São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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TESTEMUNHO
Jakob mente para salvar

MARCELO PEN
especial para a Folha


Poucos devem ter conhecimento da recente produção hollywoodiana "Um Sinal de Esperança", estrelada pelo anódino Robin Williams. Nem cativante como "A Vida é Bela" nem estiloso como "A Lista de Schindler", o filme patinou nas bilheterias norte-americanas.
Menos cinéfilos se recordarão de um longa da Alemanha Oriental, dirigido por Frank Beyer, que concorreu ao Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, em 1977.
Ambos têm a mesma origem: o romance de Jurek Becker "Jakob, o Mentiroso". Lançado em 1969, narra o dia-a-dia num gueto de uma cidade ocupada por nazistas. Muitos agora suspirarão. Mais um livro sobre o Holocausto!
Mas não se trata disso. Este é"o" livro sobre o Holocausto. Ou melhor, um dos melhores relatos sobre esse período da História.
Becker passou parte da infância num gueto, sendo depois transferido para os campos de concentração de Ravensbrück e Sachsenhausen. O reencontro com o pai em Auschwitz deu-se por meio de uma instituição humanitária.
Na prosa de Becker, porém, não há espaço para lamúrias, lugares-comuns ou recriminações. Em "Jakob, o Mentiroso", o escritor tece um enredo simples, mas eficiente, que tira sua força quando confronta pessoas e emoções corriqueiras com o horror de uma situação de todo intolerável.
Jakob Heym ouve num rádio da SS uma notícia sobre o avanço das tropas soviéticas. Impelido a contar a boa nova e sabendo que não acreditariam nas circunstâncias que o levaram a escutá-la, Jakob diz possuir, ele próprio, um rádio.
Ora, a posse do aparelho (entre outras tantas coisas) era proibida pelos alemães. Sua descoberta acarretava a pronta execução do detentor. Assim, da noite para o dia, Jakob não é mais visto como um velhote covarde, mas um subversivo. Não mais um joão-ninguém, mas um herói. Seus compatrícios não se contentam com apenas uma notícia auspiciosa. A sede de informações faz Jakob inventar ataques, fantasiar batalhas, fabular vitórias aliadas. Ele aos poucos percebe que essas histórias alimentam o gueto. Suas mentiras fabricam a esperança.
De repente, todos ousam divisar um futuro. O jovem Mischa pede a mão da namorada. O barbeiro Kowalsky pensa em diversificar os negócios. O ator Frankfurter começa a sonhar com a volta aos palcos. Os suicídios caem a zero.
"Jakob, o Mentiroso" foi elaborado como roteiro cinematográfico. Depois de vê-lo recusado pelo DEFA Film Studios alemão, Becker transformou-o em romance.
Da primeira intenção derivam a força imagética, a ênfase nas cenas, a precisão dos cortes e o suspense. Na guinada para a ficção, ganhou estofo psicológico, principalmente por meio do uso eficaz do discurso indireto livre.
O livro ultrapassa as fronteiras do gueto e, como toda grande obra, alcança interesse geral.
A escada de Jacó é uma conhecida imagem bíblica. Segundo o Gênesis, por ela trafegavam os anjos. No topo, encontrava-se Deus. Jacó sonhou-a em Betel. Simbolizava sua aliança especial com Javé. Deus lhe prometera a terra e uma numerosa posteridade.
A ligação de Jakob Heym com o éter é o rádio imaginário. Em vez de anjos, são as mentiras as portadoras das bênçãos celestiais. Nesse contexto, a redenção se torna muito mais frágil, ainda que viável. Por fim, há dois finais possíveis, um esperançoso, outro atroz. Livres para optar entre fato e sonho, somos convidados a ocupar o lugar de Jakob. E forjar nossa união com o Eterno.


Avaliação:   


Livro: Jakob, o Mentiroso
Autor: Jurek Becker
Tradutor: José Marcos Mariani de Macedo
Editora: Companhia das Letras
Quanto: R$ 28 (288 págs.)


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