites na interpretação da música barroca, Hantaï soa, mesmo assim, muito mais duro do que seria de esperar de um cravista francês.
O que chama a atenção de imediato, na sua interpretação das tocatas, não são os ornamentos nem a fluência da melodia, planando livre sobre o baixo-contínuo, mas sim o pulso, a sensação confiante de avanço, o sentido de futuro em cada nota.
A isso se soma um perfil anguloso das linhas e até uma certa aspereza no desenho da forma. Estilisticamente, não é nem italiano (ornamentos demais) nem francês (sensual de menos). Hantaï parece em busca de uma terceira via: um Bach propriamente barroco e propriamente alemão, novidade maior do que parece.
Segundas e terceiras audições vão revelando pequenas nuances que dão vida musical à abstração da teoria do estilo. Para os alaudistas e violonistas, acostumados a um ritmo bem mais lento e fraseado mais solto, sua interpretação da "Suíte aufs Lautenwerk, em Mi Menor", talvez chegue às raias do incômodo. Também os violinistas não vão engolir facilmente a sua versão da "Sonata BWV 964", que é uma transcrição da "Sonata em Lá Menor para Violino Solo".
Mas Hantaï faz dessas, como das outras peças, uma música do cravo, só do cravo e nada mais que do cravo (excepcionalmente bem gravado, diga-se de passagem); e apenas dessa perspectiva pode-se aceitar ou rejeitar sua interpretação.
"Há certos momentos... em que as relações matemáticas da música (de Bach), as regras místicas do contraponto despertam em mim um verdadeiro terror", escreveu o contista romântico E. T. A. Hoffmann. "Bach foi um raio de luz brilhando em meio ao negrume da degradação completa", comentou Engels, outro admirador espantado do século 19.
Nosso Bach hoje parece menos preso à fantasia e mais fantasticamente preso à composição. Bach, para nós, não é apenas um músico: ele é a música, como se conhece essa arte há 300 anos.
Das grandes missas às mais simples tocatas, Bach é a nossa referência; e o disco de Pierre Hantaï serve para demonstrar a necessidade sempre saudável de renovar esse legado pelas vias e desvios da interpretação.

Disco:Toccatas, Suíte BWV 996, Sonata BWV 964 Compositor: J.S. Bach Cravista: Pierre Hantaï Lançamento: Virgin Quanto: RÏ 18, em média


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