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"A TRAPAÇA"
David Mamet tropeça em suas próprias virtudes
INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema
Em "A Trapaça", o jovem yuppie
John Ross (Campbell Scott) cria
uma fórmula infalível para sua
companhia dominar o mercado.
Não saberemos nunca o que é essa fórmula, nem que segmento de
mercado ela pretende controlar. É
o que Hitchcock chamava de
McGuffin: algo que interessa muito aos participantes da trama, mas
nada à trama propriamente dita.
Esta começa quando, numa ilha
do Caribe, Ross tenta pressionar
seu chefe, Klein (Ben Gazzara), em
busca de aumento. Ali mesmo, ele
conhece o milionário Jimmy Dell
(Steve Martin), que o seduz oferecendo-lhe ajuda e conselhos para
enfrentar o chefe.
Que estamos diante de uma
conspiração, não resta dúvida. A
primeira questão é saber onde ela
começa, quem está envolvido, até
onde pode chegar: ao roubo do
projeto? À chantagem contra Ross?
Ao assassinato?
Tudo isso. Mas esse não é o ponto central. Ali na ilha também se
encontram uma jovem secretária
da firma em que trabalha Ross,
uma agente do FBI, um amigo do
inventor. Como quase sempre nos
trabalhos de David Mamet, estamos diante de uma série quase infindável de seres esquivos, que
nunca se mostram inteiramente.
Como é previsível supor nessas
circunstâncias, a ambição de Ross
o leva a ser envolvido na trapaça.
Ele próprio entrega seus planos secretos aos ladrões. Problema:
quem são os ladrões?
Se conduz boa parte de seu filme
com boa mão para o suspense e
muita imaginação para compor
sua trama, Mamet termina por tropeçar em suas próprias virtudes. À
custa de propor situações mirabolantes e personagens ambíguos,
projeta seu espectador numa história em que qualquer coisa é possível (o mais previsível acontece, o
que não chega a ser o melhor dos
mundos): qualquer pessoa é como
uma mala com fundo falso, portanto qualquer personagem pode
estar envolvido na conspiração.
Desde então, como se suas virtudes o tivessem levado a uma espécie de arrogância, Mamet termina
por esquecer a proposição inicial
do filme (quem é Ross? quem é cada um de nós?), conduzindo seu
"A Trapaça" por uma série labiríntica de acontecimentos que, embora amarrados, aos poucos perdem
o fio da reflexão esboçada no início
e terminam desembocando em um
mundo de pura ficção.
Ninguém poderá dizer que falta
coerência à trama, ou verossimilhança. Isso, no entanto, se torna o
problema. À medida que amarra
as pontas de sua ficção, Mamet
permite que os elos entre o mundo
real e o fictício se afrouxem.
Tudo pode ser ficção e toda ficção pode ser transformada em realidade, parece dizer o filme. Ok.
Mas aí estamos numa trama auto-absorvente: diz tanto que nada diz,
tanto procura ser imprevisível que,
no fim, é altamente previsível.
É o que acontece aqui. Se "A Trapaça" é suportável, o é apenas na
condição de entretenimento descompromissado (muito menos do
que se espera de um autor como
Mamet), em que um grupo de atores talentosos é dirigido habilmente. Não mais.
Avaliação:
Filme: A Trapaça
Produção: EUA, 1998
Direção: David Mamet
Com: Steve Martin, Campbell Scott
Quando: a partir de hoje, nos cines
Iguatemi 2, Paulista 4 e circuito
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