|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
CARLOS HEITOR CONY
Nave sem rumo
Voamos às cegas numa nave que a qualquer momento pode se chocar com outra
COMO SABEIS, discute-se em todo o mundo a salvação do planeta, onde reside, desde o Dia
da Criação, o próprio mundo.
O tema é pretexto para festas,
eventos, seminários, simpósios, passeatas e camisas estampadas lembrando que devemos salvar as baleias. Para falar com honestidade,
não me emociono pela discussão
ecológica em si. Meu furo está mais
em cima. A demarcação das terras
indígenas e a camada de ozônio não
fazem o meu gênero.
Simpatizo cordialmente com tudo
o que pretende melhorar a nossa vida ou a vida dos outros. O que me
preocupa é a certeza de que habitamos uma nave sobre a qual não temos qualquer domínio. Não chego a
perder o sono quando penso nisso,
mas sinto um certo desconforto sabendo que nada posso fazer por
mim e muito menos pelos outros.
Vamos à comparação inevitável.
Vivemos num imenso avião solto no
espaço. Ao contrário dos aviões de
carreira, nem sempre sólidos mas
razoavelmente confiáveis, não temos pilotos nem tripulação, nem
engenheiros de vôo nem mecânicos
de bordo, não somos rastreados em
terra pelas torres de controle e pelos
radares, nem dispomos de cartas de
navegação. Nada, absolutamente.
Nem sequer sabemos se temos
combustível suficiente para mais
um dia ou mais uma hora. Não temos campos de pouso alternativos,
nem rádio para enviarmos nosso
grito de socorro. Tampouco sabemos nossa exata posição no espaço.
Voamos às cegas numa nave que, a
qualquer momento, pode se chocar
com outra, ou dar um tranco em sua
rotação. Imaginemos esse tranco,
essa freada de acomodação que os
motoristas costumam dar para melhor arrumar os passageiros amontoados.
Uma freada pequena, de um segundo, levantaria a água dos oceanos, despejaria no espaço os animais, os peixes, os homens, os carros, tudo o que não estivesse solidamente amarrado na terra.
A nave não dispõe de cinto de segurança para os momentos de turbulência, nem máscaras de oxigênio
para o caso de uma despressurização. Seria uma zorra federal esse
tranco mínimo na velocidade de
nosso planeta. Espero nunca ter de
passar pela eventualidade.
Bem, diante desta hipótese, tudo o
mais me parece insignificante. Certo, devemos preservar o meio ambiente, do mesmo modo que, num
avião, mesmo em perigo, devemos
obedecer àquilo que nos manda fazer a tripulação.
Os pilotos estão fazendo tudo o
que é possível para manter o aparelho no ar, um deles está rezando
contritamente a última ave-maria
de sua vida.
Mas vamos com calma: sempre
ouvi dizer que um elefante precisa
de um quilômetro quadrado para viver e sobreviver em paz e com dignidade. Um bilhão de elefantes tornaria a Terra insuficiente para a preservação da espécie e teríamos de dizimar todos os demais animais, inclusive os homens. Há que preservar
não apenas a vida mas a dignidade
dos elefantes.
O grande furo da ecologia é sua parenta mais próxima, do ponto de vista etimológico: a economia. As espécies economicamente improdutivas
tendem a desaparecer, não por maldade ou burrice da humanidade,
mas por necessidade da estrutura
econômica que, queiramos ou não,
determina nossas relações com a
natureza.
Ninguém precisa lutar pela preservação de bois e cavalos, galinhas e
perus. São espécies produtivas,
substituídas sistematicamente à
medida que se abatem. A solução seria encontrar um jeito de fazer pingüins, micos dourados e focas renderem alguma coisa. Neste particular, descubro uma grande injustiça
contra os ratos.
Ninguém, nenhum desses movimentos ecológicos, defende a preservação dos ratos. A impressão que
se tem é que um raticídio em grande
escala seria bem aceito pelos amantes da natureza. Mas os ratos são necessários aos laboratórios, às pesquisas científicas. Pertencem, assim, à categoria útil dos bois, vacas,
galinhas, perus e peixes de variadas
espécies que prestam serviço ao homem, mantendo-o vivo e prazeroso.
E predatório, como sempre o foi, no
uso e abuso de sua prerrogativa de
Rei da Criação.
Mas o reino do homem é como
aquele outro reino do qual falavam
Jesus Cristo e o Paulo Francis: não é
deste mundo.
Texto Anterior: Resumo das novelas Próximo Texto: Centenário refaz trajetória de Flexor Índice
|