São Paulo, sábado, 18 de abril de 1998

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RESENHA
"Amor" é esquisito como tudo o que ousa em inovar

BERNARDO CARVALHO
especial para a Folha

Quando um autor (provavelmente jovem e iniciante) como André Santánna publica seu (provavelmente) primeiro livro, um texto estranho como "Amor", ele se depara com pelo menos dois fatos que antes (provavelmente) não tinha levado em conta -e, nos dois casos, as exceções confirmam a regra: primeiro, que não existe crítica literária na imprensa; segundo, que não existe crítica literária na universidade.
Quando um texto esquisito como "Amor" aparece hoje no cenário das letras brasileiras ele é simplesmente ignorado. Por pelo menos duas razões, além da deficiência e precariedade de uma distribuição independente:
Primeiro, porque na mídia ninguém se dá ao trabalho de se interessar por fatos que ainda não existem (eles só passam a existir ao serem tratados pela mídia, o que torna os livros estrangeiros traduzidos ou de autores brasileiros já consagrados ou reconhecidos, na maior parte das vezes, os únicos "fatos literários" da imprensa brasileira), logo, porque falta curiosidade e uma certa dose de militância saudável ao jornalista que se promulga crítico literário.
Segundo, porque na universidade o professor de literatura não vai arriscar sua reputação, conquistada ao longo de anos, sujando as mãos para associar seu nome a um autor que, por estar começando, pode muito bem não dar em nada (ou acabar se revelando um verdadeiro equívoco), logo, porque falta generosidade e uma certa dose de militância saudável ao acadêmico que prefere ancorar sua carreira, com uma sensatez acomodada, em algum dos pilares mais sólidos da literatura nacional.
Ou seja, um livro esdrúxulo como "Amor" tem pouquíssimas chances de conquistar sua existência pública, graças em parte à falta de curiosidade, generosidade, engajamento (com a própria literatura) e, o que talvez esteja por trás de todo o resto, graças à falta de faro e visão literária (em geral reservados para os amigos e próximos) por parte daqueles de quem depende em grande parte sua divulgação e, num mundo dominado por marketing e mídia, sua própria existência.
É muito justo, porém cômodo, repetir à exaustão (e das formas mais diferentes e inventivas e brilhantes) que Joyce, Proust, Kafka, Machado de Assis ou Guimarães Rosa são geniais. Não há risco. Todo o crédito recai na criatividade com que o crítico renova o mesmo discurso do reconhecimento. Difícil mesmo -e incômodo e corajoso- é apostar suas fichas no desconhecido. No Proust antes de Proust, no Kafka antes de Kafka.
De que vale viver (e escrever sobre literatura) se não for para se arriscar e se aventurar no desconhecido? Hoje, no Brasil, os críticos literários (se é que existem mesmo) sabem reconhecer (a filiação de um autor etc.), porque no melhor dos casos estudaram para isso, mas perderam o gosto da descoberta, de conhecer, de seguir rumo ao desconhecido, sobretudo quando as filiações não são tão evidentes para domar e dobrar a nova obra dentro de uma rede de reconhecimentos. Ficam perplexos diante daquilo cujo reconhecimento só o estudo já não garante, e que se chama literatura.
"Amor", de André Santánna, não é nem Proust antes de Proust nem Kafka antes de Kafka, mas, no mínimo, um livro interessante -por vezes cômico, por outras, dramático- e original, embora muitos possam retrucar que sua originalidade, por seguir pela trilha da livre-associação, é fácil. Ilustrado com desenhos de certo modo "infantis" do próprio autor (o formato lembra o de livros infantis), trata-se de um texto perturbador por associar uma visão inocente com a do marginal que, por viver à margem do fluxo que carrega o resto dos homens, pode, pelo menos, percebê-lo e descrevê-lo com a isenção de quem não participa, a não ser como vítima.
"Amor" é uma descrição panorâmica e simultânea ("Tudo o tempo todo") do mundo em que vivemos por um olhar que pode ser tanto o de uma criança como o de um louco -ou o de uma criança louca.
Seu método, se método existe, é o do disparate: as coisas mais díspares, como o Cristo ensanguentado e "os peitos murchos da Rainha da Inglaterra", ou "os negros, os ingleses e as bocetas", são ligadas por uma sucessão repetitiva do "e", associadas numa espécie de moto-contínuo desesperado, provocado por essa profunda "dor de amor" do narrador. O súbito retrato do mundo, como numa montagem retrospectiva e veloz na televisão.
Para quem procura as chaves que possam trancar "Amor" dentro de um estilo ou universo reconhecível, não seria de todo inverossímil aludir a algo próximo às obras do Museu do Inconsciente e aos escritos de Artaud. Há, de fato, algo limítrofe ali, algo marginal, radical. Porque nessa simples descrição disparatada e escatológica do mundo, a dor do amor (de um homem condenado ao desejo) parece de repente transmutar-se numa explosão de riso, num humor ao mesmo tempo singular e extremo. E só isso já mereceria um pouco mais de atenção.


Livro: Amor
Autor: André Santánna
Lançamento: Edições DuBolso (tel. 011/257-9235)
Quanto: R$ 12 (100 págs.)



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