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Os madrigais de Rossi
especial para a Folha
Michelangelo Rossi (1602-56) foi
um dos principais músicos a serviço do cardeal Maurizio de Savóia,
em Roma.
Menos conhecido do que seu colega Sigismondo d'India
(1580-1629) ou do que os homônimos Luigi Rossi e Salomone Rossi,
Michelangelo é mais um compositor excêntrico num século de excêntricos; mas sua excentricidade
não tem meias medidas e não se
resolve nunca, nem harmônica,
nem formalmente, sobre os modelos nascentes da tonalidade.
Essa música "gauche" ressurge,
agora, depois de quase 350 anos de
esquecimento, num novo CD de Il
Complesso Barocco, sob a regência de Alan Curtis (gravadora Virgin).
A porção mais importante da
obra de Rossi são os madrigais a
cinco vozes, com ou sem acompanhamento.
Em via de publicação, pela editora da Universidade de Chicago,
eles se dividem em dois livros. O
primeiro, com 17 composições, é
interpretado integralmente aqui
pelo Complesso, entremeado com
peças para cravo, de um outro manuscrito, só de "Toccate e correnti". Baseados em versos de Guarini
e Cinzio, entre outros poetas do
Barroco e da Renascença italiana,
os madrigais fazem da palavra um
estímulo, senão o verdadeiro subterfúgio para uma música constantemente irregular, irregularmente cromática e cromaticamente aberratória.
No início do século 17, os madrigais "a capela" de Luca Marenzio
(1553-99), Claudio Monteverdi
(1567-1643) e Carlo Gesualdo
(1560-1613) estabeleceram um
ponto máximo do gênero.
O madrigal concertante, acompanhado de instrumentos, é um
desenvolvimento imediato e crucial para fixar o papel do baixo
contínuo (instrumentos que sustentam, harmonicamente, a melodia superior).
Michelangelo Rossi enquadra-se
nessa tradição, mas leva a um extremo a obsessão maneirista com
o cromatismo e a imitação musical
do texto.
Não é só para os padrões modernos, acostumados à tonalidade,
que as extravagâncias de Rossi
soam tão estranhas; mesmo no
contexto da época, essa é uma música selvagem, mais de experiência
do que de sentimento, embora seja
precisamente de sentimento que a
experiência trate.
"Straziami pur, Amor...": "Tortura-me, Amor, como quiseres/Com novos ou velhos tormentos;/Atira-me, injusta, no cárcere e
prende-me com correntes... Redobra meu ardor com teu fogo".
O texto é metafórico, mas soa
apropriado agora para um idílio
S/M convencional. O que não é
convencional, o que dói mesmo e
dá prazer, é que Rossi faz com o
chamado "tetracorde cromático"
uma sequência desviante de quatro notas, que vai apertando as
malhas da melodia para além do
ponto de saturação. O efeito é redobrado pela afinação adotada
por Alan Curtis, distante do padrão "temperado" e que ajusta,
mais para lá ou mais para cá, o tamanho dos intervalos. Isso vale
também para o cravo, artificiosamente preparado para fazer da escala em si um instrumento de vanguarda.
A estranheza, em si, não garante
o gênio; e ninguém trocaria os madrigais de Monteverdi ou Gesualdo pelos de Rossi.
Mas todo mundo tem seu dia de
poeta louco, existe um prazer bárbaro em enveredar pelo caminho
proibido e há coisas muito menos
interessantes do que a música de
Rossi para acompanhar delírios de
perversidade. Que o prazer dure
pouco não é motivo para não
guardar, nalguma gaveta, os madrigais perversos de Michelangelo
Rossi.
(AN)
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