São Paulo, quinta-feira, 18 de abril de 2002

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GASTRONOMIA

Comida é...
MÚSICA

Literatura e cinema sempre foram mais prolíficos e ricos do que a música quando o assunto é cultura gastronômica. Mas, aqui e ali, pinçam-se belas e saborosas letras que reverenciam os inúmeros proveitos de uma boa refeição. Repórteres, redatores e colunistas da Ilustrada selecionaram algumas dessas canções, feitas por gente que entende da coisa, de Dorival Caymmi a Rita Lee.
Bom apetite.

"Vatapá"
O pai das comidas na MPB é Dorival Caymmi, não há como negar. E, sendo baiano, não podia dar em outra: é "Preta do Acarajé" para cá, "Vatapá" para lá... Foi nessa última que ele teve o lampejo de transformar receita gastronômica em música, deixando quem quisesse dançar com água na boca: "Bota castanha de caju, um bocadinho mais/ pimenta malagueta, um bocadinho mais/ amendoim, camarão, rala um coco/ na hora de machucar/ sal com gengibre e cebola, iaiá/ na hora de temperar". Mas mera descrição de ingredientes não daria em bom vatapá se o autor era um humanista por excelência. "Procure uma nega baiana, ô, que saiba mexer", o mestre-cuca de comida, sexo e ritmo. O samba está em "Eu Vou pra Maracangalha", de 1957.
(PEDRO ALEXANDRE SANCHES)

"Macarrão com Linguiça e Pimentão"
Se dar um peteleco no humanismo era um dos projetos do tropicalismo, Rita Lee foi na fibra do osso em "Macarrão com Linguiça e Pimentão", composta com o companheiro de Mutantes e algo mais Arnaldo Baptista para seu primeiro disco solo ("Build Up", 70). Sob arranjo entre blues e tropicália e vocais de criança erotizada, a canção resignava-se a ler/cantar a receita de um duvidoso macarrão com pimentão, cebola e linguiça: "Meia xícara de chá de azeite/ 200 gramas de linguiça calabresa/ uma cebola picadinha e um pouco de salsinha/ quatro tomates batidos no liquidificador", daí adiante. O máximo de intervenção permitida era: "E está pronto pra você", e sirva-se quem puder. (PAS)

"Amendoim Torradinho"
Essa é sem receita, mas pisou fundo no acelerador da conexão MPB-sexo-comida. De Henrique Beltrão, a manhosa "Amendoim Torradinho" foi gravada nos ditos anos de ouro por ídolos do kitsch como Angela Maria e Ivon Curi, com dose sempre farta de malícia. "Meu bem/ este teu corpo parece/ do jeito que ele me aquece/ um amendoim torradinho, tão quentinho". Embora sexo fosse o tempero, romantismo torradinho também cabia na receita: "Sinto uma vontade louca de gritar pela rua/ que eu colei minha boca na boca que é tua/ e de gritar no teu ouvido, lá dentro, bem fundo/ que não existe no mundo/ um amor mais profundo/ que o amor bem vagabundo/ que vem lá do meu bem". Depois do final, não havia jeito: só comendo tudo de novo. (PAS)

"Chocolate"
E comida, quem diria, também é contracultura. Foi o que o maluco-mor Tim Maia provou em 71, ao compor e gravar "Chocolate", funk mais de beber do que de comer. Num hino black power ao nonsense, Tim dispensava a refeição e ia direto à sobremesa -provavelmente também em referência velada à presença da droga na equação "paz & amor" dos anos hippies. "Eu só quero chocolate/ não adianta vir com guaraná pra mim/ é chocolate o que eu quero beber", raciocinava, fazendo toda a apologia: "Não quero chá/ não quero café/ não quero Coca-Cola/ me liguei no chocolate". "Black is beautiful" era o lema de fundo. (PAS)

