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63º FESTIVAL DE CANNES
Jean-Luc Godard provoca tumulto
Diretor causa frenesi, mas desiste em cima da hora de visita ao festival, onde foi apresentada a obra "Film Socialisme"
Com legendas picotadas, filme é um libelo contra
o entendimento; no
longa, nenhuma história é contada, mas muito é dito
DA ENVIADA A CANNES
Há seis anos, quando Jean-Luc Godard veio ao Festival de
Cannes apresentar "Nossa Música", houve troca de bofetões à
entrada do cinema. Diz-se que
eram senhores de cabelos brancos os envolvidos na briga.
Todos queriam um lugar na
sala onde o cineasta-símbolo da
nouvelle vague mostraria seu
novo filme. Ontem, não houve
tapas. Mas houve empurra-empurra e gente correndo.
A sessão de "Film Socialisme" (filme socialista), o 92º trabalho da carreira de Godard, ficou lotada num piscar de olhos.
Exibido na mostra Um Certo
Olhar, o filme seria seguido de
uma conferência de imprensa.
Afoitos por um lugar na pequena sala onde Godard falaria,
os jornalistas, mal os créditos
do filme começaram a subir,
saíram correndo do cinema.
Correndo mesmo.
E era quase derrapando que,
à chegada à coletiva, descobria-se que Godard, simplesmente,
não viria mais. O cineasta, duas
horas antes, havia enviado um
fax ao diretor do festival,
Thierry Frémaux, alegando
"problemas do tipo grego" para
a ausência.
Que problemas são esses,
ninguém entendeu. Mas, de
acordo com o jornal "Libération", o diretor disse que, apesar de, pelo festival, estar disposto a ir até à morte, não daria
"sequer um passo mais".
Tão desapontados quanto os
organizadores do festival com a
ausência devem ter ficado os cineastas Alejandro Gonzáles
Iñárritu e Takeshi Kitano. Ambos viram suas entrevistas esvaziadas, por causa do frenesi
em torno de Godard.
Ao atrapalhar a cena, Godard
mostrou que, às vésperas dos
80 anos, continua tão rebelde
quanto sempre foi.
E o fax que enviou não deixa
de soar quase como um prólogo
ao seu novo filme, que termina
com a frase "No comments"
(sem comentários).
Para não entender
A começar do material de divulgação, "Film Socialisme"
(filme socialista) assume-se como um libelo contra o entendimento.
No livreto distribuído à imprensa, há a simulação de uma
entrevista. À pergunta "Tragédia e democracia?" segue-se a
resposta: "Sem Sofócles, nada
de Péricles".
Como sempre acontece com
Godard, trata-se de um filme
no qual nenhuma história se
conta e muito é dito. "O dinheiro é publico. Como a água", diz
a voz que cobre imagens de
uma cachoeira na África.
Outros países, imagens, frases e personagens soltos virão.
Figuras do ambiente midiático, como a cantora Patti Smith
e o escritor Elias Sanbar dirão
frases tão improváveis quanto
sábias. Falado em francês, o filme traz as legendas em inglês,
de propósito, picotadas.
"Film Socialisme" indica que
o próprio cineasta, apesar de
não poder viver sem as imagens, está um pouco cansado
delas e descrente de seu valor.
Ele quer criticar o poder das
imagens - elas que erguem e
destroem coisas belas -, o individualismo e o cinismo que rodeia a política.
O Godard que faltou a Cannes está longe de ser o grande
Godard de "O Desprezo" ou
"Acossado". Mas seu inconformismo e seu inabalável senso
de humor, mesmo no mau humor, ainda são capazes de botar
um pouco de desordem na tela
e fora dela.
E, da mesma maneira que
não se pode negar que muitos
de seus filmes são chatos, não
se pode negar o quanto algumas de suas imagens são belas.
(ANA PAULA SOUSA)
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