São Paulo, sábado, 18 de julho de 1998

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LIVRO LANÇAMENTOS
"A Boca do Inferno" destrói a inocência juvenil

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação


Passados 40 anos da primeira edição, volta ao mercado a coletânea de contos "A Boca do Inferno", de Otto Lara Resende (1922-1992). São sete narrativas que, como praticamente toda a obra de ficção do autor, transformam o interior de Minas Gerais num verdadeiro palco para o desfile de personagens e conteúdos nitidamente universais.
Estão presentes, aqui, o peso da educação católica e suas culpas; a "mineirice", entendida antes como capacidade de sugestão do que como fato puro e simples; a ironia de um narrador voltado para os detalhes, mas sem desprezar, em nenhum momento, a tensão dramática daquilo que nos revela.
Dois aspectos, porém, caracterizam em especial esta coletânea e fazem dela uma espécie de obra monotemática. Primeiramente, o fato de todos os seus contos terem pré-adolescentes como personagens principais. Em segundo lugar, não há neles nenhum desfecho que não seja trágico.
Por trás de um mundo simples de galinhas e hortaliças, aulas de catequese, sorveterias e grupos escolares, surgem porões secretos, esconderijos, cavernas, cemitérios; e suicídios, assassinatos, abusos sexuais. Não há inocência que não seja afrontada, agredida, destruída, seja por adultos, seja pelas próprias crianças em sua precariedade de julgamento moral.
Em "Dois Irmãos", por exemplo, a oposição de comportamento entre irmãos -um bom, o outro ruim- acaba por sacrificá-los, sendo o primeiro levado pela doença e o segundo pela auto-extinção. "O Porão" mostra um garoto cuja obsessão em atazanar a vida de pequenos animais se transforma em espírito verdadeiramente assassino. O abuso sexual de meninas aparece com nitidez no conto "O Segredo" e está sugerido em "Três Pares de Patins".
A chamada Boca do Inferno é uma furna na qual se refugia frequentemente o protagonista de "Filho de Padre", oprimido pelo vigário encarregado de sua criação e de seu sustento. Mas, na verdade, pode servir como símbolo daquilo que o livro todo expressa: a dolorosa passagem de meninos e meninas para um mundo da hipocrisia, culpa, mentira, violência física e moral.
Não há diálogo possível com pais ou responsáveis. Tudo se esconde. E o espectro da Santa Igreja Católica ronda a todos com suas ameaças de eterna punição aos pecadores.
A leveza estilística de Otto Lara Resende, de texto enxuto, cheio de imagens fortes e vocábulos específicos, é o contraponto, na linguagem, que permite ao leitor não se afundar simplesmente no torpor que essas narrativas embutem. Aí reside a sabedoria do autor.
Veja este exemplo, de "O Porão": "...no porão não havia sol nem horizonte aberto a perder de vista. A casa pesava em cima dos meninos, ambos se sentiam meio sepultados, já não tinham noção de onde se encontravam. Apenas respiravam, e o coração de cada um deles batia descompassado, fora do ritmo de todas as coisas e seres que a preguiça da tarde adormecia. Floriano abriu o canivete, ergueu-o diante dos olhos, a lâmina fria reluziu (...)".
Levamos uma bofetada atrás da outra, para ser bem claro -afinal, é de nossos próprios defeitos que se fala. Mas Otto Lara Resende sabe outorgá-las com belas e mineiríssimas luvas de pelica.


Livro: A Boca do Inferno
Autor: Otto Lara Resende
Lançamento: Companhia das Letras
Quanto: R$ 16,50 (108 págs.)



FAROESTE MINEIRO
Patagônia é romance bom com frases de efeito

RODOLFO LUCENA
Editor de Informática


Gostei e não gostei. Fiquei satisfeito e irritado com a leitura de "Patagônia", romance do contista mineiro João Batista Melo.
É uma boa história, que prende o leitor, contada em estrutura meio complicada, mas inteligível.
O diabo são as palavras: volta e meia aparece uma frase rebuscada, termos de pouco uso na língua de todo o dia.
Isso incomoda, atrapalha a leitura, distancia o leitor da trama, que é uma aventura legal, calcada nos temas do faroeste, com mocinho, bandido e belas mulheres. De extra, os dramas psicológicos do mocinho -a perseguição ao bandido vira a busca do verdadeiro eu.
No início do século, um jornalista, filho caçula de um fazendeiro mineiro, sai à caça do bandido que teria matado, nos Estados Unidos, o seu irmão mais velho, Virgílio.
O bandoleiro norte-americano, famoso assaltante de bancos, escapa da justiça ianque e dos sabujos da Pinkerton e vai se esconder nos cafundós da Patagônia. É o temido Butch Cassidy.
Atrás dele vai Otaviano Caldeira, o jornalista, em trilha de vingança e também de expiação: o primogênito se mandara para os Estados Unidos depois de ver a mulher nos braços do próprio irmão. A traição descoberta terminara em tiros, o traidor foi mais rápido e feriu o mais velho.
Quem conta a história é o próprio Otaviano, que vai partilhando com o leitor suas aventuras, suas pesquisas, descobertas e dúvidas. Muitas dúvidas, como esta: "Diante da miríade de pontas de gelo, sobressaindo-se (sic) na gélida muralha, que significados contêm a minha vida e meus rancores?".
A estrutura não é cronológica, longe disso. A história começa no meio, vai e volta, aos poucos os leitor vai pegando o fio da meada, conhecendo os personagens -são muitos, mas acabam se reduzindo a mocinho, bandido e belas que povoam o caminho.
É um bom jeito de contar a história, talvez não o mais fácil de ser entendido, mas também não é muito complexo.
O complicado é aguentar as frases eloquentes e belas que se misturam à história.
Parece que, para o autor, não basta escrever bem, é preciso escrever bonito. E aí a leitura é travada, incomodada por frases complicadas, de efeito, poéticas.
O herói olha a foto de uma mulher que lhe lembra a amada. Descreve assim a experiência: "A mulher abandonou a bidimensionalidade do papel e adquiriu a corporificação de uma pessoa real".
É um tique que acomete também a alguns de nós, jornalistas. Às vezes, agimos como se fôssemos mais importantes que a reportagem, parecendo acreditar que o "como" se escreve alguma coisa é mais importante que o "que" está sendo escrito.
Na reportagem, como no romance, o que importa, mesmo, é contar bem, ser entendido, deixar o leitor bem informado ou entretido com satisfação.
Para isso, nada como a simplicidade. Ela é tão literária ou mais que as frases rebuscadas, que o palavrório difícil. Este acaba, ao contrário, sendo antiliterário, porque perturba a leitura, atrapalha o romance entre o leitor e a história.
Bem mais simples são os textos escritos na terceira pessoa, que narram histórias paralelas à contada pelo herói. Diferenciadas graficamente da história principal, elas dão suporte à trama e ajudam a prender a atenção e a não esgotar a paciência do leitor.


