São Paulo, sábado, 18 de março de 2000


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"Os brasileiros têm o governo que merecem", diz Salgado

da Redação

Na última quarta-feira, após apresentar o megaprojeto "Êxodos" no Sesc Pompéia, Sebastião Salgado concedeu entrevista exclusiva à Folha, em que declarou também ser um refugiado. "Fui obrigado a sair do Brasil na época da ditadura", disse. Além disso, demarcou seu território ideológico ao falar sobre divisão de renda, política e a comemoração dos 500 anos do Descobrimento. Leia os principais trechos a seguir. (EC)

Folha - As imagens de "Êxodos" mostram a falência de sistemas econômicos e políticos que não conseguem resolver questões básicas de grande parte da população mundial. Mas não há também um aspecto sombrio da natureza humana que parece necessitar reconhecer no próximo um inimigo?
Sebastião Salgado -
Não estou muito de acordo com essa colocação. Acho que o problema real é o da distribuição de renda. Esse livro é sobre a história de 85% da população do mundo. Se houver uma melhor consciência das pessoas e menos egoísmo para aceitar uma melhor distribuição de renda, o mundo melhora. Há uns 20 anos, 20% dos países mais ricos eram 75 vezes mais ricos que 20% dos países mais pobres. Hoje os ricos são 150 vezes mais ricos.
No Brasil, a concentração de renda é terrível, indecente e imoral. Se as pessoas aceitarem dividir um pouco, elas vão criar uma condição de vida melhor, inclusive para elas mesmas. Não adianta nada numa cidade como São Paulo você ter muito e seu filho não poder sair na rua. Ele vai ser assassinado seguramente. Imagine se você pudesse continuar indo a restaurantes e tendo a mesma vida social, sem medo. Sem temer que seu filho não vá voltar.
Se alguém tem R$ 4 milhões, pode fazer tudo isso. Se tiver R$ 100 milhões, não vai poder comer mais do que já come. Não vai poder ter mais do que dois carros. A questão é pensar como é possível dividir para permitir que os outros também tenham acesso. A minha esperança com essas fotografias é provocar esse debate.

Folha - Você também poderia ser um personagem seu. Você se refugiou na Europa fugindo do regime militar no Brasil.
Salgado -
É verdade. Nasci na roça (Aimorés - MG), mudei para a cidade quando tinha 5 anos. Aos 16 anos fui para Vitória, no Espírito Santo. Faço parte da legião de brasileiros que migraram do meio rural para o urbano. Até ser obrigado a cruzar a fronteira e ficar 11 anos sem voltar para o Brasil...

Folha - Como "obrigado"?
Salgado -
Naquela época eu estava no movimento estudantil, ligado a outros movimentos... Tinha de entrar no pau, na clandestinidade, ou sair do país...

Folha - Você chegou a ser ameaçado?
Salgado -
Bem, vários amigos em torno começaram a cair e a ser torturados. Um colega de faculdade apareceu morto. Eu tinha 23 ou 24 anos nessa época. Eu e minha mulher tivemos de sair. O governo brasileiro retirou meu passaporte. Tive de impetrar um mandado de segurança para recuperar o passaporte. Agora, 31 anos depois que saí do Brasil, ainda sou um estrangeiro morando num país estrangeiro (França). Portanto conheço bem essa história que estou contando.

Folha - Sebastião Salgado acabou se tornando uma grife do mercado de consumo de imagens. Algumas pessoas vêem as suas fotos em galerias e as compram para colocar na parede de casa. O que era para gerar indignação se torna objeto de adoração. Isso não joga por terra seu projeto de promover o debate?
Salgado -
Não sei... Para mim, não. Se a pessoa compra a imagem e a isola como um objeto de arte... Nunca limitei a tiragem das minhas fotografias. Vendo para quem quer comprar uma tiragem especial, assinada, vendo sim, por que não? Preciso manter minha equipe, que é muito cara, são seis famílias que dependem de mim. Vender uma fotografia para essa pessoa tem a função de me fazer continuar trabalhando.
Como a tiragem não é limitada, a pessoa pode ter a foto na sua casa, mas, ao mesmo tempo, ela estará em museus, em sindicatos, enfim, circulando. Não vejo um paradoxo nisso. Isso é uma barreira que, de vez em quando, querem me colocar como ética. É uma maneira de me cobrarem, mas a mim não me toca. Quem quiser comprar e pagar caro, ótimo. Eu não fiz voto de pobreza e preciso de dinheiro para sustentar meu trabalho.

