São Paulo, quinta, 18 de junho de 1998

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Ética, ciência e mercado

EDUARDO GIANNETTI
Colunista da Folha

Nada resolve tudo. O sistema de mercado e o método científico não são exceções à regra. Por mais espetaculares que sejam as suas inegáveis conquistas, é preciso ter uma visão clara do que podemos esperar que façam ou não por nós. A incompreensão acerca da natureza dos méritos e limites da ciência e do mercado é uma das maiores fontes de pseudoconflitos e mal-entendidos no pensamento contemporâneo.
Ciência e mercado resolvem, cada um a seu modo, muita coisa. A civilização européia renascida das cinzas do mundo feudal é inconcebível sem eles. A revolução científica do século 17 e a revolução industrial do século 18 foram apenas o prelúdio singelo do que vinha pela frente -da revolução permanente na qual ciência e mercado lançaram a humanidade. Como dizia um professor de filosofia de quem tive o privilégio de ser aluno em Cambridge, "os últimos três séculos foram muito atípicos".
Ciência e mercado, contudo, padecem de uma mesma limitação básica, que é a fonte comum do seu poder e fraqueza. São ambos total e irremediavelmente incapazes de dar resposta à mais inquietante questão diante de cada ser humano: como viver?
Qualquer que seja a resposta que desejemos dar a essa pergunta, duas coisas são certas. A primeira é que ninguém escapa dela. A questão permanece soberana mesmo que os homens deixem de fazê-la. Da ética pode-se dizer o mesmo que Baudelaire dizia sobre o ser divino: "Deus é o único ser que, para reinar, não precisa sequer existir".
Aceitemos ou não a injunção socrática -"a vida irrefletida não vale a pena ser vivida"-, a pergunta com que Sócrates inaugurou a reflexão ética e irritou até a morte os atenienses de sua época estará sendo feita e implicitamente respondida, a cada momento, pelos nossos atos e escolhas. Não perguntar é responder.
A segunda é que nem o avanço do conhecimento científico nem as regras do jogo do mercado tem como respondê-la. Ciência e mercado são apostas na liberdade -liberdade balizada por padrões impessoais de argumentação e validação, no caso da ciência; e por regras que fixam os marcos dentro dos quais a busca do auto-interesse é livre, no caso do mercado.
Mas tanto o conhecimento gerado pela ciência como os parâmetros fixados pelo mercado nada nos dizem sobre a grande questão socrática: como usar esta liberdade e o que fazer de nossas vidas?
Qualquer ato de escolha, por mais simples que seja, ultrapassa a esfera de competência da ciência. Foi essa descoberta que levou o filósofo escocês David Hume a afirmar, provocativamente, que "não é contrário à razão preferir a destruição do mundo inteiro ao arranhar do meu dedo".
A razão científica é neutra quanto a fins. A opção entre a destruição do mundo e o arranhar do dedo -ou entre usar ou não o dedo para apertar o botão- depende de um juízo de valor que nenhuma quantidade de conhecimento objetivo sobre a realidade pode nos fornecer.
Uma fórmula devida ao jovem Wittgenstein demarca os limites da ciência: "Mesmo que todas as questões científicas possíveis sejam respondidas, os problemas da vida ainda não terão sido sequer tocados".
Ou como ele diria décadas mais tarde, reagindo contra a idéia de que a ciência tem o monopólio do saber: "As pessoas atualmente pensam que os cientistas existem para instruí-las, e os poetas, músicos etc., para lhes dar prazer. A idéia de que estes últimos têm alguma coisa para ensinar-lhes -isto não lhes ocorre".
Acreditar que os dilemas humanos -a busca de sentido e da melhor vida- sejam passíveis de solução por meio dos métodos usados pela ciência para investigar objetos naturais é incorrer na falácia do cientificismo.
Como observa o economista Frank Knight, um dos pais da escola de Chicago, "o conhecimento científico confere poder, mas tem pouco a dizer sobre os fins para os quais tal poder poderá ser utilizado". Quando se trata, por exemplo, de explicar a causa objetiva da morte de alguém, a ciência é soberana. Mas quando se trata de compreender o possível sentido de sua vida, ela é muda.
Reflexão análoga se aplica ao mercado. O sistema de mercado -baseado na propriedade privada, nas trocas voluntárias e na formação de preços por meio de um processo competitivo reconhecidamente imperfeito- define um conjunto de regras de convivência na vida prática. Ele é um mecanismo de coordenação e ajustamento recíproco de nossas decisões de produção e consumo.
A regra de ouro do mercado estabelece que a recompensa material dos seus participantes corresponderá ao valor monetário que os demais estiverem voluntariamente dispostos a atribuir ao resultado de suas atividades.
A remuneração de cada um não depende da intensidade dos seus desejos de consumo, do seu mérito moral ou estético, do civismo de suas ações ou do capricho da autoridade estatal. Dependerá tão somente da disposição dos consumidores em pagar, com uma parte do resultado do seu próprio trabalho, para ter acesso aos bens e serviços que ele oferece.
O ponto básico, contudo, é que o mercado não decide, em nome dos jogadores, o resultado da partida. Os efeitos finais da interação mediada pelo mercado vão depender dos valores e escolhas dos indivíduos.
Assim como a gramática na linguagem comum não predetermina o conteúdo das mensagens, mas apenas as regras das trocas verbais, também o mercado não estabelece de antemão o que será feito e escolhido pelos que participam dele, mas apenas as normas dentro das quais isso será feito. Se o resultado ofende, a culpa não é do mensageiro.
Daí o equívoco da crença, ainda tão difundida no Brasil, de que o mercado competitivo promove a ganância, a esperteza e o "consumerismo" desenfreados, fazendo do egoísmo uma virtude. O mercado tem méritos e defeitos, mas ele não tem o dom de transformar os seres humanos em anjos ou libertinos, Wittgensteins ou Genghis Khans. O que ele faz -e para isso ele existe- é registrar, processar e refletir o que as pessoas são.
Se os homens são seres insaciáveis e se eles rejeitam o juízo platônico de que "a pobreza resulta do aumento dos desejos do homem e não da redução das suas posses", então a única coisa que se pode esperar do mercado é que ele coordene as ações desses homens, ou seja, que ele impeça que o entrechoque dos egoísmos descambe para uma babel destrutiva e que ele canalize essa sede insaciável de ganho para a criação de riqueza.
É muito, embora seja pouco. O mercado, como a ciência, está entre as mais extraordinárias realizações da humanidade. O erro é imaginar que eles possam prescindir da ética ou substituí-la.



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