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A encruzilhada do gourmet
CRÍTICO DA FOLHA
Quanto mais rápido se aproxima o fim dos tempos -algo
que a humanidade vem diligentemente produzindo-, mais os
gourmets (e não gourmets,
também) se defrontam com o
problema da extinção de suas
iguarias. Normalmente, provocadas por eles mesmos.
O problema é antigo, mas ganha feições cada vez mais dramáticas. Antes, os produtos desapareciam por meio de mecanismos muito simples -consumia-se desmesuradamente, e
eles acabavam. Agora mesmo,
esse fenômeno simples de
exaustão de recursos está ocorrendo com produtos como o caviar (que depende da sobrevivência do ameaçado esturjão),
as trufas (que dependem da
existência dos cada vez menores bosques de carvalho), o toro
(barriga do atum gordo bluefin,
em extinção devido à pesca desordenada).
No caso do salmão, o caminho é diferente, até paradoxal.
Ele está ameaçado justamente
por estar sendo cultivado. No
hemisfério Norte há campanhas que dizem: não coma salmão de criação. Aqui no nosso
terreiro, a opção é mais incômoda -não há salmão selvagem à venda. "Estamos planejando importar diretamente,
com nossa marca, salmão selvagem e hadoque da Noruega",
diz Tadeu Masano, do restaurante de peixes Amadeus. "Mas
pelo que vimos, o preço será pesado." Enquanto ele não chega,
o que fazer? Param todos de comer o peixe?
O gourmet mais esnobe pode
se dar o luxo de só comer salmão ("wild salmon, of course")
em seus giros por Londres ou
Nova York. Já o politicamente
correto se recusa a atacar o
equilíbrio do planeta ou a compactuar com os maus-tratos
das fazendas de salmão. Para
serem coerentes, uns e outros
teriam de parar de comer (ou
servir) não somente o salmão
como também os frangos (criados em caixotes), o sushi de toro, a carne de bois trucidados e
criados em pastagens que
ameaçam o ecossistema, o porco feito de anabolizantes e antibióticos e até mesmo o queijinho da soja que está dizimando
o equilíbrio natural do Centro-Oeste e da Amazônia.
Tal privação pode trazer um
conforto individual e amenizar
a culpa do gourmet. Que, se for
rico o bastante, poderá comer
somente produtos colhidos ou
criados em sua própria fazenda. Mas cada vez mais, a solução (se existe), nem um pouco
fácil, não é a imolação do paladar individual, mas medidas
políticas em relação ao gosto e à
alimentação, que possam mudar radicalmente o sistema alimentar de bilhões de pessoas.
Aliás, neste fim de semana,
tem encontro do Slow Food,
em Brasília, com a presença de
seu fundador: um movimento
que olha a gastronomia com
viés intensamente político. É
chato misturar o prazer da mesa com política, pouco digestivo. Mas neste estado do mundo, se houver saída, é por aí.
(JOSIMAR MELO)
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