Folha - Diariamente a mídia exibe imagens de tragédias, gerando um excesso de informação. Pensando seu trabalho nesse contexto, você não acha que esse excesso resulta num efeito contrário? Ou seja, de tanto ver, as pessoas já não reagem, e a catástrofe real tem o mesmo peso de um filme de cinema?
Salgado -
De forma alguma. Isso é um ponto de vista, mas não creio que esteja certo. Vejo muita afirmação nesse sentido, mas nunca vi nenhuma pesquisa que provasse isso.
A imagem é a linguagem universal. Estudei esperanto quando achavam que essa seria a linguagem universal. Hoje temos o esperanto que é a imagem. O que se escreve em imagem no Japão pode ser lido no Brasil por qualquer pessoa. A imagem tem um papel dentro da sociedade.
Também existe uma grande parte de imagens que geram desinformação, existe o lado negativo. Mas eu, como um antigo revolucionário (risos), acredito no processo dialético, nas leis da dialética que regem o universo...

Folha - Uma das imagens que mais chamam a atenção em "Êxodos" é a de uma escavadeira recolhendo centenas de corpos de ruandeses mortos no Congo para enterrá-los numa vala comum. Como é se deparar com uma cena dessas, como equilibrar emoção e técnica?
Salgado -
Técnica não existe. A técnica em fotografia existe quando você começa a fotografar. É uma variável que, com o tempo, vira uma constante. Num determinado momento não se pensa mais em que lente e filme se está usando. É automático.
Duro mesmo é ver humano nessas condições. Isso é difícil. Tem coisa realmente difícil de fotografar. Tem momentos em que você sai desacreditando de muita coisa. Quando comecei esse trabalho, acreditava que evolução era sempre no sentido positivo, significava só ir na direção de um futuro mais brilhante. Hoje tenho certeza de que evolução é tudo. Podemos estar evoluindo em direção à morte, à destruição total, mas evoluindo também...
É o caso de São Paulo. Quando eu vivi aqui, há 30 anos, a cidade era tranquila, boa de viver. Quando voltei para trabalhar, em 96, vi que meus amigos daquela época continuavam vivendo aqui, dentro da violência mais profunda, correndo risco de vida imenso ao andar na rua. A capacidade de adaptação é brutal. E isso é uma forma de evolução do homem. Evolução em direção ao fim.

Folha - No texto de apresentação de "Êxodos", você diz que já acreditou em revolução armada. Depois de andar por onde andou e ver o que viu, que tipo de revolução acha possível?
Salgado -
Hoje acredito que a ação tem de ser a mais democrática possível. Acho que os brasileiros têm uma forma muito cômoda de acusar o governo, as autoridades. As autoridades dos brasileiros representam perfeitamente os brasileiros. Eu acho que existe nesse país uma omissão muito grande. Os brasileiros têm o governo que merecem.
Se houvesse um nível de participação mais forte, a gente não teria permitido que as coisas acontecessem como aconteceram nesse país. Vejo a violência e a corrupção desse país como doenças, e toda doença pode ser tratada. A gente pode tratar isso desde que todos sejam mais responsáveis. No Brasil, as pessoas ficam esperando que um decreto vá resolver o problema delas. Tudo poderia ser resolvido de uma forma muito mais simples.

Folha - E os 500 anos do Brasil, o que há para ser comemorado?
Salgado -
Nada. Esse seria o momento de uma autocrítica. Teria de se discutir a fundo o que nós, de origem européia, fizemos com a população que já estava aqui e, depois, a forma como tratamos a população que trouxemos para trabalhar como escravos. O Brasil tem uma cara de país simpático, mas é profundamente racista.
O Brasil precisa reconhecer sua auto-história. Esse país viveu uma repressão brutal, na época da ditadura militar. Muitas pessoas foram violentadas e assassinadas. Hoje é como se nada tivesse acontecido. É como se tivessem apagado essa parte da história. Isso tinha de ser referenciado, mostrado, e os culpados, julgados.
O primeiro ato da chegada do colono aqui foi cortar uma árvore para fazer uma cruz. A partir daí destruiu-se todo o território. A mata atlântica tem uma das biodiversidades mais sofisticadas do planeta e está quase extinta. Acho que essa é uma boa hora para discutir tudo isso seriamente.


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