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MÚSICA
Encontro de compositores na zona norte do Rio de Janeiro quer reviver época que revelou o cantor Zeca Pagodinho
"Samba do Trabalhador" refaz história
LUIZ FERNANDO VIANNA
DA SUCURSAL DO RIO
Uma festa que acontece toda segunda-feira à tarde e se chama
"Samba do Trabalhador" parece
só uma piada. Mas é bem mais do
que isso. Foi em encontros diurnos como esse que, na década de
80, surgiu o subgênero do samba
batizado de pagode -o real, não
o meloso que herdou o nome.
Há 20 anos, Zeca Pagodinho,
Jorge Aragão, Arlindo Cruz, Almir Guineto, Luiz Carlos da Vila e
os integrantes do Fundo de Quintal faziam história no bloco Cacique de Ramos e em outras quadras suburbanas. Desde 31 de
maio, entre 14h e 21h, há uma nova turma cantando, sambando e
trocando idéias no Renascença (r.
Barão de São Francisco, 54, Andaraí, zona norte), um clube fundamental na história da cultura negra no Rio. "Meu sonho é oferecer
a essa juventude um novo pau-de-sebo", diz o cantor e compositor Moacyr Luz, 47, idealizador da
festa e do título, que se refere ao
fato de segunda ser o dia de folga
dos músicos.
Pau-de-sebo, no jargão fonográfico, é um disco em que vários
artistas, normalmente pouco conhecidos, mostram seus trabalhos. O sonho de Luz evoca "Raça
Brasileira", o disco que, em 1985,
vendeu 100 mil cópias, revelou
Zeca Pagodinho e começou a
mostrar à zona sul o que havia de
bom nos subúrbios cariocas.
Luz planeja selecionar alguns
dos jovens que tem ouvido às segundas e realizar uma versão
"anos 2000" do "Raça Brasileira".
"Todo mundo quer ser eleito a
alguma coisa hoje, ganhar prêmio, ser famoso. Parece que estamos vivendo na ilha de "Caras".
Temos que mostrar que existe um
outro lado", prega Luz, parceiro
de Aldir Blanc, Martinho da Vila,
Nei Lopes e outros.
Insuflado pela emoção, o discurso parece raivosamente político, mas não é. Luz apenas resolveu, em vez de ecoar o chororô
comum do "não temos espaço,
não temos mídia", reunir seus colegas em uma trincheira cheia de
música, comida, bebida, alegria e
esperança.
"Aqui canta quem quiser e o
que quiser", resume Wanderley
Monteiro, compositor (de "Água
de Chuva no Mar", sucesso de
Beth Carvalho) que costuma tocar cavaquinho no Renascença.
O compromisso com o prazer
atrai cada vez mais compositores
e espectadores/ouvintes. Se no
primeiro dia havia menos de cem
pessoas, hoje o "Samba do Trabalhador" não recebe menos de 300.
Ninguém paga para entrar. Se não
quiser comer ou beber, ouve boa
música de graça.
Essa não é a única diferença para as casas de samba da Lapa, as
mais cultuadas da cidade, onde
não se pisa por menos de R$ 10 e a
cerveja custa de R$ 3 a R$ 4. No
Renascença -e em algumas outras poucas rodas cariocas, como
a do Cacique, aos domingos-
não há microfone, os músicos se
reúnem em torno de uma mesa (e
não sobre um palco) e basta querer para cantar criações inéditas.
"Como não temos compromisso com bilheteria, não precisamos
cantar só sucessos", diz Luz.
"Mostrar sambas novos é uma
forma de as pessoas conhecerem
nosso trabalho", exalta Leandro
D'Menor, 33, revelado no pau-de-sebo "Quintal do Pagodinho", em
2001, e que na última segunda
cantou duas inéditas.
"O samba, desde o início, era
feito assim, em quintais, em torno
de mesas. O que acontece aqui
lembra os pagodes dos anos 70 e
80", diz Jorge Trindade, o Agrião,
41, compositor de Vila Isabel.
Além da garotada ainda anônima que Luz sonha revelar, vêm
freqüentando o "Samba do Trabalhador" nomes já consagrados
como Hermínio Bello de Carvalho e um sem-número de autores
que, apesar do talento, estão fora
dos grandes palcos.
Nesse caso estão Zé Luiz (líder
da Velha-Guarda do Império Serrano e autor de sucessos como
"Todo Menino É um Rei"), Toninho Geraes ("Seu Balancê" e "Pago pra Ver", do repertório de Zeca), Luizinho Toblow ("À Vera",
faixa-título do último disco de Zeca), Paulinho da Aba ("Na Aba",
sucesso de Martinho da Vila), Efson ("Firme e Forte", hit de Beth
Carvalho) e outros.
Além de ouvi-los, ainda é possível testemunhar no Renascença
cenas emocionantes como o minuto de silêncio -marcado pela
batida do surdo- feito na última
segunda em homenagem à tia Eulália, fundadora do Império Serrano que morrera na véspera. Hoje à tarde tem mais.
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