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TESTEMUNHO
Jakob mente para salvar
MARCELO PEN
especial para a Folha
Poucos devem ter
conhecimento da
recente produção
hollywoodiana
"Um Sinal de Esperança", estrelada
pelo anódino Robin Williams.
Nem cativante como "A Vida é
Bela" nem estiloso como "A Lista
de Schindler", o filme patinou nas
bilheterias norte-americanas.
Menos cinéfilos se recordarão
de um longa da Alemanha Oriental, dirigido por Frank Beyer, que
concorreu ao Oscar de Melhor
Filme Estrangeiro, em 1977.
Ambos têm a mesma origem: o
romance de Jurek Becker "Jakob,
o Mentiroso". Lançado em 1969,
narra o dia-a-dia num gueto de
uma cidade ocupada por nazistas.
Muitos agora suspirarão. Mais
um livro sobre o Holocausto!
Mas não se trata disso. Este é"o"
livro sobre o Holocausto. Ou melhor, um dos melhores relatos sobre esse período da História.
Becker passou parte da infância
num gueto, sendo depois transferido para os campos de concentração de Ravensbrück e Sachsenhausen. O reencontro com o pai
em Auschwitz deu-se por meio de
uma instituição humanitária.
Na prosa de Becker, porém, não
há espaço para lamúrias, lugares-comuns ou recriminações. Em
"Jakob, o Mentiroso", o escritor
tece um enredo simples, mas eficiente, que tira sua força quando
confronta pessoas e emoções corriqueiras com o horror de uma situação de todo intolerável.
Jakob Heym ouve num rádio da
SS uma notícia sobre o avanço das
tropas soviéticas. Impelido a contar a boa nova e sabendo que não
acreditariam nas circunstâncias
que o levaram a escutá-la, Jakob
diz possuir, ele próprio, um rádio.
Ora, a posse do aparelho (entre
outras tantas coisas) era proibida
pelos alemães. Sua descoberta
acarretava a pronta execução do
detentor. Assim, da noite para o
dia, Jakob não é mais visto como
um velhote covarde, mas um subversivo. Não mais um joão-ninguém, mas um herói. Seus compatrícios não se contentam com
apenas uma notícia auspiciosa. A
sede de informações faz Jakob inventar ataques, fantasiar batalhas,
fabular vitórias aliadas. Ele aos
poucos percebe que essas histórias alimentam o gueto. Suas
mentiras fabricam a esperança.
De repente, todos ousam divisar
um futuro. O jovem Mischa pede
a mão da namorada. O barbeiro
Kowalsky pensa em diversificar
os negócios. O ator Frankfurter
começa a sonhar com a volta aos
palcos. Os suicídios caem a zero.
"Jakob, o Mentiroso" foi elaborado como roteiro cinematográfico. Depois de vê-lo recusado pelo
DEFA Film Studios alemão, Becker transformou-o em romance.
Da primeira intenção derivam a
força imagética, a ênfase nas cenas, a precisão dos cortes e o suspense. Na guinada para a ficção,
ganhou estofo psicológico, principalmente por meio do uso eficaz do discurso indireto livre.
O livro ultrapassa as fronteiras
do gueto e, como toda grande
obra, alcança interesse geral.
A escada de Jacó é uma conhecida imagem bíblica. Segundo o Gênesis, por ela trafegavam os anjos.
No topo, encontrava-se Deus. Jacó sonhou-a em Betel. Simbolizava sua aliança especial com Javé.
Deus lhe prometera a terra e uma
numerosa posteridade.
A ligação de Jakob Heym com o
éter é o rádio imaginário. Em vez
de anjos, são as mentiras as portadoras das bênçãos celestiais. Nesse contexto, a redenção se torna
muito mais frágil, ainda que viável. Por fim, há dois finais possíveis, um esperançoso, outro
atroz. Livres para optar entre fato
e sonho, somos convidados a
ocupar o lugar de Jakob. E forjar
nossa união com o Eterno.
Avaliação:
Livro: Jakob, o Mentiroso
Autor: Jurek Becker
Tradutor: José Marcos Mariani de
Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (288 págs.)
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