São Paulo, sábado, 18 de março de 2006

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LIVROS

Para analista, ameaça de "punição social" explica descompasso entre grande desigualdade e baixo número de reivindicações

Pobres escolhem não se revoltar, diz Santos

DA COORDENAÇÃO DE ARTIGOS E EVENTOS
DA REPORTAGEM LOCAL


A seguir, a continuação da entrevista, em que Wanderley Guilherme dos Santos explica como a sociedade brasileira pune as tentativas organizadas de diminuir a desigualdade. Ele diz que é mais fácil manter e reproduzir situações de grande disparidade social -como a do Brasil- do que outras, menos desiguais.

 

Folha - O que são essas corporações coletivas dos mais pobres? O sr. está falando de sindicatos?
Santos -
Estou me referindo sobretudo a ações coletivas fora dessa estrutura legalizada -não que sejam ilegais. Refiro-me a associações de bairros, de áreas deterioradas entregues ao tráfico. Estou me referindo às populações discriminadas: mulheres, negros etc.
Estou me referindo a uma certa parcela da população em que o número de demandas é bem menor do que os indicadores de desigualdade fariam esperar. A meu juízo, a razão é essa: há um risco implícito à ação coletiva.

Folha - O que piora na vida dos pobres quando ações fracassam?
Santos -
Deixe eu dar um exemplo histórico: as ligas camponesas na década de 50 no Brasil. O que elas faziam? O campesinato não tinha nenhuma legislação trabalhista, nenhuma cobertura até a década de 70 e 80. As ligas, em seu início, organizaram a mobilização coletiva tendo em vista obter a extensão ao campo da legislação trabalhista. O resultado, nas regiões em que essas ações não foram bem-sucedidas -no sentido de constituírem um grupo coeso e capaz de obter decisões do Judiciário a eles favoráveis-, é que essas pessoas, os camponeses que militavam, foram submetidas à perda de emprego, ao assassinato.
Outro exemplo: as lideranças operárias da área urbana que desejavam constituir sindicato, durante a República Velha, quando não conseguiam, passavam a integrar listas que circulavam entre o chefe de polícia e o empresariado. Não obtinham mais emprego. São exemplos do custo embutido na ação coletiva das classes subalternas quando são malsucedidas.

Folha - No livro, o sr. diz que há a necessidade de uma rede de proteção para tornar o custo menor.
Santos -
A rede de proteção é constitucional. O que eu digo é que a origem desse custo implícito do fracasso da ação coletiva é o fato de que os preceitos da Constituição e da legislação em vigor no país não são igualmente consumidos por todos os membros da população brasileira. As classes subalternas não têm essa proteção da Constituição. Um problema institucional grave no país é sua desconstitucionalização recente.

Folha - Como assim "recente"?
Santos -
A eficácia dos preceitos constitucionais era maior no período anterior à ditadura. A taxa de exclusão no país era bem maior, mas, para os incluídos, a Constituição funcionava relativamente bem. Hoje, a população está incluída, no sentido político, eleitoral da palavra. Está incorporada ao mercado capitalista de trabalho. Mas as instituições que deveriam garantir a eficácia dos preceitos legais do país não acompanharam essa evolução.

Folha - Essa questão do risco, que essa defasagem constitucional tornaria maior, não existia como ponto de partida em todos os países? Os pobres em outras partes não foram capazes de reverter isso?
Santos -
Esse problema sempre existiu na organização das classes subalternas em todos os países. Mas o tempo de vigência [no caso dos países ricos] foi curto.
E teríamos que ver também a peculiaridade do nosso crescimento econômico. Hoje, a parte rica do país -na ponta do lápis, numa análise mecanicista- dispensa a grande massa. Uma parte pequena da classe média já é grande o suficiente para garantir crescimento sustentado. O tamanho do mercado não é impedimento mais para o crescimento do país. Nos países ricos, esse fenômeno nunca existiu. Houve um momento em que a necessidade de ampliar o mercado interno foi fundamental.
A partir de meados do século 19 na Inglaterra, por exemplo, você teve uma coligação real de interesses políticos entre o empresariado ligado à Revolução Industrial mais o operariado urbano, numa coligação que se constituía contra a parte conservadora. O preço de aumentar o mercado interno inglês veio associado a conquistas também do ponto de vista político. Você não tem isso aqui.

Folha - O que é preciso fazer no Brasil?
Santos -
O ponto de ataque fundamental é a constitucionalização do país. De maneira que os preceitos fundamentais se tornem o estado de natureza no Brasil. Isso requer uma capacidade de ação estatal muito elevada. O Estado brasileiro é muito frágil. Ele não tem condição de assegurar o usufruto desses bens. Não tem como assegurar isso nas áreas periféricas das cidades, na fronteira econômica do país. Nas favelas, por exemplo, você tem o estado de natureza hobbesiano. O tráfico é um obstáculo hoje à constitucionalização do país.

Folha - É possível esperar que o voto pressione por isso?
Santos -
Creio que as pessoas votam no Brasil não por conta disso. O voto, como moeda de troca, tem outra expectativa de retorno. O voto explicitamente conectado a esse assunto não existe.

Folha - É possível dizer que é mais fácil reproduzir essa realidade de enorme diferença social do que uma em que as diferenças fossem menores?
Santos -
Sem dúvida. Um dos riscos do Brasil é esse mesmo. Você tem uma possibilidade muito elevada de que as coisas se reproduzam como estão.
Ainda não foi constituída no Brasil -embora haja enormes parcelas da população que não estão comprometidas com esse estado de coisas- uma coalizão política autoconsciente disso. Essas parcelas não estão politicamente organizadas, unificadas num projeto de modificação do status quo nesse particular.

Folha - O PT não foi isso durante um tempo? Representante de uma coalizão política que não está interessada nesse estado de coisas?
Santos -
Não. Talvez o PT, entre os grandes partidos, seja o partido mais longe de questões constitucionais que eu conheça. Na sua trajetória, foi um partido que sempre considerou problemas institucionais de secundaríssima importância. O problema do PT, até recentemente, era o problema da democracia substantiva, contra os formalismos -o Parlamento era uma bobagem. Está longe de ter consciência da eficácia causal das instituições.

Folha - Essa idéia, do papel causal das instituições, no Brasil, não está nem na esquerda nem na direita?
Santos -
Não está. Mas também não sou favorável a um partido "pela constitucionalização do país". Isso tem que estar num pacote. Há várias coisas que podem favorecer isso. Um outro padrão de crescimento econômico, por exemplo, pode ajudar.


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