São Paulo, Sexta-feira, 18 de Junho de 1999
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"A TRAPAÇA"
David Mamet tropeça em suas próprias virtudes

INÁCIO ARAUJO
Crítico de Cinema


Em "A Trapaça", o jovem yuppie John Ross (Campbell Scott) cria uma fórmula infalível para sua companhia dominar o mercado.
Não saberemos nunca o que é essa fórmula, nem que segmento de mercado ela pretende controlar. É o que Hitchcock chamava de McGuffin: algo que interessa muito aos participantes da trama, mas nada à trama propriamente dita.
Esta começa quando, numa ilha do Caribe, Ross tenta pressionar seu chefe, Klein (Ben Gazzara), em busca de aumento. Ali mesmo, ele conhece o milionário Jimmy Dell (Steve Martin), que o seduz oferecendo-lhe ajuda e conselhos para enfrentar o chefe.
Que estamos diante de uma conspiração, não resta dúvida. A primeira questão é saber onde ela começa, quem está envolvido, até onde pode chegar: ao roubo do projeto? À chantagem contra Ross? Ao assassinato?
Tudo isso. Mas esse não é o ponto central. Ali na ilha também se encontram uma jovem secretária da firma em que trabalha Ross, uma agente do FBI, um amigo do inventor. Como quase sempre nos trabalhos de David Mamet, estamos diante de uma série quase infindável de seres esquivos, que nunca se mostram inteiramente.
Como é previsível supor nessas circunstâncias, a ambição de Ross o leva a ser envolvido na trapaça. Ele próprio entrega seus planos secretos aos ladrões. Problema: quem são os ladrões?
Se conduz boa parte de seu filme com boa mão para o suspense e muita imaginação para compor sua trama, Mamet termina por tropeçar em suas próprias virtudes. À custa de propor situações mirabolantes e personagens ambíguos, projeta seu espectador numa história em que qualquer coisa é possível (o mais previsível acontece, o que não chega a ser o melhor dos mundos): qualquer pessoa é como uma mala com fundo falso, portanto qualquer personagem pode estar envolvido na conspiração.
Desde então, como se suas virtudes o tivessem levado a uma espécie de arrogância, Mamet termina por esquecer a proposição inicial do filme (quem é Ross? quem é cada um de nós?), conduzindo seu "A Trapaça" por uma série labiríntica de acontecimentos que, embora amarrados, aos poucos perdem o fio da reflexão esboçada no início e terminam desembocando em um mundo de pura ficção.
Ninguém poderá dizer que falta coerência à trama, ou verossimilhança. Isso, no entanto, se torna o problema. À medida que amarra as pontas de sua ficção, Mamet permite que os elos entre o mundo real e o fictício se afrouxem.
Tudo pode ser ficção e toda ficção pode ser transformada em realidade, parece dizer o filme. Ok. Mas aí estamos numa trama auto-absorvente: diz tanto que nada diz, tanto procura ser imprevisível que, no fim, é altamente previsível.
É o que acontece aqui. Se "A Trapaça" é suportável, o é apenas na condição de entretenimento descompromissado (muito menos do que se espera de um autor como Mamet), em que um grupo de atores talentosos é dirigido habilmente. Não mais.


Avaliação:   


Filme: A Trapaça Produção: EUA, 1998 Direção: David Mamet Com: Steve Martin, Campbell Scott Quando: a partir de hoje, nos cines Iguatemi 2, Paulista 4 e circuito

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