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As bagatelas de Beethoven
especial para a Folha
"Não é exagero dizer que o ofício
do compositor, no caso de Beethoven, torna-se enfaticamente uma
maneira de pensar sobre a estrutura e a forma." Essa frase do musicólogo Carl
Dahlhaus tem
de ser lida no
contexto do
romantismo
alemão (e não,
como seria fácil, do estruturalismo, ou
pós-estruturalismo atual).
Dessa perspectiva, resume a
nova dimensão de autoconsciência da música de Beethoven
(1770-1827), uma das tantas vertentes de exploração da ironia na
primeira geração do romantismo.
Bons exemplos dessa música torcida sobre si mesma são os três ciclos de "Bagatelas", op. 33,
119 e 126, que,
a despeito do
nome, não são
ninharias e recebem agora
uma gravação
exemplar, no
CD do pianista
Alfred Brendel
(Philips).
Grande parte
da obra de Beethoven, como a de
Bach ou Mozart, está de tal modo
integrada à nossa idéia do que seja
música que às vezes fica difícil
lembrar que ela pertence à cultura,
não à natureza, e é criação de um
homem, não uma dádiva da terra.
Que o próprio Beethoven faz o que
pode para combater essa ilusão é
só mais um traço admirável do ofício de que fala Dahlhaus; e é em
pequenas peças como as "Bagatelas", mais do que nas sinfonias ou
concertos, que isso se torna especialmente evidente, até com uma
dose de humor.
Virtualmente qualquer coisa,
aqui, serve à composição: escalas,
arpejos, sequências harmônicas
banais, um fragmento de melodia.
A "composição" vira a arte de fazer música com esses achados e
perdidos. E assim como a música
transcende, nos momentos-chave,
qualquer lembrança material de
seus elementos, ela também faz
com que retornem ao estado bruto, sem disfarce, ressaltando ainda
mais o trabalho de fazer poesia do
nada. As "Bagatelas", nesse sentido, são uma espécie de laboratório
de composição, com resultados
que vão da extravagância (como
nas expectativas frustradas do
"Allegro" op. 33/5 ou na harmonia
"absurda" das "Miniaturas" op.
119/7, 8 e 10) à vagância sublime
das "Miniaturas" op. 126, últimas
peças importantes para piano do
compositor.
O próprio Alfred Brendel já gravara antes as "Bagatelas" op. 126,
num disco de 1984. É impressionante o que 13 anos podem fazer
de diferença na interpretação da
mesma peça, até para um pianista
tão maduro como ele já era.
A nova leitura, mesmo sem contar a superioridade técnica da gravação, tem uma sabedoria diferente, menos perceptível em cada nota do que no senso de conjunto.
Tudo cai com uma outra confiança e outro peso. A música parece
voltar para dentro de si, encontrar
uma definição, depois de tantos
anos levemente fora de foco.
O CD forma um apêndice brilhante à segunda integral das sonatas de Beethoven, gravadas recentemente por Brendel para a
Philips. Sem ser o pianista favorito
de ninguém, Brendel é respeitado
e admirado por todos. É um músico muito mais virtuosístico do que
normalmente se pensa, em parte,
sem dúvida, por conta de sua modéstia pessoal e seriedade de propósito. Simultaneamente lírico e
irônico, ele é um intérprete ideal
para essa música, em que Hölderlin e Schlegel caminham de mãos
dadas e a modernidade de Beethoven esboça uma dicção insólita,
que ainda não cansamos de tentar
decifrar.
Disco: Bagatelas op. 33, 119, 126
Compositor: Ludwig van Beethoven
Pianista: Alfred Brendel
Lançamento: Philips
Quanto: RÏ 18, em média
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