São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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Bech vislumbra criador sombrio

MICHIKO KAKUTANI
do "The New York Times"


Se as aventuras ainda inacabadas de Harry (Rabbit) Angstrom oferecem aos leitores uma ampla visão de quatro décadas de vida da classe média americana, as aventuras do outro alter ego de John Updike, Henry Bech, nos deram uma visão menor -um vislumbre, pelo buraco da fechadura- de um modo de vida americano mais elitista: o de um escritor ficcionista menor, acompanhado enquanto abre caminho, desajeitado e aos tropeções, dos conformistas anos 50 para os estridentes anos 70, e deles até os ruidosos e loucos por publicidade anos 90.
A mais recente coletânea das aventuras de Bech, "Bech no Beco", nos traz Bech mais velho, mas nem por isso mais sábio. Como Rabbit, Bech sempre foi propenso a sofrer de apreensão existencial difusa, que sua própria boa sorte modesta não consegue mitigar, e neste volume, assim como em "Rabbit at Rest", essa anomia espiritual evolui e se transforma numa consciência desagradável da mortalidade e das oportunidades perdidas.
Em um de seus momentos mais sombrios, Bech se vê como "uma sanguessuga inútil e amolecida, agarrada à perna da literatura enquanto esta abre caminho em meio a tempos pantanosos".
Não ajuda a fortalecer sua autoconfiança a suspeita de que "seu autor" -ou seja, John Updike- queira "colocá-lo de lado, tirá-lo de sua mesa de trabalho para sempre".
Bech se sentia, escreve Updike em tom ligeiro, "como um experimento cujas substâncias químicas estão prestes a serem despejadas pelo ralo".
Como sugere este trecho, Updike perdeu um pouco de seu entusiasmo por esta sua velha criação, e esse cansaço transparece em diversos momentos.
Embora "Bech no Beco" ostente algumas partes que são um deleite e alguns momentos de brilho intermitente com alguns apartes maravilhosamente espirituosos sobre a vida e a morte literária, a coletânea de contos é extremamente desigual.
Alguns desses contos interligados, como "Bech Preside", são tão maliciosos, cômicos e irônicos quanto qualquer coisa que Updike já tenha escrito sobre escritores, seus egos e o poder minguante da palavra escrita.
Outros, porém, são arquitetados e artificiais, efusões frenéticas, mas estranhamente mecânicas, de um autor que precisa espicaçar-se para ainda importar-se com o que faz.
Em "Bech Noir", por exemplo, Updike transforma Bech num vingador literário que, acompanhado por uma fiel assistente chamada Robin, semeia o terror entre os críticos literários do país, assassinando aqueles que se atrevem a falar mal de seu trabalho. Esse "Bechman" veste capa, brande um "cajado" munido de silenciador e fala coisas como "ele me fez um mundo de mal".
Experimentos mal concebidos como esse impelem a sátira moderada dos livros sobre Bech para o reino mais perigoso da farsa. Não apenas obrigam o pobre e sofredor Bech a tentar aprender novos truques, mas também o transformam numa marionete ridícula, forçada a vestir fantasias bizarras e declamar diálogos fracos.
É quando Bech conserva sua personalidade de costume, seu eu de sempre, auto-absorto, competitivo mas estranhamente melancólico, que esses contos funcionam melhor, levando o leitor a envolver-se nos dilemas próprios de um escritor em processo de envelhecimento que se sente cada vez mais distante do admirável novo mundo digitalizado que o cerca e cada vez mais preocupado com o pequeno legado literário que deixará para seus sucessores, ao mesmo tempo em que se vê, inesperadamente, sendo pai em sua oitava década de vida.
Embora Bech se torne presidente de uma organização artística conhecida como "The Forty" -uma imitação da Academia Francesa, hipoteticamente composta pelos 40 melhores artistas dos EUA-, ele não demora a ver-se presidindo sobre seu fim.
Como o próprio Bech, a organização parece ter se tornado obsoleta, um dinossauro elitista num mundo politicamente correto, movido por computadores e cada vez mais alheio às atrações de arte intelectualizada.
É então que, para sua própria surpresa e a de todo o mundo, Bech recebe o Prêmio Nobel de Literatura. Não importa que o prêmio seja o subproduto não intencional de manobras feitas entre os membros do comitê, não importa que Bech não se sinta merecedor do tributo.
Aos 76 anos de idade ele se prepara para fazer seu discurso de aceitação do Nobel e tem a chance de traçar um resumo de sua própria vida e do estado do mundo.
Embora esses contos dêem destaque à identidade de Bech como romancista judeu (e sua caracterização contém pedaços e partes de Saul Bellow, Norman Mailer e dos dois Roths, Philip e Henry), o escritor a quem ele mais se assemelha é seu criador.
Ao mesmo tempo, porém, as diferenças entre Bech e Updike são enormes. Apesar de seu Nobel, Bech tem fama de autor cult de segundo escalão, enquanto Updike é visto como um dos mais eminentes escritores dos Estados Unidos.
Bech tem uma obra modesta feita de apenas sete livros e interrompida por um bloqueio literário que durou 16 anos; a obra de Updike constitui um compêndio longo (que, até agora, já chega a cerca de quatro dúzias de trabalhos) no qual este volume certamente vai figurar como uma de suas produções menores, apesar de divertidas.


Tradução Clara Allain


Livro: Bech no Beco Autor: John Updike Tradutor: Paulo Henriques Britto Editora: Companhia das Letras Quanto: R$ 26 (264 págs.)


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