São Paulo, quinta-feira, 18 de julho de 2002

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TEATRO

Cinco razões para ignorar "Godspell"

SERGIO SALVIA COELHO
CRÍTICO DA FOLHA

1 - "Godspell" é um espetáculo dogmático. Seu objetivo é ensinar à platéia uma verdade dada como absoluta. Não se cobra aqui a necessidade de questionar a Bíblia, apenas a constatação de que um teatro que serve a uma ideologia, seja ela qual for, colocando o estético como mero instrumento da doutrina, está contrariando a razão pela qual ele foi criado junto com a democracia: o questionamento dialético da norma. Assim, quando, logo no começo, Cristo desce das alturas para resolver instantaneamente todos os questionamentos socráticos, não há mais conflito nem trama a se esperar da peça.
2 - O espetáculo não aprofunda nenhum de seus temas, ou seja, é inócuo até mesmo enquanto teatro evangélico. A estratégia do "Godspell" original era aproximar a doutrina de Cristo da contracultura hippie: invasores de uma casa abandonada "brincavam" com a imitação de Cristo até as histórias se misturarem perigosamente. Endossando o discurso revolucionário do Cristo histórico, a platéia acabava torcendo para que os anti-heróis escapassem da polícia, em uma lúdica e ousada inversão de valores. Tendo o movimento da contracultura perdido seu vigor, o diretor escolheu na "versão brasileira" transformar as personagens em inofensivos palhacinhos e emílias que ilustram parábolas sobre a fraternidade com as mais ofensivas gracinhas contra japoneses, mulheres gordas e homossexuais. A forma destrói o conteúdo, o verbo se faz purpurina.
3 - "Godspell" é um desrespeito ao circo, o verdadeiro circo que celebra o risco e a fugacidade, do Circo Mínimo ao Grande Circo Místico. Os elementos circenses subaproveitados -trapézios que só sobem e descem, figurinos e cenários que imitam canhestramente a estética kitsch do Cirque du Soleil e uma certa palhaçada do Senhor que preenche sistematicamente todo o espetáculo, com os atores disputando o foco com cacos congelados- estão ali como que para distrair a platéia, para quebrar um pouco o tom pastoral escolhido pelo diretor. Assim, as belas canções da peça, cantadas pelo elenco de modo afinado e obedecendo a marcas precisas, acabam soando como uma competente festa de paróquia, de dar orgulho aos pais do elenco, mas constrangendo um pouco quem for de outra freguesia. Para que usar com esse fim o circo, barateando uma tradição que vem sendo defendida a duras penas?
4 - A interpretação é padronizada pelo estilo pessoal de seu diretor/ator, que chegou a atuar na peça: neste espetáculo, todos os apóstolos são Caco Antibes, que tanta atenção vem recebendo na mídia. Para esse fim, este espaço crítico não lhe será útil.
5 - O espetáculo não precisa de crítica. É um grande sucesso de público, que já sabe o que vai ver e não se sente ludibriado pelo alto preço do ingresso. Preenche totalmente uma certa noção de teatro enquanto entretenimento compromissado com o descompromisso. Se esta for apenas uma opção entre as muitas que o teatro oferece, não há reparos a fazer. Resta torcer para que ainda possa haver espaço para um outro teatro, que, ao optar pela arte e pelo risco, não costuma contar com tanto endosso de mídia e patrocínio. No mais, não há razão para querer mudar Miguel Falabella. Vamos mudar de assunto.


GODSPELL - roteiro: Stephen Schwartz. Adaptação e direção: Miguel Falabella. Onde: Jardel Filho (av. Brig. Luís Antônio, 884, tel. 0/xx/11/3105-8433). Quando: qui., às 21h; sex., às 21h30; sáb., às 19h30 e às 22h30; e dom., às 19h. Quanto: de R$ 30 a R$ 60 (qui.: de R$ 30 a R$ 45).



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