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ANÁLISE
Trinta anos depois
HÉLIO ZISKIND
ESPECIAL PARA A FOLHA
Trinta anos atrás, num sítio
perto do Rio, Tom Jobim trabalhava obsessivamente em "Matita Perê". No sítio, já havia feito
"Chega de Saudade". Tom construía ali uma casa. Quem nos conta é Helena Jobim, na biografia sobre seu irmão ("Antonio Carlos
Jobim - Um Homem Iluminado"): "Tom queria uma casa que
durasse muitas vidas. Paredes
grossas, tijolos maciços".
E numa daquelas noites, tocando violão e escrevendo a letra em
papel de pão, Tom compôs
"Águas de Março". Ainda de madrugada, acordou irmã e cunhado
para mostrar os primeiros versos
da canção. Madrugada memorável, regada a café quente e esperança, pela casa e pela canção.
Muito envolvido com a composição, Tom voltou ao Rio e a terminou num fôlego só. Helena diz
que, por essa época, Tom estava
animadíssimo por "Construção",
de Chico Buarque. Comentava a
perfeição da letra, a rara maestria
com que Chico usava proparoxítonas. Achava que Chico era "cavalo" de alguma entidade e recebia os versos prontos. Sobre sua própria música, repetia: "Minha
composição também é misteriosa. Não sei de onde vem".
Quando Jobim morreu, Chico
declarou: "Tudo o que fiz na vida
foi para o Tom". Trinta anos depois, "Construção" e "Águas de
Março" se reencontram, tijolos
maciços num desenho lógico. A
casa perdura por várias vidas.
Nas canções de Chico, o atrito
entre a tonicidade da sílaba e o
acento musical estará sempre presente. A sílaba tônica da proparoxítona não coincide com o tempo
forte do compasso, está antecipada. A melodia (além de presentificar o cotidiano por sua repetição)
introduz um desequilíbrio que,
afinal, é o próprio tema da canção.
"Águas de Março" também tece, a seu modo, uma relação entre
a sílaba e a nota. A melodia propõe um motivo inicial com duas
notas que se repetem. O motivo
vai sendo ora preenchido, ora deformado por outras notas. Num
processo contínuo de expansão, o
que inicialmente era uma repetição de duas notas se transforma
num grande arco melódico.
Tom Jobim foi um mestre do
desenvolvimento. Há sempre
uma célula básica, um motivo,
que será transformado e depois
recolocado em seu estado inicial.
Essa estrutura musical, no caso de
"Águas de Março", se acopla à
idéia do texto, onde a transformação da paisagem culmina com o
final (cíclico) das águas. São desenhos lógicos e mágicos, obras que
tiveram a felicidade de serem reconhecidas pelo público desde
que nasceram. Vão continuar brilhando, mesmo quando faltar luz.
Hélio Ziskind, 45, é ex-integrante do
grupo Rumo e lançou recentemente o
CD infantil "O Gigante da Floresta"
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