São Paulo, sexta-feira, 18 de maio de 2001

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ANÁLISE

Trinta anos depois

HÉLIO ZISKIND
ESPECIAL PARA A FOLHA

Trinta anos atrás, num sítio perto do Rio, Tom Jobim trabalhava obsessivamente em "Matita Perê". No sítio, já havia feito "Chega de Saudade". Tom construía ali uma casa. Quem nos conta é Helena Jobim, na biografia sobre seu irmão ("Antonio Carlos Jobim - Um Homem Iluminado"): "Tom queria uma casa que durasse muitas vidas. Paredes grossas, tijolos maciços".
E numa daquelas noites, tocando violão e escrevendo a letra em papel de pão, Tom compôs "Águas de Março". Ainda de madrugada, acordou irmã e cunhado para mostrar os primeiros versos da canção. Madrugada memorável, regada a café quente e esperança, pela casa e pela canção.
Muito envolvido com a composição, Tom voltou ao Rio e a terminou num fôlego só. Helena diz que, por essa época, Tom estava animadíssimo por "Construção", de Chico Buarque. Comentava a perfeição da letra, a rara maestria com que Chico usava proparoxítonas. Achava que Chico era "cavalo" de alguma entidade e recebia os versos prontos. Sobre sua própria música, repetia: "Minha composição também é misteriosa. Não sei de onde vem".
Quando Jobim morreu, Chico declarou: "Tudo o que fiz na vida foi para o Tom". Trinta anos depois, "Construção" e "Águas de Março" se reencontram, tijolos maciços num desenho lógico. A casa perdura por várias vidas.
Nas canções de Chico, o atrito entre a tonicidade da sílaba e o acento musical estará sempre presente. A sílaba tônica da proparoxítona não coincide com o tempo forte do compasso, está antecipada. A melodia (além de presentificar o cotidiano por sua repetição) introduz um desequilíbrio que, afinal, é o próprio tema da canção.
"Águas de Março" também tece, a seu modo, uma relação entre a sílaba e a nota. A melodia propõe um motivo inicial com duas notas que se repetem. O motivo vai sendo ora preenchido, ora deformado por outras notas. Num processo contínuo de expansão, o que inicialmente era uma repetição de duas notas se transforma num grande arco melódico.
Tom Jobim foi um mestre do desenvolvimento. Há sempre uma célula básica, um motivo, que será transformado e depois recolocado em seu estado inicial. Essa estrutura musical, no caso de "Águas de Março", se acopla à idéia do texto, onde a transformação da paisagem culmina com o final (cíclico) das águas. São desenhos lógicos e mágicos, obras que tiveram a felicidade de serem reconhecidas pelo público desde que nasceram. Vão continuar brilhando, mesmo quando faltar luz.


Hélio Ziskind, 45, é ex-integrante do grupo Rumo e lançou recentemente o CD infantil "O Gigante da Floresta"



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