São Paulo, segunda, 18 de maio de 1998

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Quem sabia do mundo era eu, vagabundo

FERNANDO GABEIRA
Colunista da Folha Passeio nesta tarde de maio, e a orla da Lagoa está vazia. O sol de outono não queima, apenas conforta a pele dos sobressaltos da brisa. O espelho d'água reflete o pequeno avião que vai buscando pouso antes do crepúsculo. Uma vez, na capital do Kashimir, vi um homem rezando dentro de um barco parado. Não sei se retribuía uma graça divina ou se apenas celebrava a tarde no lago, o milagre de se estar vivo.
Na minha mochila aparecia as pontas do pé de pato. Um homem de 57 anos andando pela orla com um pé de pato. Coisa de vagabundo, diria o presidente da República.
Todo mundo reclamou quando Fernando Henrique lançou sua enésima frase explosiva. Faz parte da política a oposição cair em cima, protestos indignados, discursos na tribuna e, quem sabe, uma nota no jornal do dia seguinte. Repercussões da fala do presidente, decretam as pautas, e tome choradeira. É a ordem das coisas, nada posso contra ela.
Quem sabe, posso contribuir com uma interpretação. Os candidatos a presidente, nas últimas semanas, têm dado muitos sinais inconscientes de que não gostariam de vencer: Lula invadindo a Tchecoslováquia 30 anos depois, Ciro investindo contra monogamia e o próprio FHC falando para toda a imprensa como se estivesse no sofá do psicanalista.
No caso do presidente, vê-se claramente que está cansado de viagens entrecortadas por mortes. Visitou um amigo, foi para o Chile, voltou para o enterro. Seguiu para Espanha, voltou de novo para um enterro.
E quando você está cansado para valer, o que se inveja mais no outro senão sua capacidade de vagabundar, escapando da pressão do dia-a-dia?
Essas mensagens inconscientes (não votem em mim, porque já estou cheio desse trabalho) mostram apenas que é preciso rever a qualidade de vida na província da política.
São coisas mínimas. Semana passada dois grandes especialistas mundiais revelaram o resultado da análise que fizeram do sistema de ar-condicionado da Câmara. Um horror: o ar devolve a poeira, fumaça com juros de alguns novos fungos.
A imprensa ignorou a exposição, que, amparada por um projetor e dois computadores portáteis, nos mostrava a trajetória de nossos suspiros e tragadas, sua reviravolta numa nuvem invisível que nos lança numa nova conjuntura político biológica. Os representantes do povo não correm o risco de morrer mordendo sua língua, mas respirando o próprio ar de seus pulmões, coligado com a bancada de bactérias.
Os arquitetos do novo mundo que construíram Brasília excluíram a ventilação de sua utopia. Andando pela orla da Lagoa, me pergunto se também eu darei sinais inconscientes de não quero voltar para esse lugar. Se for apenas pelo ar-condicionado, creio que a última palavra em técnica de ventilação possa resolver.
Mas e as outras questões: para onde vamos levar o Brasil, quem são nossos parceiros, até que ponto respeitarão a autonomia do outro. Isso tem importância para mim, que saio da Lagoa com a mochila nas costas, e me sinto aqui em Ipanema, como se fosse a casa de tanta beleza e recordações.
Há 30 anos, protestamos contra a invasão da Tchecoslováquia. Lembro-me como se fosse agora, saindo de Ipanema para um debate na Praia Vermelha. Lá estavam Leandro Konder, Carlos Nélson Coutinho, os mesmos de sempre, que hoje assinam um manifesto pela candidatura do Vladimir. E mais o Janio de Freitas, que por sinal, antes de sair de férias, andou criticando o desfecho da crise no PT. Há 30 anos protestávamos juntos contra idéia de se impor alguma coisa de fora. No caso da Primavera de Praga, na ponta das baionetas.
Isso me conforta no crepúsculo da Lagoa: um traço de continuidade, parceiros, ainda que distantes, cada um com sua visão de mundo. Até que ponto o ar do Congresso não ficará mais irrespirável ainda, se calamos diante disto.
Voltar ao Congresso significa conviver com essa fratura que nos separa da esquerda. Ou se associar à direta, numa busca desesperada de garantir a identidade. Nesses momentos, sinto-me como FHC, invejando os dias de vagabundagem criativa, mil metros na água, alguns quilômetros em terra firme, água de coco, quiosques à beira d'água, o corpo, a cuca e a cara odaras.
Claro que já na entrada do prédio, guardando o pé de pato na garagem, vem-me à cabeça todas as responsabilidades. A noite já caiu e penso em tudo que vivi nesses quatro anos, a batalha ambiental, viagens à Amazônia, o contato com pequenas cidades do Rio e gente concreta que precisa de sua parceria.
Pensar que o século 21 será o século de minhas meninas, me empurra para um alegre trabalho. Ainda assim, a noite não dissipa todas as dúvidas nem todas as virtudes são negadas como no poema de Drummond. Será preciso responder à questão: como contribuir para definir o Brasil do próximo século. A próxima conjuntura talvez não reduza mais o papel da política convencional -sobretudo com os candidatos a presidente dando tantos sinais de cansaço antes de a campanha começar.
Claro, sempre haverá discursos e notas nos jornais, artigos nas revistas mostrando o interior de sua casa, presença em talk shows, em que os aplausos são dirigidos como uma parte do espetáculo. Mas o mundo mesmo, onde as coisas interessantes estão acontecendo, ficará cada vez mais distante.
A gente precisa responder a essas pequenas questões quando nos lançamos numa campanha. Senão essas questões acabam emergindo nos atos falhos dos candidatos, na frieza do corpo-a-corpo, numa eleição em que milhares de jovens de camiseta ganham seu cachê, agitando bandeiras que ignoram e celebrando um candidato que desprezam.
O barqueiro do Kashimir talvez tivesse razão. Há uma hora em que é preciso ancorar no lago, contemplar a beleza e tentar adivinhar o destino, brincando de jogar I Ching, interrogando hexagramas do inconsciente; será o caldeirão ou a montanha, a dispersão ou a preponderância do pequeno?
Se não bastarem hexagramas, há ainda os trigramas: seis na terceira posição significa: o choque vem e provoca perplexidade/ caso o choque estimule a ação/ se permanecerá livre de culpa.



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