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ARNALDO JABOR
"Telefonema-cabeça" sobre cinema brasileiro
- Alô? Cacá Diegues?
- E aí, cara?
- Cheguei ontem dos EUA e
fui ver o "Orfeu"... Sabe o que
eu achei?...
- Como dizia o Nelson Rodrigues, quando mostrava as peças aos amigos: "Não me venha
com pequenas restrições..."
- Eu achei que você tinha ficado maluco quando disse que há
um complô de direita contra o
"Orfeu"... Mas, depois que eu vi
o filme, passei a achar que há,
sim, uma nascente consciência
conservadora difusa atacando
muito crítico aí...
- O que eu quis dizer, Arnaldo... (Só Cacá e minha mãe me
chamam de "Arnaldo". Cacá é
uma figura de "pai" em minha
formação, e foi ele que me
mandou fazer cinema. Portanto, é responsável por meus pobres filmes.) O que eu quis dizer
é que falta uma nova crítica no
Brasil. Já tivemos Paulo Emilio... Moniz Vianna, Ely Azeredo... tantos... e se perdeu a idéia
de responsabilidade da crítica
por um projeto de cinema.
O crítico não se sente mais
parte de uma cultura. O crítico
se sente solto e pós-moderno
como se tudo pudesse ser analisado por quatro ou cinco estrelinhas, como se, por exemplo,
Steven Spielberg e Bruno Barreto fossem a mesma coisa...
- Conjugalmente... até que
eles têm muita coisa em comum...
- Ah ah ah... É como se o filme,
sei lá, da Ana Carolina ou o
"Titanic" pudessem ser analisados pelo mesmo critério...
Tens razão, Arnaldo; agora me
diga: você gostou do "Orfeu"?
- O problema, Cacá, é que
acabou o sonho de um país mitológico a ser atingido, acabou
o projeto que tínhamos. Veio a
"globalização" da economia,
esse sonho americano, e ficamos sem nada no lugar...
Com o cinema foi igual. Tínhamos um sonho nacional-popular e, agora, ficamos na
rabeira de um mercado interno
que não existe mais. Sem mercado não há projeto... Esse neoliberalismo acabou com o cinema mundial empenhado. Não
falo de filme "político" ou coisa
assim. Acabou com o sonho reflexivo do cinema, acabou com
qualquer utopia social. Tudo
na "pós-pós" tem de ser pela tal
"espontânea mão do mercado"...
- Espontânea, meu "catso"... o
cinema americano é mais ideológico que Stálin... Hollywood é
uma fábrica de propaganda...
Quanto a "Orfeu", você gostou...
- Ouça, meu caro Cacá, junto
com o socialismo, mataram
Brecht, mataram Godard... O
cinema de autor foi atropelado
feito cachorro vira-lata. É isso
que eu chamo de "conservadorismo espontâneo" -críticos
fascinados com o mito infantil
do "cinema". E a crítica "cultural", quando é exercida, é chamada de regionalista, reducionista etc. Eles acham que ser
"amplo" é não ter mais critérios de avaliação, a não ser
"bom", "regular" ou "ruim"...
É um absurdo.
O "Cahiers" virou "Premiere". Os próprios intelectuais
americanos estão alarmados
com a decadência do cinema
deles e, aqui, os meninos ficam
babando o ovo dos nomes estrangeiros. Como gostam de
"name dropping"!..? "Ah... porque o Tom Asshole fez um "travelling" lindo... Ah... porque o
John Fucker fez um "Lethal
Weapon" "supercult'!" É vergonhoso...
- É isso aí, mas...
- Outro dia, o José Álvaro
Moisés, secretário do Audiovisual, falou em "cota de tela" e
vários jornais esculhambaram-no, como se ele fosse um velho
nacionalista superado; mas
ninguém fala do bilhão de dólares que os americanos levam
daqui todo ano das bilheterias
dos seus "abacaxis", que entram aqui sem taxação alguma... é o fim... Precisamos de
uma nova crítica "macro".
- Ou seja, você acha o "Orfeu"... o quê, hein?
- Esse conto-do-vigário da
globalização também mudou a
forma dos filmes. Esse cinema
"de restauração" voltou forte...
Aristóteles renasceu na pior
leitura de sua poética: linearidade, princípio, meio e fim, redenção no final, personagens
naturalistas... A personagem
saiu da montanha épica e caiu
de volta na sala de jantar burguesa... A grande tentativa do
cinema moderno, do neo-realismo para cá, era a filmagem
do sujeito historicizado, contextualizado, politizado. Pois
quem manda de novo é o velho
naturalismo psicológico do século 19... Assim como o neoliberalismo suspeita do Estado,
Hollywood marcha para um cinema sem diretor... O autor anda suspeitíssimo nestes dias...
- Mas aí você achou o filme...
- Cacá, quase ninguém analisou a importância maior de
"Orfeu", que é a retomada de
um cinema de alegoria crítica,
no melhor sentido... com uma
mise-en-scène sinfônica, barroca, colorida, uma câmera inquieta, uma maravilhosa retomada de personagens populares, como o genial Murilo Benicio, que faz o traficante deprimido, ou o maravilhoso Stepan
Nercessian, como o PM em crise...
O cinema novo nasceu na favela. Nasceu em "Rio 40
Graus". A favela era uma maquete do absurdo brasileiro.
Era fácil acabar com as favelas.
Pois não acabaram. Cresceram
e se multiplicaram e nenhum
governante tentou seriamente
acabar com as acrópolis negras
nestes últimos 40 anos.
A favela cresceu tanto que,
hoje, o absurdo somos nós, os
brancos trêmulos que moram
em baixo, temerosos de assaltos. "Orfeu" chega na hora certa, a denunciar com as imagens
da realidade popular o vazio
ilusório do cinema atual.
Por isso que o filme está estourando nos cinemas pobres.
O povo conhece o assunto de
"Orfeu"... O favelado sabe que
não existe como "indivíduo",
como o burguês pensa que é. A
favela é épica.
A crítica brasileira precisa
mudar... sair do naturalismo e
do liberalismo espontaneísta
pós-moderno e cair na defesa
da reflexão cultural...
- Mas, cara, pára com esse telefonema-cabeça e me diz: afinal, você acha o filme "ótimo",
"bom" ou "regular"? Três, quatro ou cinco estrelinhas...?
- Cinco, Cacá, cinco estrelinhas e com bonequinho aplaudindo de pé...
- Deus lhe abençoe, Arnaldo...
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