São Paulo, sexta-feira, 18 de abril de 2008

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CARLOS HEITOR CONY

Nave sem rumo

Voamos às cegas numa nave que a qualquer momento pode se chocar com outra

COMO SABEIS, discute-se em todo o mundo a salvação do planeta, onde reside, desde o Dia da Criação, o próprio mundo.
O tema é pretexto para festas, eventos, seminários, simpósios, passeatas e camisas estampadas lembrando que devemos salvar as baleias. Para falar com honestidade, não me emociono pela discussão ecológica em si. Meu furo está mais em cima. A demarcação das terras indígenas e a camada de ozônio não fazem o meu gênero.
Simpatizo cordialmente com tudo o que pretende melhorar a nossa vida ou a vida dos outros. O que me preocupa é a certeza de que habitamos uma nave sobre a qual não temos qualquer domínio. Não chego a perder o sono quando penso nisso, mas sinto um certo desconforto sabendo que nada posso fazer por mim e muito menos pelos outros.
Vamos à comparação inevitável. Vivemos num imenso avião solto no espaço. Ao contrário dos aviões de carreira, nem sempre sólidos mas razoavelmente confiáveis, não temos pilotos nem tripulação, nem engenheiros de vôo nem mecânicos de bordo, não somos rastreados em terra pelas torres de controle e pelos radares, nem dispomos de cartas de navegação. Nada, absolutamente.
Nem sequer sabemos se temos combustível suficiente para mais um dia ou mais uma hora. Não temos campos de pouso alternativos, nem rádio para enviarmos nosso grito de socorro. Tampouco sabemos nossa exata posição no espaço.
Voamos às cegas numa nave que, a qualquer momento, pode se chocar com outra, ou dar um tranco em sua rotação. Imaginemos esse tranco, essa freada de acomodação que os motoristas costumam dar para melhor arrumar os passageiros amontoados.
Uma freada pequena, de um segundo, levantaria a água dos oceanos, despejaria no espaço os animais, os peixes, os homens, os carros, tudo o que não estivesse solidamente amarrado na terra.
A nave não dispõe de cinto de segurança para os momentos de turbulência, nem máscaras de oxigênio para o caso de uma despressurização. Seria uma zorra federal esse tranco mínimo na velocidade de nosso planeta. Espero nunca ter de passar pela eventualidade.
Bem, diante desta hipótese, tudo o mais me parece insignificante. Certo, devemos preservar o meio ambiente, do mesmo modo que, num avião, mesmo em perigo, devemos obedecer àquilo que nos manda fazer a tripulação.
Os pilotos estão fazendo tudo o que é possível para manter o aparelho no ar, um deles está rezando contritamente a última ave-maria de sua vida.
Mas vamos com calma: sempre ouvi dizer que um elefante precisa de um quilômetro quadrado para viver e sobreviver em paz e com dignidade. Um bilhão de elefantes tornaria a Terra insuficiente para a preservação da espécie e teríamos de dizimar todos os demais animais, inclusive os homens. Há que preservar não apenas a vida mas a dignidade dos elefantes.
O grande furo da ecologia é sua parenta mais próxima, do ponto de vista etimológico: a economia. As espécies economicamente improdutivas tendem a desaparecer, não por maldade ou burrice da humanidade, mas por necessidade da estrutura econômica que, queiramos ou não, determina nossas relações com a natureza.
Ninguém precisa lutar pela preservação de bois e cavalos, galinhas e perus. São espécies produtivas, substituídas sistematicamente à medida que se abatem. A solução seria encontrar um jeito de fazer pingüins, micos dourados e focas renderem alguma coisa. Neste particular, descubro uma grande injustiça contra os ratos.
Ninguém, nenhum desses movimentos ecológicos, defende a preservação dos ratos. A impressão que se tem é que um raticídio em grande escala seria bem aceito pelos amantes da natureza. Mas os ratos são necessários aos laboratórios, às pesquisas científicas. Pertencem, assim, à categoria útil dos bois, vacas, galinhas, perus e peixes de variadas espécies que prestam serviço ao homem, mantendo-o vivo e prazeroso. E predatório, como sempre o foi, no uso e abuso de sua prerrogativa de Rei da Criação.
Mas o reino do homem é como aquele outro reino do qual falavam Jesus Cristo e o Paulo Francis: não é deste mundo.


Texto Anterior: Resumo das novelas
Próximo Texto: Centenário refaz trajetória de Flexor
Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.