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"Os brasileiros têm o governo que merecem", diz Salgado
da Redação
Na última quarta-feira, após
apresentar o megaprojeto "Êxodos" no Sesc Pompéia, Sebastião
Salgado concedeu entrevista exclusiva à Folha, em que declarou
também ser um refugiado. "Fui
obrigado a sair do Brasil na época
da ditadura", disse. Além disso,
demarcou seu território ideológico ao falar sobre divisão de renda,
política e a comemoração dos 500
anos do Descobrimento. Leia os
principais trechos a seguir.
(EC)
Folha - As imagens de "Êxodos" mostram a falência de sistemas econômicos e políticos
que não conseguem resolver
questões básicas de grande parte da população mundial. Mas
não há também um aspecto
sombrio da natureza humana
que parece necessitar reconhecer no próximo um inimigo?
Sebastião Salgado - Não estou
muito de acordo com essa colocação. Acho que o problema real é o
da distribuição de renda. Esse livro é sobre a história de 85% da
população do mundo. Se houver
uma melhor consciência das pessoas e menos egoísmo para aceitar uma melhor distribuição de
renda, o mundo melhora. Há uns
20 anos, 20% dos países mais ricos eram 75 vezes mais ricos que
20% dos países mais pobres. Hoje
os ricos são 150 vezes mais ricos.
No Brasil, a concentração de
renda é terrível, indecente e imoral. Se as pessoas aceitarem dividir um pouco, elas vão criar uma
condição de vida melhor, inclusive para elas mesmas. Não adianta
nada numa cidade como São Paulo você ter muito e seu filho não
poder sair na rua. Ele vai ser assassinado seguramente. Imagine
se você pudesse continuar indo a
restaurantes e tendo a mesma vida social, sem medo. Sem temer
que seu filho não vá voltar.
Se alguém tem R$ 4 milhões,
pode fazer tudo isso. Se tiver R$
100 milhões, não vai poder comer
mais do que já come. Não vai poder ter mais do que dois carros. A
questão é pensar como é possível
dividir para permitir que os outros também tenham acesso. A
minha esperança com essas fotografias é provocar esse debate.
Folha - Você também poderia
ser um personagem seu. Você
se refugiou na Europa fugindo
do regime militar no Brasil.
Salgado - É verdade. Nasci na
roça (Aimorés - MG), mudei para
a cidade quando tinha 5 anos. Aos
16 anos fui para Vitória, no Espírito Santo. Faço parte da legião de
brasileiros que migraram do meio
rural para o urbano. Até ser obrigado a cruzar a fronteira e ficar 11
anos sem voltar para o Brasil...
Folha - Como "obrigado"?
Salgado - Naquela época eu estava no movimento estudantil, ligado a outros movimentos... Tinha de entrar no pau, na clandestinidade, ou sair do país...
Folha - Você chegou a ser
ameaçado?
Salgado - Bem, vários amigos
em torno começaram a cair e a ser
torturados. Um colega de faculdade apareceu morto. Eu tinha 23
ou 24 anos nessa época. Eu e minha mulher tivemos de sair. O governo brasileiro retirou meu passaporte. Tive de impetrar um
mandado de segurança para recuperar o passaporte. Agora, 31
anos depois que saí do Brasil, ainda sou um estrangeiro morando
num país estrangeiro (França).
Portanto conheço bem essa história que estou contando.
Folha - Sebastião Salgado acabou se tornando uma grife do
mercado de consumo de imagens. Algumas pessoas vêem as
suas fotos em galerias e as compram para colocar na parede de
casa. O que era para gerar indignação se torna objeto de adoração. Isso não joga por terra seu
projeto de promover o debate?
Salgado - Não sei... Para mim,
não. Se a pessoa compra a imagem e a isola como um objeto de
arte... Nunca limitei a tiragem das
minhas fotografias. Vendo para
quem quer comprar uma tiragem
especial, assinada, vendo sim, por
que não? Preciso manter minha
equipe, que é muito cara, são seis
famílias que dependem de mim.
Vender uma fotografia para essa
pessoa tem a função de me fazer
continuar trabalhando.
Como a tiragem não é limitada,
a pessoa pode ter a foto na sua casa, mas, ao mesmo tempo, ela estará em museus, em sindicatos,
enfim, circulando. Não vejo um
paradoxo nisso. Isso é uma barreira que, de vez em quando, querem me colocar como ética. É
uma maneira de me cobrarem,
mas a mim não me toca. Quem
quiser comprar e pagar caro, ótimo. Eu não fiz voto de pobreza e
preciso de dinheiro para sustentar meu trabalho.
