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CINEMA - "OS IDIOTAS"
Dogma oferece mais uma obra forte
BERNARDO CARVALHO
Colunista da Folha
Nada no início de "Os Idiotas"
permite ao espectador entender
que está assistindo a uma comédia
de humor negro. Uma mulher almoça sozinha num restaurante.
Como se não bastasse a sua expressão de desamparo, ela ainda diz ao
garçom que não tem dinheiro para
pagar o prato que ele lhe sugere, e
escolhe outro mais barato. É uma
pobre infeliz.
Numa mesa ao fundo, dois adultos retardados almoçam sob os
cuidados de uma mulher que faz as
vezes de enfermeira. Ela tenta dar
de comer a um deles, que joga a comida longe e sai grunhindo pelo
restaurante.
Vai de mesa em mesa, espalhando o constrangimento entre as famílias, até chegar à mesa da mulher solitária. Ela lhe sorri e estende a mão. E daí em diante ele não
quer mais largá-la.
É de cortar o coração. Tudo indica que você está diante de um filme
desolador -que só não parece
mais um melodrama de Hollywood porque a câmera sacode na
mão do cinegrafista e a imagem de
pura e limpa não tem nada. Mesmo
assim, não há como não se enternecer e ficar condoído com o encontro casual dos dois rejeitados, e
a solidariedade e o reconhecimento imediato (amor?) entre a mulher solitária e o retardado.
É o que você pensa (e a mulher
também) até descobrir que tudo é
uma farsa, que de retardados os
dois homens da outra mesa não
têm nada e que fazem parte de um
grupo de jovens cujo projeto (político?) de vida se resume a intervenções em lugares públicos fingindo-se de deficientes.
E o mais perturbador de tudo isso é que a idéia máxima que se costuma fazer da inocência (os retardados) é combinada aqui com o cinismo de uma impostura perversa.
"Os Idiotas" já seria muito engraçado se fosse só uma provocação politicamente incorreta contra
o domínio da hipocrisia do cinema
americano -um deboche não só
contra a imagem decorosa e adequada aos falsos bons sentimentos, mas contra a exploração da debilidade alheia e idealizada (Rain
Man, Forrest Gump etc.) em nome
da debilização sentimental das platéias. Mas o filme de Lars von Trier
é muito mais.
A mulher solitária, boazinha e
triste se vê de repente no meio de
um bando de desvairados (mas
não retardados) guiados pela determinação implacável de zombar
da falsa moral de uma sociedade
hipócrita e com isso subverter as
regras de comportamento em nome de relações mais verdadeiras.
Aos poucos, a mulher vai ficando
na casa ocupada pelo grupo e se
identificando com eles, primeiro
como observadora passiva, até fazer, ela também, a sua primeira
imitação pública de uma deficiente
mental.
E é quando o espectador começa
a suspeitar que tudo, sob a aparência de projeto libertário, pode não
passar de um processo catártico de
regressão, e que aquelas pessoas
tão combativas podem ser bem
mais frágeis do que parecem e o filme bem mais triste e terrível do
que se imaginava.
"Os Idiotas" é o segundo filme
realizado sob as normas do manifesto Dogma 95 (leia texto abaixo),
que exige câmera na mão, iluminação natural, ausência de música,
filmagem em locação e outras regras que tentam limitar os recursos
técnicos ao mínimo. O manifesto
foi concebido pelos dinamarqueses Lars von Trier ("Ondas do Destino") e Thomas Vinterberg (diretor do extraordinário "Festa em
Família", primeiro longa a seguir o
Dogma quase ao pé da letra), como
reação a um cinema convencional
nos moldes americanos.
Embora não tenha nada de novo
ou original, o despojamento formal exigido pelo cinto de castidade
(como o chamam os próprios cineastas) do manifesto dinamarquês parece ter propiciado a realização de obras cuja força e singularidade são inquestionáveis.
Assim como "Festa em Família",
"Os Idiotas" é um dos filmes mais
provocadores e originais dos últimos anos, menos pelas limitações
formais do que pelo conjunto da
representação, a começar pelo argumento.
E é difícil não se render ao fato
(que o manifesto tenta em vão repudiar) de que se está diante de
dois grandes autores de cinema.
Avaliação:
Filme: Os Idiotas
Produção: Dinamarca, 1998
Direção: Lars von Trier
Com: Bodil Jorgensen, Jens Albinus e Anne
Louise Hassing
Quando: a partir de hoje, no Espaço
Unibanco 1 e Lumière 2
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