São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 2002

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A lente distorcida de Botero


Colombiano faz 50 anos de pintura, ganha documentário e comenta em entrevista suas polêmicas idéias sobre arte


CASSIANO ELEK MACHADO
DA REPORTAGEM LOCAL

Olhar pinturas de Fernando Botero pode ser como encarar um daqueles espelhos distorcíveis dos velhos parques de diversão.
O grande público vem espiando as volumosas figuras do colombiano e achando graça, muita graça. A pequena fileira de críticos de arte respeitáveis, por sua vez, olha e enxerga apenas aberrações.
Seja lá qual for a lente adotada, não se discute que Botero, que está completando 50 anos de pintura, é um dos artistas mais famosos do mundo e que uma de suas telas de personagens volumosos, que começaram valendo magros US$ 20, pode custar US$ 1,5 milhão.
Esse processo "da água ao vinho" é o núcleo de um documentário feito sobre o artista com a grife norte-americana "Biography", que será exibido amanhã na TV paga brasileira.
"Videobiografia" convencional, "Botero, o Monumental" não dá espaço para as críticas mordazes feitas ao artista, mas em uma hora de programa cabem elogios de amigos e parentes e generosas imagens das mostras de "esculturas monumentais" de Botero na Champs Elysées parisiense e na Park Avenue nova-iorquina, semelhantes à que ele monta este ano no Grande Canal de Veneza, uma das residências dele.
O artista mora, no verão, na Itália, no inverno, em Paris, e, no resto das estações, entre suas casas em Montecarlo, México, Colômbia (hoje abandonada, por "medo de sequestros") e Nova York, de onde ele deu uma de suas raras entrevistas, para a Folha.
Na conversa, o pintor e escultor de 70 anos revelou idéias polêmicas, como suas obras. Disse que a arte não deve revelar dramas internos do artista nem tentar mudar a ordem social e política. Contou que não pinta "gordos", mas "volumosos", que nunca utilizou nenhum modelo vivo para fazer suas obras e que acha a arte contemporânea um desastre. Leia, a seguir, trechos da conversa.

Folha - O primeiro documentário realizado sobre o sr., que será exibido amanhã no Brasil, comenta duas tragédias pessoais suas: a morte de um filho em um acidente de carro, quando o sr. dirigia, e a prisão de outro, acusado de estar envolvido com o narcotráfico na Colômbia, o país em que o sr. nasceu e que vive uma situação aguda de crise e violência. Fatos como esses não fizeram o sr. pensar em deixar de pintar senhores volumosos e sorridentes em cores alegres?
Fernando Botero -
A verdade é que o mundo de um artista como o pintor não deve de maneira alguma refletir os dramas internos que ele pode ter pessoalmente. Por exemplo, você já viu algum quadro impressionista triste? Não existe. E na época do impressionismo havia grandes tragédias pessoais, gente morrendo, guerras. O pintor não deve fazer sua psicoanálise na pintura. Deve fazer sua arte baseada numa série de idéias, uma escolha que não faz do que ele pensa uma qualidade. Ainda assim, fiz recentemente uma pequena série de obras mais trágicas, com cenas da guerrilha colombiana, por exemplo.

Folha - O que o motivou a isso?
Botero -
Tive vontade de dar um testemunho de um momento absurdo da história do país. Isso não muda meu modo de ver a arte, que para mim é uma manifestação otimista da vida. A arte é mais importante do que os dramas pessoais de cada um.

Folha - O sr. não enxerga na arte uma dimensão política, uma capacidade de modificar a sociedade?
Botero -
Não. Sobretudo nos anos 50, houve um movimento, principalmente marxista, que buscava fazer arte engajada. Eram artistas que criavam com a expectativa de que fossem mudar a ordem das coisas. Eu digo que não. A pintura é inofensiva politicamente. É inocente e naïf acreditar que a arte possa mudar algo.
A pintura mais importante do século foi "Guernica", de Pablo Picasso. Mas "Guernica" não derrubou a ditadura de Franco.
O desejo de fazer uma pintura política compromete a qualidade da arte, que deve ser o primeiro objetivo do artista. O mais importante na pintura são as preocupações pictóricas: a cor, a composição, o equilíbrio da obra.

Folha - Sob esse aspecto, o que o sr. acha da arte contemporânea, que não raro busca ter uma presença política?
Botero -
Quase sempre é um desastre. Todos os quadros hoje são muito ruins. Eles têm a idéia de mudar a ordem das coisas. E a ordem sempre segue igual na política. Acho que o máximo que a pintura pode aspirar é a servir de testemunho de um tempo.


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