|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Bech vislumbra criador sombrio
MICHIKO KAKUTANI
do "The New York Times"
Se as aventuras
ainda inacabadas
de Harry (Rabbit)
Angstrom oferecem aos leitores
uma ampla visão de
quatro décadas de vida da classe
média americana, as aventuras do
outro alter ego de John Updike,
Henry Bech, nos deram uma visão menor -um vislumbre, pelo
buraco da fechadura- de um
modo de vida americano mais elitista: o de um escritor ficcionista
menor, acompanhado enquanto
abre caminho, desajeitado e aos
tropeções, dos conformistas anos
50 para os estridentes anos 70, e
deles até os ruidosos e loucos por
publicidade anos 90.
A mais recente coletânea das
aventuras de Bech, "Bech no Beco", nos traz Bech mais velho,
mas nem por isso mais sábio. Como Rabbit, Bech sempre foi propenso a sofrer de apreensão existencial difusa, que sua própria
boa sorte modesta não consegue
mitigar, e neste volume, assim como em "Rabbit at Rest", essa anomia espiritual evolui e se transforma numa consciência desagradável da mortalidade e das oportunidades perdidas.
Em um de seus momentos mais
sombrios, Bech se vê como "uma
sanguessuga inútil e amolecida,
agarrada à perna da literatura enquanto esta abre caminho em
meio a tempos pantanosos".
Não ajuda a fortalecer sua autoconfiança a suspeita de que "seu
autor" -ou seja, John Updike-
queira "colocá-lo de lado, tirá-lo
de sua mesa de trabalho para
sempre".
Bech se sentia, escreve Updike
em tom ligeiro, "como um experimento cujas substâncias químicas
estão prestes a serem despejadas
pelo ralo".
Como sugere este trecho, Updike perdeu um pouco de seu entusiasmo por esta sua velha criação,
e esse cansaço transparece em diversos momentos.
Embora "Bech no Beco" ostente
algumas partes que são um deleite
e alguns momentos de brilho intermitente com alguns apartes
maravilhosamente espirituosos
sobre a vida e a morte literária, a
coletânea de contos é extremamente desigual.
Alguns desses contos interligados, como "Bech Preside", são tão
maliciosos, cômicos e irônicos
quanto qualquer coisa que Updike já tenha escrito sobre escritores, seus egos e o poder minguante da palavra escrita.
Outros, porém, são arquitetados e artificiais, efusões frenéticas,
mas estranhamente mecânicas,
de um autor que precisa espicaçar-se para ainda importar-se
com o que faz.
Em "Bech Noir", por exemplo,
Updike transforma Bech num
vingador literário que, acompanhado por uma fiel assistente chamada Robin, semeia o terror entre os críticos literários do país,
assassinando aqueles que se atrevem a falar mal de seu trabalho.
Esse "Bechman" veste capa, brande um "cajado" munido de silenciador e fala coisas como "ele me
fez um mundo de mal".
Experimentos mal concebidos
como esse impelem a sátira moderada dos livros sobre Bech para
o reino mais perigoso da farsa.
Não apenas obrigam o pobre e sofredor Bech a tentar aprender novos truques, mas também o transformam numa marionete ridícula, forçada a vestir fantasias bizarras e declamar diálogos fracos.
É quando Bech conserva sua
personalidade de costume, seu eu
de sempre, auto-absorto, competitivo mas estranhamente melancólico, que esses contos funcionam melhor, levando o leitor a
envolver-se nos dilemas próprios
de um escritor em processo de envelhecimento que se sente cada
vez mais distante do admirável
novo mundo digitalizado que o
cerca e cada vez mais preocupado
com o pequeno legado literário
que deixará para seus sucessores,
ao mesmo tempo em que se vê,
inesperadamente, sendo pai em
sua oitava década de vida.
Embora Bech se torne presidente de uma organização artística
conhecida como "The Forty"
-uma imitação da Academia
Francesa, hipoteticamente composta pelos 40 melhores artistas
dos EUA-, ele não demora a ver-se presidindo sobre seu fim.
Como o próprio Bech, a organização parece ter se tornado obsoleta, um dinossauro elitista num
mundo politicamente correto,
movido por computadores e cada
vez mais alheio às atrações de arte
intelectualizada.
É então que, para sua própria
surpresa e a de todo o mundo,
Bech recebe o Prêmio Nobel de
Literatura. Não importa que o
prêmio seja o subproduto não intencional de manobras feitas entre os membros do comitê, não
importa que Bech não se sinta
merecedor do tributo.
Aos 76 anos de idade ele se prepara para fazer seu discurso de
aceitação do Nobel e tem a chance
de traçar um resumo de sua própria vida e do estado do mundo.
Embora esses contos dêem destaque à identidade de Bech como
romancista judeu (e sua caracterização contém pedaços e partes de
Saul Bellow, Norman Mailer e dos
dois Roths, Philip e Henry), o escritor a quem ele mais se assemelha é seu criador.
Ao mesmo tempo, porém, as diferenças entre Bech e Updike são
enormes. Apesar de seu Nobel,
Bech tem fama de autor cult de segundo escalão, enquanto Updike
é visto como um dos mais eminentes escritores dos Estados
Unidos.
Bech tem uma obra modesta
feita de apenas sete livros e interrompida por um bloqueio literário que durou 16 anos; a obra de
Updike constitui um compêndio
longo (que, até agora, já chega a
cerca de quatro dúzias de trabalhos) no qual este volume certamente vai figurar como uma de
suas produções menores, apesar
de divertidas.
Tradução Clara Allain
Livro: Bech no Beco
Autor: John Updike
Tradutor: Paulo Henriques Britto
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 26 (264 págs.)
Texto Anterior: Updike em português Próximo Texto: Mônica Bergamo Índice
|