São Paulo, terça-feira, 18 de maio de 2010

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63º FESTIVAL DE CANNES

Jean-Luc Godard provoca tumulto

Diretor causa frenesi, mas desiste em cima da hora de visita ao festival, onde foi apresentada a obra "Film Socialisme"

Com legendas picotadas, filme é um libelo contra o entendimento; no longa, nenhuma história é contada, mas muito é dito


DA ENVIADA A CANNES

Há seis anos, quando Jean-Luc Godard veio ao Festival de Cannes apresentar "Nossa Música", houve troca de bofetões à entrada do cinema. Diz-se que eram senhores de cabelos brancos os envolvidos na briga.
Todos queriam um lugar na sala onde o cineasta-símbolo da nouvelle vague mostraria seu novo filme. Ontem, não houve tapas. Mas houve empurra-empurra e gente correndo.
A sessão de "Film Socialisme" (filme socialista), o 92º trabalho da carreira de Godard, ficou lotada num piscar de olhos. Exibido na mostra Um Certo Olhar, o filme seria seguido de uma conferência de imprensa.
Afoitos por um lugar na pequena sala onde Godard falaria, os jornalistas, mal os créditos do filme começaram a subir, saíram correndo do cinema. Correndo mesmo.
E era quase derrapando que, à chegada à coletiva, descobria-se que Godard, simplesmente, não viria mais. O cineasta, duas horas antes, havia enviado um fax ao diretor do festival, Thierry Frémaux, alegando "problemas do tipo grego" para a ausência.
Que problemas são esses, ninguém entendeu. Mas, de acordo com o jornal "Libération", o diretor disse que, apesar de, pelo festival, estar disposto a ir até à morte, não daria "sequer um passo mais".
Tão desapontados quanto os organizadores do festival com a ausência devem ter ficado os cineastas Alejandro Gonzáles Iñárritu e Takeshi Kitano. Ambos viram suas entrevistas esvaziadas, por causa do frenesi em torno de Godard.
Ao atrapalhar a cena, Godard mostrou que, às vésperas dos 80 anos, continua tão rebelde quanto sempre foi.
E o fax que enviou não deixa de soar quase como um prólogo ao seu novo filme, que termina com a frase "No comments" (sem comentários).

Para não entender
A começar do material de divulgação, "Film Socialisme" (filme socialista) assume-se como um libelo contra o entendimento.
No livreto distribuído à imprensa, há a simulação de uma entrevista. À pergunta "Tragédia e democracia?" segue-se a resposta: "Sem Sofócles, nada de Péricles".
Como sempre acontece com Godard, trata-se de um filme no qual nenhuma história se conta e muito é dito. "O dinheiro é publico. Como a água", diz a voz que cobre imagens de uma cachoeira na África.
Outros países, imagens, frases e personagens soltos virão.
Figuras do ambiente midiático, como a cantora Patti Smith e o escritor Elias Sanbar dirão frases tão improváveis quanto sábias. Falado em francês, o filme traz as legendas em inglês, de propósito, picotadas.
"Film Socialisme" indica que o próprio cineasta, apesar de não poder viver sem as imagens, está um pouco cansado delas e descrente de seu valor. Ele quer criticar o poder das imagens - elas que erguem e destroem coisas belas -, o individualismo e o cinismo que rodeia a política.
O Godard que faltou a Cannes está longe de ser o grande Godard de "O Desprezo" ou "Acossado". Mas seu inconformismo e seu inabalável senso de humor, mesmo no mau humor, ainda são capazes de botar um pouco de desordem na tela e fora dela.
E, da mesma maneira que não se pode negar que muitos de seus filmes são chatos, não se pode negar o quanto algumas de suas imagens são belas. (ANA PAULA SOUSA)


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