São Paulo, Terça-feira, 18 de Maio de 1999
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ARNALDO JABOR
"Telefonema-cabeça" sobre cinema brasileiro

- Alô? Cacá Diegues?
- E aí, cara?
- Cheguei ontem dos EUA e fui ver o "Orfeu"... Sabe o que eu achei?...
- Como dizia o Nelson Rodrigues, quando mostrava as peças aos amigos: "Não me venha com pequenas restrições..."
- Eu achei que você tinha ficado maluco quando disse que há um complô de direita contra o "Orfeu"... Mas, depois que eu vi o filme, passei a achar que há, sim, uma nascente consciência conservadora difusa atacando muito crítico aí...
- O que eu quis dizer, Arnaldo... (Só Cacá e minha mãe me chamam de "Arnaldo". Cacá é uma figura de "pai" em minha formação, e foi ele que me mandou fazer cinema. Portanto, é responsável por meus pobres filmes.) O que eu quis dizer é que falta uma nova crítica no Brasil. Já tivemos Paulo Emilio... Moniz Vianna, Ely Azeredo... tantos... e se perdeu a idéia de responsabilidade da crítica por um projeto de cinema.
O crítico não se sente mais parte de uma cultura. O crítico se sente solto e pós-moderno como se tudo pudesse ser analisado por quatro ou cinco estrelinhas, como se, por exemplo, Steven Spielberg e Bruno Barreto fossem a mesma coisa...
- Conjugalmente... até que eles têm muita coisa em comum...
- Ah ah ah... É como se o filme, sei lá, da Ana Carolina ou o "Titanic" pudessem ser analisados pelo mesmo critério... Tens razão, Arnaldo; agora me diga: você gostou do "Orfeu"?
- O problema, Cacá, é que acabou o sonho de um país mitológico a ser atingido, acabou o projeto que tínhamos. Veio a "globalização" da economia, esse sonho americano, e ficamos sem nada no lugar...
Com o cinema foi igual. Tínhamos um sonho nacional-popular e, agora, ficamos na rabeira de um mercado interno que não existe mais. Sem mercado não há projeto... Esse neoliberalismo acabou com o cinema mundial empenhado. Não falo de filme "político" ou coisa assim. Acabou com o sonho reflexivo do cinema, acabou com qualquer utopia social. Tudo na "pós-pós" tem de ser pela tal "espontânea mão do mercado"...
- Espontânea, meu "catso"... o cinema americano é mais ideológico que Stálin... Hollywood é uma fábrica de propaganda... Quanto a "Orfeu", você gostou...
- Ouça, meu caro Cacá, junto com o socialismo, mataram Brecht, mataram Godard... O cinema de autor foi atropelado feito cachorro vira-lata. É isso que eu chamo de "conservadorismo espontâneo" -críticos fascinados com o mito infantil do "cinema". E a crítica "cultural", quando é exercida, é chamada de regionalista, reducionista etc. Eles acham que ser "amplo" é não ter mais critérios de avaliação, a não ser "bom", "regular" ou "ruim"... É um absurdo.
O "Cahiers" virou "Premiere". Os próprios intelectuais americanos estão alarmados com a decadência do cinema deles e, aqui, os meninos ficam babando o ovo dos nomes estrangeiros. Como gostam de "name dropping"!..? "Ah... porque o Tom Asshole fez um "travelling" lindo... Ah... porque o John Fucker fez um "Lethal Weapon" "supercult'!" É vergonhoso...
- É isso aí, mas...
- Outro dia, o José Álvaro Moisés, secretário do Audiovisual, falou em "cota de tela" e vários jornais esculhambaram-no, como se ele fosse um velho nacionalista superado; mas ninguém fala do bilhão de dólares que os americanos levam daqui todo ano das bilheterias dos seus "abacaxis", que entram aqui sem taxação alguma... é o fim... Precisamos de uma nova crítica "macro".
- Ou seja, você acha o "Orfeu"... o quê, hein?
- Esse conto-do-vigário da globalização também mudou a forma dos filmes. Esse cinema "de restauração" voltou forte... Aristóteles renasceu na pior leitura de sua poética: linearidade, princípio, meio e fim, redenção no final, personagens naturalistas... A personagem saiu da montanha épica e caiu de volta na sala de jantar burguesa... A grande tentativa do cinema moderno, do neo-realismo para cá, era a filmagem do sujeito historicizado, contextualizado, politizado. Pois quem manda de novo é o velho naturalismo psicológico do século 19... Assim como o neoliberalismo suspeita do Estado, Hollywood marcha para um cinema sem diretor... O autor anda suspeitíssimo nestes dias...
- Mas aí você achou o filme...
- Cacá, quase ninguém analisou a importância maior de "Orfeu", que é a retomada de um cinema de alegoria crítica, no melhor sentido... com uma mise-en-scène sinfônica, barroca, colorida, uma câmera inquieta, uma maravilhosa retomada de personagens populares, como o genial Murilo Benicio, que faz o traficante deprimido, ou o maravilhoso Stepan Nercessian, como o PM em crise...
O cinema novo nasceu na favela. Nasceu em "Rio 40 Graus". A favela era uma maquete do absurdo brasileiro. Era fácil acabar com as favelas. Pois não acabaram. Cresceram e se multiplicaram e nenhum governante tentou seriamente acabar com as acrópolis negras nestes últimos 40 anos.
A favela cresceu tanto que, hoje, o absurdo somos nós, os brancos trêmulos que moram em baixo, temerosos de assaltos. "Orfeu" chega na hora certa, a denunciar com as imagens da realidade popular o vazio ilusório do cinema atual.
Por isso que o filme está estourando nos cinemas pobres. O povo conhece o assunto de "Orfeu"... O favelado sabe que não existe como "indivíduo", como o burguês pensa que é. A favela é épica.
A crítica brasileira precisa mudar... sair do naturalismo e do liberalismo espontaneísta pós-moderno e cair na defesa da reflexão cultural...
- Mas, cara, pára com esse telefonema-cabeça e me diz: afinal, você acha o filme "ótimo", "bom" ou "regular"? Três, quatro ou cinco estrelinhas...?
- Cinco, Cacá, cinco estrelinhas e com bonequinho aplaudindo de pé...
- Deus lhe abençoe, Arnaldo...


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