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MARCELO COELHO
"O Chamado de Deus" opõe católicos progressistas a carismáticos
É muito difícil ser imparcial
quando o assunto é religião.
Sempre que me meto a falar disso,
meu sangue ferve -como se já estivesse cozinhando no caldeirão
em que passarei a eternidade.
Ainda assim, não tendo religião
nenhuma, fico razoavelmente
neutro quando vejo a disputa entre católicos carismáticos e os
adeptos da teologia da libertação.
Neutro? Nem tanto. Politicamente, simpatizo mais com a igreja
progressista. Não me escandalizo
muito, todavia, com o padre Marcelo.
Acho que essas missas com ar de
megashow certamente fazem
bem às pessoas, e, se há marketing
nisso, o que é que não é marketing, afinal? E como saber quem
está mais perto da "verdadeira"
religião? Os que investem em celebrações eletrônicas ou os que lutam contra o latifúndio?
Não gostaria de discutir esse
ponto. Escrevo apenas para esclarecer com que espírito fui assistir
ao documentário de José Joffily,
"O Chamado de Deus", que estreou neste feriado em São Paulo.
O filme trata de cinco seminaristas. Dois do Nordeste, identificados com o clero progressista, e
três do Sudeste, mais próximos da
Renovação Carismática. Eles
contam como resolveram seguir a
vocação sacerdotal.
O bonito no documentário é
que, seja qual for nossa opinião
sobre o catolicismo, sejam quais
forem nossas simpatias, pelo lado
conservador ou pelo progressista,
as questões teológicas e ideológicas rapidamente desaparecem.
Mais do que seminaristas, do que
carismáticos, do que progressistas, vemos pessoas -frágeis e felizes, simplórias e complexas.
"O Chamado de Deus" desarma
nossos preconceitos, mas não paralisa nosso julgamento. A primeira cena do filme é decisiva
nesse aspecto.
Vemos um rapaz falando de
evangelização, de conscientização do povo, de justiça social
-enfim, um discurso bastante
conhecido-, ao mesmo tempo
em que pinta seu rosto com maquiagem de palhaço. O contraste
entre a unção religiosa e a máscara circense é, claro, muito forte.
Forte demais para "ser verdade", se podemos dizer assim. Ficamos em dúvida, no começo, se o
diretor de fato quis explorar esse
contraste intencionalmente, se
haveria nessa cena uma intenção
de significado, mais ou menos assim: "quem acredita nesses chavões religiosos é uma pessoa ridícula, está fazendo papel de palhaço etc".
Mas isso seria de uma ironia
tão pesada, tão brutal, que recuamos diante da interpretação que
começamos a fazer. Vemos em seguida que o seminarista com cara
de palhaço vai participar de um
espetáculo de "conscientização
popular" a ser apresentado depois de uma missa.
Não importa. Já na primeira cena, José Joffily conseguiu o que
queria. Quanto mais seus personagens se cobrem de uma maquiagem, de uma máscara, de um
discurso religioso, mais os vemos
como pessoas reais.
Pois ridicularizar esses seminaristas ou duvidar do que dizem
seria tão pesado e brutal quanto
entender a primeira cena do filme
do jeito que descrevi, "teologia da
libertação é igual a palhaçada".
Torna-se imediata, assim, nossa
disposição para respeitar cada
um dos garotos do filme. Percebemos na hora que a câmera não
irá fazer "espertezas", não irá explorar contradições entre o que se
diz e o que se faz; não será irônica, oblíqua, mordaz.
Tudo se filma de coração aberto. Os seminaristas falam com ingenuidade, mas sem burrice, de
seu "chamado" religioso. O jogo
crítico, o espírito da contradição e
da dúvida, não aparece na linguagem do diretor, não surge como intervenção externa aos personagens.
Surge, entretanto, do debate, do
contraponto real em que se envolvem, de um lado, os jovens progressistas e, de outro, os carismáticos. O diretor faz com que os
progressistas assistam a um vídeo
com os depoimentos dos carismáticos e vice-versa. Ouvimos, então,
as opiniões -desfavoráveis, é
claro- que uns têm dos outros.
O conflito ideológico entre os
católicos é forte, sem dúvida. Mas
a imparcialidade do filme, encarregando uns de desconfiarem dos
outros, torna tudo menos frieza,
distância e ceticismo. Ao contrário, o filme parece aproximar-se
de seu objeto, mais do que qualquer partidarismo seria capaz de
fazer.
Vemos, por exemplo, como são
parecidos os motivos, o perfil psicológico, as famílias, a origem social de todos os retratados no filme. Uns dizem que respondem ao
"chamado de Deus", outros que
respondem a um "chamado da
sociedade" -no sentido em que
esta é iníqua e pouco tem a ver
com os ensinamentos do Evangelho. Mas, a despeito das formulações políticas distintas, coisas
muito semelhantes parecem estar
em jogo.
Um grande apego à família, por
exemplo, tanto mais intenso
quanto mais negado e superado
na prática. Pois escolher o seminário exige uma ruptura não só
com os pais, mas com a perspectiva de casar e ter filhos.
Certamente o celibato religioso
é tanto um problema quanto
uma solução para esses jovens.
Em alguns deles, há uma insegurança quanto à própria identidade sexual, muito visível para o espectador, mas que talvez nem eles
mesmos saibam reconhecer.
Fazer uma análise psicológica
dessas vocações seria, entretanto,
uma indelicadeza que o filme não
comete. "O Chamado de Deus"
não se investe de nenhuma superioridade fácil sobre seus personagens e aquilo que dizem. Sugere
mais convergências do que divergências entre carismáticos e progressistas; entende-os igualmente,
trata-os -para usar o vocabulário cristão- com um verdadeiro
amor ao próximo. Despojar-se
das próprias convicções é algo que
religioso nenhum, imagino, esteja
disposto a fazer; mas o filme nos
convida a ter essa humildade.
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