São Paulo, Sexta-feira, 18 de Junho de 1999
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

CINEMA - "OS IDIOTAS"
Dogma oferece mais uma obra forte

BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha

Nada no início de "Os Idiotas" permite ao espectador entender que está assistindo a uma comédia de humor negro. Uma mulher almoça sozinha num restaurante. Como se não bastasse a sua expressão de desamparo, ela ainda diz ao garçom que não tem dinheiro para pagar o prato que ele lhe sugere, e escolhe outro mais barato. É uma pobre infeliz.
Numa mesa ao fundo, dois adultos retardados almoçam sob os cuidados de uma mulher que faz as vezes de enfermeira. Ela tenta dar de comer a um deles, que joga a comida longe e sai grunhindo pelo restaurante.
Vai de mesa em mesa, espalhando o constrangimento entre as famílias, até chegar à mesa da mulher solitária. Ela lhe sorri e estende a mão. E daí em diante ele não quer mais largá-la.
É de cortar o coração. Tudo indica que você está diante de um filme desolador -que só não parece mais um melodrama de Hollywood porque a câmera sacode na mão do cinegrafista e a imagem de pura e limpa não tem nada. Mesmo assim, não há como não se enternecer e ficar condoído com o encontro casual dos dois rejeitados, e a solidariedade e o reconhecimento imediato (amor?) entre a mulher solitária e o retardado.
É o que você pensa (e a mulher também) até descobrir que tudo é uma farsa, que de retardados os dois homens da outra mesa não têm nada e que fazem parte de um grupo de jovens cujo projeto (político?) de vida se resume a intervenções em lugares públicos fingindo-se de deficientes.
E o mais perturbador de tudo isso é que a idéia máxima que se costuma fazer da inocência (os retardados) é combinada aqui com o cinismo de uma impostura perversa.
"Os Idiotas" já seria muito engraçado se fosse só uma provocação politicamente incorreta contra o domínio da hipocrisia do cinema americano -um deboche não só contra a imagem decorosa e adequada aos falsos bons sentimentos, mas contra a exploração da debilidade alheia e idealizada (Rain Man, Forrest Gump etc.) em nome da debilização sentimental das platéias. Mas o filme de Lars von Trier é muito mais.
A mulher solitária, boazinha e triste se vê de repente no meio de um bando de desvairados (mas não retardados) guiados pela determinação implacável de zombar da falsa moral de uma sociedade hipócrita e com isso subverter as regras de comportamento em nome de relações mais verdadeiras.
Aos poucos, a mulher vai ficando na casa ocupada pelo grupo e se identificando com eles, primeiro como observadora passiva, até fazer, ela também, a sua primeira imitação pública de uma deficiente mental.
E é quando o espectador começa a suspeitar que tudo, sob a aparência de projeto libertário, pode não passar de um processo catártico de regressão, e que aquelas pessoas tão combativas podem ser bem mais frágeis do que parecem e o filme bem mais triste e terrível do que se imaginava.
"Os Idiotas" é o segundo filme realizado sob as normas do manifesto Dogma 95 (leia texto abaixo), que exige câmera na mão, iluminação natural, ausência de música, filmagem em locação e outras regras que tentam limitar os recursos técnicos ao mínimo. O manifesto foi concebido pelos dinamarqueses Lars von Trier ("Ondas do Destino") e Thomas Vinterberg (diretor do extraordinário "Festa em Família", primeiro longa a seguir o Dogma quase ao pé da letra), como reação a um cinema convencional nos moldes americanos.
Embora não tenha nada de novo ou original, o despojamento formal exigido pelo cinto de castidade (como o chamam os próprios cineastas) do manifesto dinamarquês parece ter propiciado a realização de obras cuja força e singularidade são inquestionáveis.
Assim como "Festa em Família", "Os Idiotas" é um dos filmes mais provocadores e originais dos últimos anos, menos pelas limitações formais do que pelo conjunto da representação, a começar pelo argumento.
E é difícil não se render ao fato (que o manifesto tenta em vão repudiar) de que se está diante de dois grandes autores de cinema.


Avaliação:     


Filme: Os Idiotas
Produção: Dinamarca, 1998
Direção: Lars von Trier
Com: Bodil Jorgensen, Jens Albinus e Anne Louise Hassing
Quando: a partir de hoje, no Espaço Unibanco 1 e Lumière 2


Texto Anterior: Os Trapalhões e o monstro do Egito
Próximo Texto: Entenda as "regras" do Dogma
Índice

Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.