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RESENHA
"Amor" é esquisito como tudo o que ousa em inovar
BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha
Quando um autor (provavelmente jovem e iniciante) como
André Santánna publica seu (provavelmente) primeiro livro, um
texto estranho como "Amor", ele
se depara com pelo menos dois fatos que antes (provavelmente) não
tinha levado em conta -e, nos
dois casos, as exceções confirmam
a regra: primeiro, que não existe
crítica literária na imprensa; segundo, que não existe crítica literária na universidade.
Quando um texto esquisito como "Amor" aparece hoje no cenário das letras brasileiras ele é simplesmente ignorado. Por pelo menos duas razões, além da deficiência e precariedade de uma distribuição independente:
Primeiro, porque na mídia ninguém se dá ao trabalho de se interessar por fatos que ainda não
existem (eles só passam a existir ao
serem tratados pela mídia, o que
torna os livros estrangeiros traduzidos ou de autores brasileiros já
consagrados ou reconhecidos, na
maior parte das vezes, os únicos
"fatos literários" da imprensa brasileira), logo, porque falta curiosidade e uma certa dose de militância saudável ao jornalista que se
promulga crítico literário.
Segundo, porque na universidade o professor de literatura não vai
arriscar sua reputação, conquistada ao longo de anos, sujando as
mãos para associar seu nome a um
autor que, por estar começando,
pode muito bem não dar em nada
(ou acabar se revelando um verdadeiro equívoco), logo, porque falta generosidade e uma certa dose
de militância saudável ao acadêmico que prefere ancorar sua carreira, com uma sensatez acomodada, em algum dos pilares mais
sólidos da literatura nacional.
Ou seja, um livro esdrúxulo como "Amor" tem pouquíssimas
chances de conquistar sua existência pública, graças em parte à falta
de curiosidade, generosidade, engajamento (com a própria literatura) e, o que talvez esteja por trás
de todo o resto, graças à falta de
faro e visão literária (em geral reservados para os amigos e próximos) por parte daqueles de quem
depende em grande parte sua divulgação e, num mundo dominado por marketing e mídia, sua
própria existência.
É muito justo, porém cômodo,
repetir à exaustão (e das formas
mais diferentes e inventivas e brilhantes) que Joyce, Proust, Kafka,
Machado de Assis ou Guimarães
Rosa são geniais. Não há risco. Todo o crédito recai na criatividade
com que o crítico renova o mesmo
discurso do reconhecimento. Difícil mesmo -e incômodo e corajoso- é apostar suas fichas no desconhecido. No Proust antes de
Proust, no Kafka antes de Kafka.
De que vale viver (e escrever sobre literatura) se não for para se
arriscar e se aventurar no desconhecido? Hoje, no Brasil, os críticos literários (se é que existem
mesmo) sabem reconhecer (a filiação de um autor etc.), porque
no melhor dos casos estudaram
para isso, mas perderam o gosto
da descoberta, de conhecer, de seguir rumo ao desconhecido, sobretudo quando as filiações não
são tão evidentes para domar e dobrar a nova obra dentro de uma
rede de reconhecimentos. Ficam
perplexos diante daquilo cujo reconhecimento só o estudo já não
garante, e que se chama literatura.
"Amor", de André Santánna,
não é nem Proust antes de Proust
nem Kafka antes de Kafka, mas,
no mínimo, um livro interessante
-por vezes cômico, por outras,
dramático- e original, embora
muitos possam retrucar que sua
originalidade, por seguir pela trilha da livre-associação, é fácil.
Ilustrado com desenhos de certo
modo "infantis" do próprio autor
(o formato lembra o de livros infantis), trata-se de um texto perturbador por associar uma visão
inocente com a do marginal que,
por viver à margem do fluxo que
carrega o resto dos homens, pode,
pelo menos, percebê-lo e descrevê-lo com a isenção de quem não
participa, a não ser como vítima.
"Amor" é uma descrição panorâmica e simultânea ("Tudo o
tempo todo") do mundo em que
vivemos por um olhar que pode
ser tanto o de uma criança como o
de um louco -ou o de uma criança louca.
Seu método, se método existe, é
o do disparate: as coisas mais díspares, como o Cristo ensanguentado e "os peitos murchos da Rainha da Inglaterra", ou "os negros,
os ingleses e as bocetas", são ligadas por uma sucessão repetitiva
do "e", associadas numa espécie
de moto-contínuo desesperado,
provocado por essa profunda "dor
de amor" do narrador. O súbito
retrato do mundo, como numa
montagem retrospectiva e veloz
na televisão.
Para quem procura as chaves
que possam trancar "Amor" dentro de um estilo ou universo reconhecível, não seria de todo inverossímil aludir a algo próximo às
obras do Museu do Inconsciente e
aos escritos de Artaud. Há, de fato,
algo limítrofe ali, algo marginal,
radical. Porque nessa simples descrição disparatada e escatológica
do mundo, a dor do amor (de um
homem condenado ao desejo) parece de repente transmutar-se numa explosão de riso, num humor
ao mesmo tempo singular e extremo. E só isso já mereceria um pouco mais de atenção.
Livro: Amor
Autor: André Santánna
Lançamento: Edições DuBolso (tel.
011/257-9235)
Quanto: R$ 12 (100 págs.)
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