"Refazenda"
Fiquei para lá de intrigada quando ouvi Gilberto Gil dizer que "Refazenda" não tinha sentido, que alinhavara uma palavra atrás da outra, só em ritmo de beleza. Pois não é uma das músicas que mais entendo? Fizera sentido do não-sentido? "Abacateiro/ acataremos teu ato/ nós também somos do mato/ como o pato e o leão/ Aguardaremos/ brincaremos no regato/ até que nos tragam frutos/ teu amor, teu coração/ Abacateiro/ teu recolhimento é justamente o significado da palavra temporão/ enquanto o tempo não trouxer teu abacate/ amanhecerá tomate/ e anoitecerá mamão."
A árvore e o homem, cúmplices no criar e no esperar. Os dois do mato, na vigília alegre e paciente que nos trará os meses transformados em mangas doces e azedos tamarindos. Enquanto o tempo não trouxer o abacate, sabemos, com certeza, que amanhecerá tomate e anoitecerá mamão. Deo gratias. (NINA HORTA)

"Eat It", "Girls Just Wanna Have Lunch"
Obcecado por comida, o californiano Weird Al Yankovic ficou relativamente famoso ao transformar megahits como "Beat It" (Michael Jackson) e "Girls Just Wanna Have Fun" (Cindy Lauper) em músicas hilárias sobre comedores compulsivos. Nas mãos de Yankovic, "Beat It" virou "Eat It" (Coma), e a música de Cindy Lauper foi transformada em "Girls Just Wanna Have Lunch" (Garotas Só Querem Almoçar). As duas versões tiveram direito a clipes escrachadíssimos, em que o próprio Yankovic aparece como Lauper e Jackson. O rei da paródia trash americana lançou em 93 um disco totalmente dedicado a transformar músicas famosas em piadas gastronômicas. (CLAUDIA ASSEF)

"Meat Is Murder"
Esta, dos Smiths, deve ter feito muita gente parar de comer carne. A música, um dos momentos mais panfletários de Morrissey, virou hino entre os vegetarianos. Foi, na verdade, nome de disco dos Smiths (aquele com a imagem do soldado na capa). A música, superlonga, compara o abate de animais para alimentação com assassinato humano. "Este animal lindo precisa morrer/ Morrer por razão nenhuma/ Morrer por razão nenhuma é assassinato", cantava Morrissey, ele próprio um vegetariano, lógico. A letra ainda pega mais pesado: "Você sabe como os animais morrem? Aquele cheiro da cozinha não é caseiro nem festivo/ É sangue fresco fritando". (CA)

"Rock Lobster"
Brincadeirinha dos britânicos do B-52'S com lagostas. O líder da banda, Fred Schneider, certa vez disse: "Sempre cantei as maravilhas das lagostas e me enche o saco quando vejo pessoas colocando elas numa panela de água fervente". (THIAGO NEY)

"We're a Happy Family"
A comida aqui é apenas mais um ingrediente na ácida e bem-humorada alfinetada dos Ramones na classe média americana. "Nós somos uma família feliz/ eu, mamãe e papai/ sentados aqui no Queens/ comendo feijão requentado". Este punk rock faz você pular tanto que não é recomendável escutá-lo após as refeições. (TN)

"Beans", "In Bloom", "Polly"
Mesmo que "en passant", Kurt Cobain também gastava tinta de caneta escrevendo sobre comida. Ainda que, claro, a comida, na poesia do líder do Nirvana, servisse mais como figura de linguagem. O melhor exemplo é a música "Beans", em que Cobain canta: "Feijão, feijão, feijão/ Jessie comeu feijão/E ficou feliz, feliz, feliz". No superhit "In Bloom", do disco "Nevermind", ele começa a letra com a frase "Venda as crianças por comida...". E em "Polly" ele diz: "Polly quer uma bolacha/ Talvez eu deva sair de cima dela antes". Poesia gastronômica da mais sinistra. (CA)

"Savoy Truffle"
Contribuição gastronômica de George Harrison para o "White Album", dos Beatles. Ele cita várias e várias sobremesas para, no final, fazer reverência à trufa Savoy. Até nos lembra: "Você é o que você come". É de abrir o apetite. (TN)

"Digsy's Diner"
"O que seria a vida/ se você viesse à minha casa para um chá/ eu te pegaria às três e meia/ e nós comeríamos lasanha/ eu te trataria como a Rainha/ te daria morangos com creme/ (...) Poderiam ser os melhores dias de nossas vidas." É Oasis, de "Definitely Maybe" (1994), época em que os Gallaghers transpiravam aquele ingênuo idealismo adolescente. Se uma garota recusar um convite desses, é porque ela não é para você. (TN)



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