|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Para analista, ameaça de "punição social" explica descompasso entre grande desigualdade e baixo número de reivindicações
Pobres escolhem não se revoltar, diz Santos
DA COORDENAÇÃO DE ARTIGOS E EVENTOS
DA REPORTAGEM LOCAL
A seguir, a continuação da entrevista, em que Wanderley Guilherme dos Santos explica como a
sociedade brasileira pune as tentativas organizadas de diminuir a
desigualdade. Ele diz que é mais
fácil manter e reproduzir situações de grande disparidade social
-como a do Brasil- do que outras, menos desiguais.
Folha - O que são essas corporações coletivas dos mais pobres? O
sr. está falando de sindicatos?
Santos - Estou me referindo sobretudo a ações coletivas fora dessa estrutura legalizada -não que
sejam ilegais. Refiro-me a associações de bairros, de áreas deterioradas entregues ao tráfico. Estou
me referindo às populações discriminadas: mulheres, negros etc.
Estou me referindo a uma certa
parcela da população em que o
número de demandas é bem menor do que os indicadores de desigualdade fariam esperar. A meu
juízo, a razão é essa: há um risco
implícito à ação coletiva.
Folha - O que piora na vida dos
pobres quando ações fracassam?
Santos - Deixe eu dar um exemplo histórico: as ligas camponesas
na década de 50 no Brasil. O que
elas faziam? O campesinato não
tinha nenhuma legislação trabalhista, nenhuma cobertura até a
década de 70 e 80. As ligas, em seu
início, organizaram a mobilização
coletiva tendo em vista obter a extensão ao campo da legislação trabalhista. O resultado, nas regiões
em que essas ações não foram
bem-sucedidas -no sentido de
constituírem um grupo coeso e
capaz de obter decisões do Judiciário a eles favoráveis-, é que
essas pessoas, os camponeses que
militavam, foram submetidas à
perda de emprego, ao assassinato.
Outro exemplo: as lideranças
operárias da área urbana que desejavam constituir sindicato, durante a República Velha, quando
não conseguiam, passavam a integrar listas que circulavam entre
o chefe de polícia e o empresariado. Não obtinham mais emprego.
São exemplos do custo embutido
na ação coletiva das classes subalternas quando são malsucedidas.
Folha - No livro, o sr. diz que há a
necessidade de uma rede de proteção para tornar o custo menor.
Santos - A rede de proteção é
constitucional. O que eu digo é
que a origem desse custo implícito do fracasso da ação coletiva é o
fato de que os preceitos da Constituição e da legislação em vigor no
país não são igualmente consumidos por todos os membros da população brasileira. As classes subalternas não têm essa proteção
da Constituição. Um problema
institucional grave no país é sua
desconstitucionalização recente.
Folha - Como assim "recente"?
Santos - A eficácia dos preceitos
constitucionais era maior no período anterior à ditadura. A taxa
de exclusão no país era bem
maior, mas, para os incluídos, a
Constituição funcionava relativamente bem. Hoje, a população está incluída, no sentido político,
eleitoral da palavra. Está incorporada ao mercado capitalista de
trabalho. Mas as instituições que
deveriam garantir a eficácia dos
preceitos legais do país não acompanharam essa evolução.
Folha - Essa questão do risco, que
essa defasagem constitucional tornaria maior, não existia como ponto de partida em todos os países?
Os pobres em outras partes não foram capazes de reverter isso?
Santos - Esse problema sempre
existiu na organização das classes
subalternas em todos os países.
Mas o tempo de vigência [no caso
dos países ricos] foi curto.
E teríamos que ver também a
peculiaridade do nosso crescimento econômico. Hoje, a parte
rica do país -na ponta do lápis,
numa análise mecanicista- dispensa a grande massa. Uma parte
pequena da classe média já é
grande o suficiente para garantir
crescimento sustentado. O tamanho do mercado não é impedimento mais para o crescimento
do país. Nos países ricos, esse fenômeno nunca existiu. Houve
um momento em que a necessidade de ampliar o mercado interno foi fundamental.
A partir de meados do século 19
na Inglaterra, por exemplo, você
teve uma coligação real de interesses políticos entre o empresariado ligado à Revolução Industrial mais o operariado urbano,
numa coligação que se constituía
contra a parte conservadora. O
preço de aumentar o mercado interno inglês veio associado a conquistas também do ponto de vista
político. Você não tem isso aqui.
Folha - O que é preciso fazer no
Brasil?
Santos - O ponto de ataque fundamental é a constitucionalização
do país. De maneira que os preceitos fundamentais se tornem o
estado de natureza no Brasil. Isso
requer uma capacidade de ação
estatal muito elevada. O Estado
brasileiro é muito frágil. Ele não
tem condição de assegurar o usufruto desses bens. Não tem como
assegurar isso nas áreas periféricas das cidades, na fronteira econômica do país. Nas favelas, por
exemplo, você tem o estado de natureza hobbesiano. O tráfico é um
obstáculo hoje à constitucionalização do país.
Folha - É possível esperar que o
voto pressione por isso?
Santos - Creio que as pessoas votam no Brasil não por conta disso.
O voto, como moeda de troca,
tem outra expectativa de retorno.
O voto explicitamente conectado
a esse assunto não existe.
Folha - É possível dizer que é mais
fácil reproduzir essa realidade de
enorme diferença social do que
uma em que as diferenças fossem
menores?
Santos - Sem dúvida. Um dos
riscos do Brasil é esse mesmo. Você tem uma possibilidade muito
elevada de que as coisas se reproduzam como estão.
Ainda não foi constituída no
Brasil -embora haja enormes
parcelas da população que não estão comprometidas com esse estado de coisas- uma coalizão
política autoconsciente disso. Essas parcelas não estão politicamente organizadas, unificadas
num projeto de modificação do
status quo nesse particular.
Folha - O PT não foi isso durante
um tempo? Representante de uma
coalizão política que não está interessada nesse estado de coisas?
Santos - Não. Talvez o PT, entre
os grandes partidos, seja o partido
mais longe de questões constitucionais que eu conheça. Na sua
trajetória, foi um partido que
sempre considerou problemas
institucionais de secundaríssima
importância. O problema do PT,
até recentemente, era o problema
da democracia substantiva, contra os formalismos -o Parlamento era uma bobagem. Está
longe de ter consciência da eficácia causal das instituições.
Folha - Essa idéia, do papel causal
das instituições, no Brasil, não está
nem na esquerda nem na direita?
Santos - Não está. Mas também
não sou favorável a um partido
"pela constitucionalização do
país". Isso tem que estar num pacote. Há várias coisas que podem
favorecer isso. Um outro padrão
de crescimento econômico, por
exemplo, pode ajudar.
Texto Anterior: Desigual e acomodado Próximo Texto: Paradoxos Índice
|