São Paulo, quarta, 18 de fevereiro de 1998

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As bagatelas de Beethoven

especial para a Folha

"Não é exagero dizer que o ofício do compositor, no caso de Beethoven, torna-se enfaticamente uma maneira de pensar sobre a estrutura e a forma." Essa frase do musicólogo Carl Dahlhaus tem de ser lida no contexto do romantismo alemão (e não, como seria fácil, do estruturalismo, ou pós-estruturalismo atual). Dessa perspectiva, resume a nova dimensão de autoconsciência da música de Beethoven (1770-1827), uma das tantas vertentes de exploração da ironia na primeira geração do romantismo. Bons exemplos dessa música torcida sobre si mesma são os três ciclos de "Bagatelas", op. 33, 119 e 126, que, a despeito do nome, não são ninharias e recebem agora uma gravação exemplar, no CD do pianista Alfred Brendel (Philips).
Grande parte da obra de Beethoven, como a de Bach ou Mozart, está de tal modo integrada à nossa idéia do que seja música que às vezes fica difícil lembrar que ela pertence à cultura, não à natureza, e é criação de um homem, não uma dádiva da terra. Que o próprio Beethoven faz o que pode para combater essa ilusão é só mais um traço admirável do ofício de que fala Dahlhaus; e é em pequenas peças como as "Bagatelas", mais do que nas sinfonias ou concertos, que isso se torna especialmente evidente, até com uma dose de humor.
Virtualmente qualquer coisa, aqui, serve à composição: escalas, arpejos, sequências harmônicas banais, um fragmento de melodia. A "composição" vira a arte de fazer música com esses achados e perdidos. E assim como a música transcende, nos momentos-chave, qualquer lembrança material de seus elementos, ela também faz com que retornem ao estado bruto, sem disfarce, ressaltando ainda mais o trabalho de fazer poesia do nada. As "Bagatelas", nesse sentido, são uma espécie de laboratório de composição, com resultados que vão da extravagância (como nas expectativas frustradas do "Allegro" op. 33/5 ou na harmonia "absurda" das "Miniaturas" op. 119/7, 8 e 10) à vagância sublime das "Miniaturas" op. 126, últimas peças importantes para piano do compositor.
O próprio Alfred Brendel já gravara antes as "Bagatelas" op. 126, num disco de 1984. É impressionante o que 13 anos podem fazer de diferença na interpretação da mesma peça, até para um pianista tão maduro como ele já era.
A nova leitura, mesmo sem contar a superioridade técnica da gravação, tem uma sabedoria diferente, menos perceptível em cada nota do que no senso de conjunto. Tudo cai com uma outra confiança e outro peso. A música parece voltar para dentro de si, encontrar uma definição, depois de tantos anos levemente fora de foco.
O CD forma um apêndice brilhante à segunda integral das sonatas de Beethoven, gravadas recentemente por Brendel para a Philips. Sem ser o pianista favorito de ninguém, Brendel é respeitado e admirado por todos. É um músico muito mais virtuosístico do que normalmente se pensa, em parte, sem dúvida, por conta de sua modéstia pessoal e seriedade de propósito. Simultaneamente lírico e irônico, ele é um intérprete ideal para essa música, em que Hölderlin e Schlegel caminham de mãos dadas e a modernidade de Beethoven esboça uma dicção insólita, que ainda não cansamos de tentar decifrar.

Disco: Bagatelas op. 33, 119, 126
Compositor: Ludwig van Beethoven
Pianista: Alfred Brendel Lançamento: Philips Quanto: RÏ 18, em média



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