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Quem sabia do mundo era eu, vagabundo
FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha
Passeio nesta tarde de maio,
e a orla da Lagoa está vazia. O
sol de outono não queima,
apenas conforta a pele dos sobressaltos da brisa. O espelho
d'água reflete o pequeno avião
que vai buscando pouso antes
do crepúsculo. Uma vez, na capital do Kashimir, vi um homem rezando dentro de um
barco parado. Não sei se retribuía uma graça divina ou se
apenas celebrava a tarde no
lago, o milagre de se estar vivo.
Na minha mochila aparecia
as pontas do pé de pato. Um
homem de 57 anos andando
pela orla com um pé de pato.
Coisa de vagabundo, diria o
presidente da República.
Todo mundo reclamou
quando Fernando Henrique
lançou sua enésima frase explosiva. Faz parte da política a
oposição cair em cima, protestos indignados, discursos na
tribuna e, quem sabe, uma nota no jornal do dia seguinte.
Repercussões da fala do presidente, decretam as pautas, e
tome choradeira. É a ordem
das coisas, nada posso contra
ela.
Quem sabe, posso contribuir
com uma interpretação. Os
candidatos a presidente, nas
últimas semanas, têm dado
muitos sinais inconscientes de
que não gostariam de vencer:
Lula invadindo a Tchecoslováquia 30 anos depois, Ciro investindo contra monogamia e
o próprio FHC falando para
toda a imprensa como se estivesse no sofá do psicanalista.
No caso do presidente, vê-se
claramente que está cansado
de viagens entrecortadas por
mortes. Visitou um amigo, foi
para o Chile, voltou para o enterro. Seguiu para Espanha,
voltou de novo para um enterro.
E quando você está cansado
para valer, o que se inveja
mais no outro senão sua capacidade de vagabundar, escapando da pressão do
dia-a-dia?
Essas mensagens inconscientes (não votem em mim, porque já estou cheio desse trabalho) mostram apenas que é
preciso rever a qualidade de
vida na província da política.
São coisas mínimas. Semana
passada dois grandes especialistas mundiais revelaram o
resultado da análise que fizeram do sistema de ar-condicionado da Câmara. Um horror: o ar devolve a poeira, fumaça com juros de alguns novos fungos.
A imprensa ignorou a exposição, que, amparada por um
projetor e dois computadores
portáteis, nos mostrava a trajetória de nossos suspiros e tragadas, sua reviravolta numa
nuvem invisível que nos lança
numa nova conjuntura político biológica. Os representantes
do povo não correm o risco de
morrer mordendo sua língua,
mas respirando o próprio ar de
seus pulmões, coligado com a
bancada de bactérias.
Os arquitetos do novo mundo que construíram Brasília
excluíram a ventilação de sua
utopia. Andando pela orla da
Lagoa, me pergunto se também
eu darei sinais inconscientes
de não quero voltar para esse
lugar. Se for apenas pelo
ar-condicionado, creio que a
última palavra em técnica de
ventilação possa resolver.
Mas e as outras questões: para onde vamos levar o Brasil,
quem são nossos parceiros, até
que ponto respeitarão a autonomia do outro. Isso tem importância para mim, que saio
da Lagoa com a mochila nas
costas, e me sinto aqui em Ipanema, como se fosse a casa de
tanta beleza e recordações.
Há 30 anos, protestamos contra a invasão da Tchecoslováquia. Lembro-me como se fosse
agora, saindo de Ipanema para um debate na Praia Vermelha. Lá estavam Leandro Konder, Carlos Nélson Coutinho,
os mesmos de sempre, que hoje
assinam um manifesto pela
candidatura do Vladimir. E
mais o Janio de Freitas, que
por sinal, antes de sair de férias, andou criticando o desfecho da crise no PT. Há 30 anos
protestávamos juntos contra
idéia de se impor alguma coisa
de fora. No caso da Primavera
de Praga, na ponta das baionetas.
Isso me conforta no crepúsculo da Lagoa: um traço de
continuidade, parceiros, ainda
que distantes, cada um com
sua visão de mundo. Até que
ponto o ar do Congresso não
ficará mais irrespirável ainda,
se calamos diante disto.
Voltar ao Congresso significa
conviver com essa fratura que
nos separa da esquerda. Ou se
associar à direta, numa busca
desesperada de garantir a
identidade. Nesses momentos,
sinto-me como FHC, invejando
os dias de vagabundagem criativa, mil metros na água, alguns quilômetros em terra firme, água de coco, quiosques à
beira d'água, o corpo, a cuca e
a cara odaras.
Claro que já na entrada do
prédio, guardando o pé de pato
na garagem, vem-me à cabeça
todas as responsabilidades. A
noite já caiu e penso em tudo
que vivi nesses quatro anos, a
batalha ambiental, viagens à
Amazônia, o contato com pequenas cidades do Rio e gente
concreta que precisa de sua
parceria.
Pensar que o século 21 será o
século de minhas meninas, me
empurra para um alegre trabalho. Ainda assim, a noite
não dissipa todas as dúvidas
nem todas as virtudes são negadas como no poema de
Drummond. Será preciso responder à questão: como contribuir para definir o Brasil do
próximo século. A próxima
conjuntura talvez não reduza
mais o papel da política convencional -sobretudo com os
candidatos a presidente dando
tantos sinais de cansaço antes
de a campanha começar.
Claro, sempre haverá discursos e notas nos jornais, artigos
nas revistas mostrando o interior de sua casa, presença em
talk shows, em que os aplausos
são dirigidos como uma parte
do espetáculo. Mas o mundo
mesmo, onde as coisas interessantes estão acontecendo, ficará cada vez mais distante.
A gente precisa responder a
essas pequenas questões quando nos lançamos numa campanha. Senão essas questões
acabam emergindo nos atos
falhos dos candidatos, na frieza do corpo-a-corpo, numa
eleição em que milhares de jovens de camiseta ganham seu
cachê, agitando bandeiras que
ignoram e celebrando um candidato que desprezam.
O barqueiro do Kashimir talvez tivesse razão. Há uma hora
em que é preciso ancorar no lago, contemplar a beleza e tentar adivinhar o destino, brincando de jogar I Ching, interrogando hexagramas do inconsciente; será o caldeirão ou
a montanha, a dispersão ou a
preponderância do pequeno?
Se não bastarem hexagramas, há ainda os trigramas:
seis na terceira posição significa: o choque vem e provoca
perplexidade/ caso o choque
estimule a ação/ se permanecerá livre de culpa.
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