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LITERATURA
Cony se entrega a fantasmas em "O Indigitado"
MARCELO COELHO
COLUNISTA DA FOLHA
Lembro-me de ter visto, no
escritório de Carlos Heitor
Cony, duas reproduções de Goya:
uma, da "fase negra" do pintor,
retratava monstros, bruxas, personagens tomados de pânico. O
outro quadro era gentil, ensolarado, com marquesas e lacaios trocando cortesias.
Cony apontou para a cena idílica, dizendo que aquilo correspondia ao mundo do cronista; e que,
nos romances, tratava-se de desvelar horrores e pesadelos.
Estranhei um pouco, pois nem
sempre as crônicas de Cony são
amenas e sorridentes assim. Muitas vezes trazem um tom de melancolia e pessimismo; em outros
momentos -e são estas as crônicas mais desconcertantes do autor- parecem ser o resultado de
algum impulso inexplicável, de
um gesto repentino, de um tranco. É como se terminassem num
movimento de raiva, ou melhor,
num sobressalto -o de quem,
despertando de um sonho ruim,
vira-se na cama num misto de
mau humor, desconforto e medo.
O lado sombrio, "goyesco" de
Cony já está bem presente em
suas crônicas; é comum que não
sigam o modelo do entretenimento, do tom leve e descompromissado que se associa ao gênero.
Por sua vez, este livro de Cony
tem tudo para ser lido como uma
simples novela de entretenimento. "O Indigitado" faz parte de
uma coleção intitulada "Cinco
Dedos de Prosa". Cada livro dedica-se a um dos cinco dedos da
mão; coube a Cony inventar uma
história sobre o dedo indicador.
A idéia, no mínimo bizarra, deve ter agradado a Cony, que se
lança a uma narrativa pródiga em
elementos folhetinescos, bem ao
gosto do Vargas Llosa de "Tia Júlia e o Escrevinhador".
Um menino loiro, descendente
longínquo de franceses, nasce no
bairro de Lins de Vasconcelos, no
Rio de Janeiro. Não tem o indicador da mão direita. O menino é levado por duas ciganas, que em
seu lugar põem no berço um outro bebê. Este cresce. Vem a saber
de sua origem cigana. Resolve
procurar o seu duplo, o seu "outro", o seu verdadeiro eu. Busca
pelo mundo todo o tal cigano loiro, sem o indicador; não sabe que,
logo adiante, será também objeto
de uma busca; até que...
Heranças, um duplo ou triplo
assassinato, escândalo, pacto de
morte, justiça cigana e justiça comum: os capítulos se sucedem.
Obedecem a uma intriga planejada; ao mesmo tempo, parecem ser
inventados ao correr da pena,
conforme o capricho, as extravagâncias e as obsessões do autor.
É nesse ponto que "O Indigitado" se mostra bem mais sombrio
e pessoal do que faz crer à primeira vista. O sobrenome Cony é de
origem francesa; o autor passou a
infância em Lins de Vasconcelos.
Na história rocambolesca do bebê
trocado, há algo de obliquamente
confessional; o "indigitado" é o
próprio Cony.
Um homicídio foi cometido,
não pelo protagonista, mas de algum modo o incrimina. É como
se a culpa do narrador -a de
Cony, a de qualquer pessoa- estivesse no fato de não ter cometido o crime que deveria cometer.
Há um "outro", um "duplo", a levar a vida que deveria ser a nossa.
Imagino que, para Cony, o pecado original está no simples fato
de ter nascido; pior que isso, nossa inocência está no fato de que a
vida que vivemos não é de fato a
nossa; se somos inocentes, é na
impostura. Assim como o dedo
que falta, a ausência de culpa é o
nosso defeito. Há abismos espanhóis, catolicismos soturnos,
confissões esquisitas neste livro.
E há pelo menos uma velha obsessão de Cony: o caso famoso,
que agitou a imprensa brasileira
nos anos 50, do assassinato de Dana de Teffé. As suspeitas do assassinato recaíram na figura do advogado de Dana. Mas nunca
acharam o cadáver, e sem cadáver
não há crime. O advogado herdou
a fortuna da vítima; não houve como acusá-lo de assassinato.
Esse advogado se chamava Leopoldo Heitor. Talvez seja pela
coincidência do prenome que
Carlos Heitor Cony encontre,
nesse crime, um tema para seus
pesadelos; algo como uma sombra, um duplo, está a persegui-lo.
Sob a aparência de entretenimento, "O Indigitado" se entrega a esses fantasmas.
O Indigitado
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 22,90 (180 págs.)
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