Folha - Diariamente a mídia
exibe imagens de tragédias, gerando um excesso de informação. Pensando seu trabalho nesse contexto, você não acha que
esse excesso resulta num efeito
contrário? Ou seja, de tanto ver,
as pessoas já não reagem, e a
catástrofe real tem o mesmo peso de um filme de cinema?
Salgado - De forma alguma. Isso é um ponto de vista, mas não
creio que esteja certo. Vejo muita
afirmação nesse sentido, mas
nunca vi nenhuma pesquisa que
provasse isso.
A imagem é a linguagem universal. Estudei esperanto quando
achavam que essa seria a linguagem universal. Hoje temos o esperanto que é a imagem. O que se
escreve em imagem no Japão pode ser lido no Brasil por qualquer
pessoa. A imagem tem um papel
dentro da sociedade.
Também existe uma grande
parte de imagens que geram desinformação, existe o lado negativo. Mas eu, como um antigo revolucionário (risos), acredito no
processo dialético, nas leis da dialética que regem o universo...
Folha - Uma das imagens que
mais chamam a atenção em
"Êxodos" é a de uma escavadeira recolhendo centenas de corpos de ruandeses mortos no
Congo para enterrá-los numa
vala comum. Como é se deparar
com uma cena dessas, como
equilibrar emoção e técnica?
Salgado - Técnica não existe. A
técnica em fotografia existe quando você começa a fotografar. É
uma variável que, com o tempo,
vira uma constante. Num determinado momento não se pensa
mais em que lente e filme se está
usando. É automático.
Duro mesmo é ver humano
nessas condições. Isso é difícil.
Tem coisa realmente difícil de fotografar. Tem momentos em que
você sai desacreditando de muita
coisa. Quando comecei esse trabalho, acreditava que evolução
era sempre no sentido positivo,
significava só ir na direção de um
futuro mais brilhante. Hoje tenho
certeza de que evolução é tudo.
Podemos estar evoluindo em direção à morte, à destruição total,
mas evoluindo também...
É o caso de São Paulo. Quando
eu vivi aqui, há 30 anos, a cidade
era tranquila, boa de viver. Quando voltei para trabalhar, em 96, vi
que meus amigos daquela época
continuavam vivendo aqui, dentro da violência mais profunda,
correndo risco de vida imenso ao
andar na rua. A capacidade de
adaptação é brutal. E isso é uma
forma de evolução do homem.
Evolução em direção ao fim.
Folha - No texto de apresentação de "Êxodos", você diz que já
acreditou em revolução armada. Depois de andar por onde
andou e ver o que viu, que tipo
de revolução acha possível?
Salgado - Hoje acredito que a
ação tem de ser a mais democrática possível. Acho que os brasileiros têm uma forma muito cômoda de acusar o governo, as autoridades. As autoridades dos brasileiros representam perfeitamente
os brasileiros. Eu acho que existe
nesse país uma omissão muito
grande. Os brasileiros têm o governo que merecem.
Se houvesse um nível de participação mais forte, a gente não teria
permitido que as coisas acontecessem como aconteceram nesse
país. Vejo a violência e a corrupção desse país como doenças, e
toda doença pode ser tratada. A
gente pode tratar isso desde que
todos sejam mais responsáveis.
No Brasil, as pessoas ficam esperando que um decreto vá resolver
o problema delas. Tudo poderia
ser resolvido de uma forma muito
mais simples.
Folha - E os 500 anos do Brasil,
o que há para ser comemorado?
Salgado - Nada. Esse seria o
momento de uma autocrítica. Teria de se discutir a fundo o que
nós, de origem européia, fizemos
com a população que já estava
aqui e, depois, a forma como tratamos a população que trouxemos para trabalhar como escravos. O Brasil tem uma cara de país
simpático, mas é profundamente
racista.
O Brasil precisa reconhecer sua
auto-história. Esse país viveu uma
repressão brutal, na época da ditadura militar. Muitas pessoas foram violentadas e assassinadas.
Hoje é como se nada tivesse acontecido. É como se tivessem apagado essa parte da história. Isso tinha de ser referenciado, mostrado, e os culpados, julgados.
O primeiro ato da chegada do
colono aqui foi cortar uma árvore
para fazer uma cruz. A partir daí
destruiu-se todo o território. A
mata atlântica tem uma das biodiversidades mais sofisticadas do
planeta e está quase extinta. Acho
que essa é uma boa hora para discutir tudo isso seriamente.
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