São Paulo, quarta-feira, 18 de abril de 2001

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MARCELO COELHO

"O Chamado de Deus" opõe católicos progressistas a carismáticos

É muito difícil ser imparcial quando o assunto é religião. Sempre que me meto a falar disso, meu sangue ferve -como se já estivesse cozinhando no caldeirão em que passarei a eternidade.
Ainda assim, não tendo religião nenhuma, fico razoavelmente neutro quando vejo a disputa entre católicos carismáticos e os adeptos da teologia da libertação. Neutro? Nem tanto. Politicamente, simpatizo mais com a igreja progressista. Não me escandalizo muito, todavia, com o padre Marcelo.
Acho que essas missas com ar de megashow certamente fazem bem às pessoas, e, se há marketing nisso, o que é que não é marketing, afinal? E como saber quem está mais perto da "verdadeira" religião? Os que investem em celebrações eletrônicas ou os que lutam contra o latifúndio?
Não gostaria de discutir esse ponto. Escrevo apenas para esclarecer com que espírito fui assistir ao documentário de José Joffily, "O Chamado de Deus", que estreou neste feriado em São Paulo.
O filme trata de cinco seminaristas. Dois do Nordeste, identificados com o clero progressista, e três do Sudeste, mais próximos da Renovação Carismática. Eles contam como resolveram seguir a vocação sacerdotal.
O bonito no documentário é que, seja qual for nossa opinião sobre o catolicismo, sejam quais forem nossas simpatias, pelo lado conservador ou pelo progressista, as questões teológicas e ideológicas rapidamente desaparecem. Mais do que seminaristas, do que carismáticos, do que progressistas, vemos pessoas -frágeis e felizes, simplórias e complexas.
"O Chamado de Deus" desarma nossos preconceitos, mas não paralisa nosso julgamento. A primeira cena do filme é decisiva nesse aspecto.
Vemos um rapaz falando de evangelização, de conscientização do povo, de justiça social -enfim, um discurso bastante conhecido-, ao mesmo tempo em que pinta seu rosto com maquiagem de palhaço. O contraste entre a unção religiosa e a máscara circense é, claro, muito forte.
Forte demais para "ser verdade", se podemos dizer assim. Ficamos em dúvida, no começo, se o diretor de fato quis explorar esse contraste intencionalmente, se haveria nessa cena uma intenção de significado, mais ou menos assim: "quem acredita nesses chavões religiosos é uma pessoa ridícula, está fazendo papel de palhaço etc".
Mas isso seria de uma ironia tão pesada, tão brutal, que recuamos diante da interpretação que começamos a fazer. Vemos em seguida que o seminarista com cara de palhaço vai participar de um espetáculo de "conscientização popular" a ser apresentado depois de uma missa.
Não importa. Já na primeira cena, José Joffily conseguiu o que queria. Quanto mais seus personagens se cobrem de uma maquiagem, de uma máscara, de um discurso religioso, mais os vemos como pessoas reais.
Pois ridicularizar esses seminaristas ou duvidar do que dizem seria tão pesado e brutal quanto entender a primeira cena do filme do jeito que descrevi, "teologia da libertação é igual a palhaçada".
Torna-se imediata, assim, nossa disposição para respeitar cada um dos garotos do filme. Percebemos na hora que a câmera não irá fazer "espertezas", não irá explorar contradições entre o que se diz e o que se faz; não será irônica, oblíqua, mordaz.
Tudo se filma de coração aberto. Os seminaristas falam com ingenuidade, mas sem burrice, de seu "chamado" religioso. O jogo crítico, o espírito da contradição e da dúvida, não aparece na linguagem do diretor, não surge como intervenção externa aos personagens.
Surge, entretanto, do debate, do contraponto real em que se envolvem, de um lado, os jovens progressistas e, de outro, os carismáticos. O diretor faz com que os progressistas assistam a um vídeo com os depoimentos dos carismáticos e vice-versa. Ouvimos, então, as opiniões -desfavoráveis, é claro- que uns têm dos outros.
O conflito ideológico entre os católicos é forte, sem dúvida. Mas a imparcialidade do filme, encarregando uns de desconfiarem dos outros, torna tudo menos frieza, distância e ceticismo. Ao contrário, o filme parece aproximar-se de seu objeto, mais do que qualquer partidarismo seria capaz de fazer.
Vemos, por exemplo, como são parecidos os motivos, o perfil psicológico, as famílias, a origem social de todos os retratados no filme. Uns dizem que respondem ao "chamado de Deus", outros que respondem a um "chamado da sociedade" -no sentido em que esta é iníqua e pouco tem a ver com os ensinamentos do Evangelho. Mas, a despeito das formulações políticas distintas, coisas muito semelhantes parecem estar em jogo.
Um grande apego à família, por exemplo, tanto mais intenso quanto mais negado e superado na prática. Pois escolher o seminário exige uma ruptura não só com os pais, mas com a perspectiva de casar e ter filhos.
Certamente o celibato religioso é tanto um problema quanto uma solução para esses jovens. Em alguns deles, há uma insegurança quanto à própria identidade sexual, muito visível para o espectador, mas que talvez nem eles mesmos saibam reconhecer.
Fazer uma análise psicológica dessas vocações seria, entretanto, uma indelicadeza que o filme não comete. "O Chamado de Deus" não se investe de nenhuma superioridade fácil sobre seus personagens e aquilo que dizem. Sugere mais convergências do que divergências entre carismáticos e progressistas; entende-os igualmente, trata-os -para usar o vocabulário cristão- com um verdadeiro amor ao próximo. Despojar-se das próprias convicções é algo que religioso nenhum, imagino, esteja disposto a fazer; mas o filme nos convida a ter essa humildade.


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