São Paulo, sexta-feira, 18 de agosto de 2000


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GASTRONOMIA
Quem se lembra de preá, tapioca e castanha?

 "Há um prazer áspero na permanente descoberta de quanto supérfluo a gente se sobrecarrega e de como é fácil a gente se despojar dele."
Rachel de Queiroz

NINA HORTA

COLUNISTA DA FOLHA

Quando se fala em comida brasileira -como na resenha de "O Não me Deixes", livro de cozinha de Raquel de Queiroz-, a reação dos leitores é imediata e chovem mensagens. Com isso, ganhei a coluna pronta, feita por dois leitores. Tive de cortar ferozmente, uma pena, por causa do espaço.
Fernanda Salles concorda com Rachel de Queiroz sobre a preá, que não é rato nenhum comido pelas crianças nas grandes secas. "Sei que sua carne é apreciada em diversas partes do país, inclusive no litoral norte de São Paulo, onde nasci, cresci e tive a oportunidade de acompanhar uma caça ao preá, promovida por caiçaras enjoados de peixe.
Uma vez, estava com um grupo de pessoas na boléia de um pequeno caminhão indo a Jericoacoara, no Ceará. No trajeto, um senhor pediu carona, no que foi prontamente atendido. Ele subiu, sentou, abriu o seu farnel, que liberou um cheiro maravilhoso. Educado e sincero, ofereceu a quem quisesse experimentar o que parecia ser um ensopadinho com arroz. "Guisado de preá", anunciou singelamente. A aparência era ótima. Sempre faminta, eu não resistiria não fosse a expressão de asco dos meus companheiros. Menos por influência do que por vergonha, recusei e me arrependo até hoje."
Outro leitor acometido de surto proustiano foi Julio Nobre, jornalista ele mesmo, que se encheu de lembranças da infância passada no sertão do Rio Grande do Norte, entre Paraíba e Ceará.
"Havia o hábito de guardar rapaduras junto com a farinha, ao lado de queijos de coalho, que perdiam a oleosidade, o que fazia a farinha ficar bem cheirosa. (....) Nas noites de lua cheia, estendíamos lençóis, sentávamo-nos na calçada da casa da fazenda saboreando bolachas salgadas levemente passadas na manteiga (sempre de garrafa) e amolecidas com leite (....).
O comer e o viver nordestino têm muito de medieval, me parece. Algo que se revela, principalmente, nos arcaísmos da fala. A casa da fazenda era nua de móveis, restrita ao essencial: baús, redes, que eram enroladas pela manhã, uma mesa grande e rústica na sala de jantar, grandes caixotes cheios de rapadura ou farinha, tamboretes para sentar e mais nada. À noite, antes de dormir, comíamos coalhada com rapadura ralada ou, então, jerimum, batata doce ou cuscuz misturado com leite. O mel era saboreado com farinha de mandioca mesmo, num minimalismo que deixaria não poucos gourmets chocados com tanta ascese e desprendimento.
No mês de junho e julho, bem no fim da estação das chuvas, que é o inverno de lá, comia-se muita coisa à base de milho verde. As pamonhas, estranhamente, eram salgadas, amanteigadas e saboreadas com café e queijo. O feijão verde era temperado com nata ou queijo de coalho e comido com as mãos. Fazíamos bolinhas misturando feijão e farinha.
Comer com as mãos era um deleite supremo. E sempre havia um acompanhamento de frutas: cajus, mangas ou bananas eram consumidos junto com o prato salgado, numa combinação incrível de sabores.
Morávamos, certa época, no meio de um cajueiral na caatinga. Assávamos as castanhas de caju, anteriormente postas a secar ao sol. Moídas, davam excelentes bolos que eram assados num grande forno circular atrás da casa. Das vazantes, na beira dos açudes, saíam batatas doces, feijão verde, macaxeiras (eu como, você cheira), melancias, melões perfumadíssimos. Com as goiabas, faziam-se compotas.
Invariavelmente, o café da manhã era formado por cuscuz misturado a ovos fritos ou leite. E aquelas maravilhosas tapiocas servidas com manteiga e café, quentinhas, desmanchando na língua de tão finas e delicadas.
As manhãs luminosíssimas tinham aquele perfume de café recém-passado e de queijo de coalho torrado na chapa do fogão a lenha. Uma jarra de barro para fazer o café; outra para ferver o leite. Com o passar do tempo, ficavam impregnadas. O leite fervido naquelas jarras adquiria um sabor parecido com o do queijo...."
Obrigada! Não me deixem, quero mais!!!
E-mail - ninahort@uol.com.br


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