Livro: Patagônia Autor: João Batista Melo Lançamento: Rocco
Quanto: R$ 28 (297 págs.)



FOLHETIM
Clímax constante domina narrativa de Suzana Flag

HAROLDO CERAVOLO SEREZA
da Redação

O que se pode fazer num único dia? Para Suzana Flag, ou melhor, Nelson Rodrigues, esse limite parece não existir.
E é esse desrespeito incontido ao constrangimento que a passagem do tempo impõe à vida cotidiana que dá fôlego a uma obra inicialmente escrita e publicada como folhetim.
Em "Meu Destino É Pecar", primeira obra da personagem criada pelo dramaturgo para assinar seus folhetins, esse excesso acaba por destacar pensamentos e desejos, conscientes ou não.
A impossível sequência de fatos torna-se, paradoxalmente, um apego à realidade -afinal, o pensar também faz parte dela (no limite, é ela).
O romance, que ajudou a dobrar as vendas de "O Jornal", parte de uma história não muito original. Um irmão inveja o outro, ou seja, acabamos de ser apresentados a Caim e Abel. Em torno deles, gravitará uma coleção de mulheres. Elas agem, mas apenas em função dos homens.
Paulo, o manco, é vítima da beleza irresistível de Maurício, cuja lista de conquistas inclui as mulheres do primeiro e também as irmãs delas.
Daí a ciumeira, daí o ódio fraterno, daí as ameaças de morte (que exigiriam a contratação de uma auditoria independente para serem contabilizadas).

Beijo proibido

A trama tem início momentos depois do casamento de Lena com Paulo. Estão partindo para a lua-de-mel, na fazenda da família. Ela se recusa a beijá-lo. Tenta fugir, passa mal, se machuca, rasga as meias.
Ainda nesse dia, a sogra a avisará da beleza inacreditável de Maurício. Temos a proibição que, claro, terá de ser violada. Estamos no segundo capítulo, e Lena já se apaixonou pelo cunhado.
E, mesmo que o ritmo industrial de produção exigido pelo jornal resulte em algumas falhas narrativas (pequenas confusões entre ações de personagens, por exemplo), o leitor, nesse ponto, já está apresentado a um estilo que se repetirá em "O Casamento", obra assinada por Nelson, e em muitas de suas obras para o teatro: o clímax constante.
Novas proibições e violações se apresentam dentro dos próprios momentos de tensão, sem que haja um relaxamento na sequência de acontecimentos.
Muito provavelmente, ao fim das 640 páginas, o leitor se lembrará de atos e diálogos à granel, mas de apenas algumas pitadas de descrições.
É por meio do que as personagens pensam e não dizem, prometem e não cumprem, ameaçam e recuam que a trama se desenrola. E gera uma força muito maior que a vontade individual de Paulo, Lena, Maurício etc.
Assim, Lena não quer casar no civil, mas não consegue evitar. Quer dizer não no altar, mas solta um sim. Espera ser beijada por Maurício, mas vira o rosto. E, resistindo a beijar o marido, acaba fazendo com que ele passe a gostar dela. E a resistência dele, com que ela se apaixone por ele.
O que se pode dizer de toda essa aparente confusão? Que "Meu Destino É Pecar" é um amontoado de clichês, muito bem sobrepostos, que resultam numa grande obra.
Some-se a isso o fato de que a edição de bolso cai como uma luva para o texto, pois, se não reproduz exatamente o formato do jornal, é muito próximo a ele (pode ser lido no ônibus, metrô, lotação).
Vale a pena conferir, até para saber se o final confirma o título ou se o autor (a autora) preferiu contemporizar com seu público, como fazem os novelistas de televisão hoje em dia.


Livro: "Meu Destino É Pecar"
Autor: Suzana Flag (Nelson Rodrigues)
Lançamento: Ediouro
Preço: R$ 28 (640 págs.)






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