São Paulo, sábado, 18 de março de 2006

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LIVROS

"NEW WEIRD"


Saturada de clichês, ficção científica se volta para mistura ilimitada de gêneros, incluindo faroeste e policial

Nova onda atualiza a literatura fantástica

THALES DE MENEZES
ESPECIAL PARA A FOLHA

Cuidado. Você pode ler por aí que "new weird" ("nova esquisitice") é um recém-nascido movimento da literatura de fantasia e ficção científica, o futuro desses gêneros, espécie de nova onda depois do cyberpunk surgido nos anos 80 e esquecido nos anos 90. Desconfie. "New weird" não é nada disso. Ou talvez seja. Os fóruns de discussão pipocam na internet, totalmente inconclusivos. Algumas facções até defendem que o "new weird" não existe. Mas ele está aí. O desafio é classificá-lo.
Não se trata de um movimento. Um manifesto "new weird" não teria sentido. Afinal, os escritores arrolados sob esse rótulo não estão dispostos a ditar regras. Eles querem, na verdade, quebrar todas elas.
Explicando: o que caracteriza esses autores é a mistura ilimitada de gêneros. Aos elementos tradicionais da ficção científica, eles agregam thriller político, romance histórico, personagens reais, faroeste, diários de viagem, policial noir e o que mais estiver à disposição. Tudo para libertar a literatura fantástica dos clichês que infestam hoje as prateleiras de livraria dedicadas ao gênero.
Que clichês são esses? Gnomos, elfos, dragões, feiticeiros, clones, universos inteiros que são simulacros da realidade... Pois é, quem pensou em "O Senhor dos Anéis" e "Matrix" acertou em cheio. Mesmo involuntariamente, essas obras aprisionaram a literatura fantástica numa fórmula acomodada. O carimbo "new weird" avaliza livros que são focos de resistência aos subprodutos de J. R. R. Tolkien.

Origem em Lovecraft
Erra feio quem pensa que "new weird" é só uma reunião de jovens iconoclastas. Os críticos que cunharam e defendem o rótulo vão buscar sua origem na primeira metade do século passado, nos livros do americano H.P. Lovecraft (1890-1937). Ele misturou ficção científica, horror e fantasia numa pulp fiction em que aliens são deuses e monstros são anjos caídos. Cronologicamente, as características "new weird" voltam a aparecer na série "Gormenghast", novelas góticas publicadas nos anos 40 e 50 pelo britânico Mervyn Peake (1911-1965).
Respeitados esses pioneiros, é possível falar dos jovens da turma. Um deles é o italiano Valerio Evangelisti, 53, que tem sua obra mais badalada lançada agora no Brasil (leia texto ao lado). "O Inquisidor" vai da Espanha do século 14 a uma viagem interplanetária em 2194. É o primeiro dos oito livros que Evangelisti já escreveu com seu personagem favorito. O prestígio de Evangelisti entre os seguidores do "new weird" só perde para o de China Miéville, um inglês de 36 anos, cabeça raspada e pinta de DJ. Ele virou gênio com apenas quatro livros, três deles ambientados na futurista New Crobuzon. Sua obra mais recente, "Iron Council" (conselho de ferro), mostra um conflito análogo à intervenção americana no Iraque. Um dos capítulos descreve uma revolta na cidade que reproduz as manifestações estudantis de 1968 na França. E a prefeita de New Crobuzon é igualzinha a Margareth Thatcher.

Stephen King
É curioso descobrir que essa estética, usada para combater o mainstream da literatura, possa influenciar um dos escritores mais populares do planeta. Stephen King partiu para uma intensa mistura de gêneros em sua pretensiosa saga "A Torre Negra", que já teve cinco de seus sete pesados volumes lançados no Brasil.
King fez uma salada com pistoleiros de faroeste e um menino-fantasma num mundo pós-apocalíptico descaradamente copiado da Terra Média de J.R.R. Tolkien (a ponto de chamar esse lugar de "Mundo Médio"). King rejeita a etiqueta "new weird". Outros menos famosos também, como o australiano K. J. Bishop e o inglês Ian R. Macleod, embora suas obras entrem em toda lista do gênero que seja buscada na internet.
O mais importante é que o rótulo "pegou" e ultrapassa os limites da literatura. Já se fala em "new weird" na música, no cinema, na TV e nos quadrinhos. Talvez seja um exagero, mas parece que os livros de teoria literária terão de ser reescritos para contemplar algo novo e esquisito.


Thales de Menezes é redator-chefe da revista "VIP" (Editora Abril)

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