São Paulo, quarta, 18 de fevereiro de 1998

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Os madrigais de Rossi

especial para a Folha

Michelangelo Rossi (1602-56) foi um dos principais músicos a serviço do cardeal Maurizio de Savóia, em Roma.
Menos conhecido do que seu colega Sigismondo d'India (1580-1629) ou do que os homônimos Luigi Rossi e Salomone Rossi, Michelangelo é mais um compositor excêntrico num século de excêntricos; mas sua excentricidade não tem meias medidas e não se resolve nunca, nem harmônica, nem formalmente, sobre os modelos nascentes da tonalidade.
Essa música "gauche" ressurge, agora, depois de quase 350 anos de esquecimento, num novo CD de Il Complesso Barocco, sob a regência de Alan Curtis (gravadora Virgin).
A porção mais importante da obra de Rossi são os madrigais a cinco vozes, com ou sem acompanhamento.
Em via de publicação, pela editora da Universidade de Chicago, eles se dividem em dois livros. O primeiro, com 17 composições, é interpretado integralmente aqui pelo Complesso, entremeado com peças para cravo, de um outro manuscrito, só de "Toccate e correnti". Baseados em versos de Guarini e Cinzio, entre outros poetas do Barroco e da Renascença italiana, os madrigais fazem da palavra um estímulo, senão o verdadeiro subterfúgio para uma música constantemente irregular, irregularmente cromática e cromaticamente aberratória.
No início do século 17, os madrigais "a capela" de Luca Marenzio (1553-99), Claudio Monteverdi (1567-1643) e Carlo Gesualdo (1560-1613) estabeleceram um ponto máximo do gênero.
O madrigal concertante, acompanhado de instrumentos, é um desenvolvimento imediato e crucial para fixar o papel do baixo contínuo (instrumentos que sustentam, harmonicamente, a melodia superior).
Michelangelo Rossi enquadra-se nessa tradição, mas leva a um extremo a obsessão maneirista com o cromatismo e a imitação musical do texto.
Não é só para os padrões modernos, acostumados à tonalidade, que as extravagâncias de Rossi soam tão estranhas; mesmo no contexto da época, essa é uma música selvagem, mais de experiência do que de sentimento, embora seja precisamente de sentimento que a experiência trate.
"Straziami pur, Amor...": "Tortura-me, Amor, como quiseres/Com novos ou velhos tormentos;/Atira-me, injusta, no cárcere e prende-me com correntes... Redobra meu ardor com teu fogo".
O texto é metafórico, mas soa apropriado agora para um idílio S/M convencional. O que não é convencional, o que dói mesmo e dá prazer, é que Rossi faz com o chamado "tetracorde cromático" uma sequência desviante de quatro notas, que vai apertando as malhas da melodia para além do ponto de saturação. O efeito é redobrado pela afinação adotada por Alan Curtis, distante do padrão "temperado" e que ajusta, mais para lá ou mais para cá, o tamanho dos intervalos. Isso vale também para o cravo, artificiosamente preparado para fazer da escala em si um instrumento de vanguarda.
A estranheza, em si, não garante o gênio; e ninguém trocaria os madrigais de Monteverdi ou Gesualdo pelos de Rossi.
Mas todo mundo tem seu dia de poeta louco, existe um prazer bárbaro em enveredar pelo caminho proibido e há coisas muito menos interessantes do que a música de Rossi para acompanhar delírios de perversidade. Que o prazer dure pouco não é motivo para não guardar, nalguma gaveta, os madrigais perversos de Michelangelo Rossi. (AN)



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