São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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FILOSOFIA
"Breviário" adere à vida

HÉLIO SCHWARTSMAN
da Equipe de Editorialistas


Por que um ateu contumaz vai ler um livro -a introdução adverte- "de religiosidade e reverência a Deus"? Porque o chefe mandou, é a primeira resposta que surge. Mas esta é, para usar a terminologia escolástico-aristotélica, apenas a "causa efficiens", aquela de onde procede o princípio do movimento, uma causa de valor menor, podendo ser até puramente acidental. Quando, porém, o incréu gosta do que leu, faz-se necessária uma análise mais detida.
Foi este o caso de "Breviário de Meditação", de José da Silva Martins. A obra é composta de três partes. Na primeira, que é o núcleo do livro, o autor oferece curtas reflexões sobre Deus, felicidade e sabedoria a partir de frases de nomes como Tolstói, Schiller, Proust. A escolha das máximas é inspirada, e as glosas que se seguem não ficam atrás.
Se se pode tirar uma tendência geral de comentários de escopos tão variados, esta é, sem dúvida, a vitalidade dos pensamentos. Independentemente do que se pense a respeito de Deus e de como se encare a questão da felicidade, os textos revelam uma "adesão à vida" que só pode ser invejada. E esse é um tema de que Martins entende. Do alto de seus 102 anos, ele figura no "Guiness" como escritor mais idoso a ter publicado seu primeiro livro, aos 84 anos.
É evidente, contudo, que ter 102 anos não credencia ninguém a escrever uma boa obra. É preciso também exibir conteúdo, algo que "Breviário de Meditação" tem. As referências por detrás das reflexões são múltiplas e ecléticas. Há a tradição órfica, Platão, Pascal, livros da Bíblia, algo de filosofia oriental e muito estoicismo, tudo isso temperado por um humanismo com fontes em Gandhi e Luther King.
Seria mais fácil prosseguir na trilha do elogio, mas eu não resisto. As meditações de Martins por vezes pecam pela ingenuidade. Embora esteja longe dos planos do autor criar um sistema, de seus textos emergem contradições que colocam problemas nem sempre enunciados. Um exemplo: como conciliar um Deus que se pretende universal com a tolerância a visões que excluem este Deus? Martins afirma esses dois princípios. Sua harmonização, contudo, é filosoficamente precária.
Talvez haja uma sabedoria mais profunda por trás dessa precariedade. A aceitação de um mundo repleto de contradições é uma das lições do estoicismo de que o autor se apropria. Parece ser também um dos segredos de sua vitalidade. Fora de uma rígida disciplina estóica, como resistir ao desejo de abandonar tudo, em especial quando se acredita que depois há uma outra vida melhor?
Na segunda parte do livro, Martins proporciona ao leitor trechos de alguns de seus autores favoritos. Há desde textos bastante conhecidos, como o Canto 1 de "Os Lusíadas" e "O Sermão da Montanha", até obras mais raras do tipo de "Os Versos de Ouro", da tradição órfica, e "Só a Mente Lúcida Vê o Real", de Krishnamurti.
No última parte, há uma coleção de mais de mil aforismos sobre os mais diversos temas, uma "farmácia moral", como Martins a chama "apud" Voltaire.
"Breviário de Meditações", em que pese sua simplicidade, não é obra fácil. Para acompanhar o raciocínio do autor, é necessário ler e reler os textos várias vezes e até abandoná-los para retornar depois. Não por falta de clareza -a prosa é límpida e precisa-, mas pela aridez do assunto.
Ainda não foi desta vez que encontrei Deus, mas achei uma leitura instigante, o que, para o ímpio, acaba sendo uma das coisas que faz este mundo valer a pena.


Avaliação:   


Livro: Breviário de Meditação Autor: José da Silva Martins Editora: Martin Claret Quanto: R$ 39 (424 págs.)

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