São Paulo, sábado, 18 de agosto de 2001

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WALTER SALLES

O reencontro de Jorge Amado com Grande Otelo

A cena acontece em 1993, no aeroporto Charles de Gaulle, em Paris. Grande Otelo, um dos mais geniais atores brasileiros de todos os tempos, foi para a França receber uma homenagem do Festival dos Três Continentes, em Nantes. Tem um mal súbito ao desembarcar do avião e é conduzido para o setor de emergência do aeroporto.
Um amigo que o espera na saída, o documentarista Henri Rail- lard, é avisado. Entra na sala de emergência. Tarde demais: Grande Otelo já não respira.
Passado o choque inicial, Henri liga para outro amigo próximo de Otelo: Jorge Amado. A primeira reação de Amado é de estupor. Pouco a pouco, conseguem conversar com mais calma. Henri diz a Amado que Otelo está com a aparência serena. Aproximando-se do seu rosto, percebe um quase-sorriso. Como veio com uma máquina fotográfica para registrar a chegada de Otelo, pensa fotografá-lo pela última vez. Um registro histórico, sem dúvida, mas ele não se sente à vontade para tirar a foto.
Finalmente Henri decide-se. Enquadra o corpo de Otelo. É quando tem a nítida impressão de que... Otelo pisca para ele matreiramente. Tenso, desiste de tirar a foto e relata o ocorrido a Amado.
"Ora, isso é típico de Otelo", responde Amado, com o jeito mais natural do mundo ou com a convicção de quem acreditava ao mesmo tempo no materialismo dialético e nas religiões africanas. E nunca prejulgava algo -embora tenha sido muitas vezes vítima desse tipo de preconceito.
Há poucos anos, fui testemunha de outro gesto inesperado de Jorge Amado. O telefone toca. Era ele, surpreendentemente, do outro lado da linha. Fazia algum tempo que não o via -desde que meu irmão João havia dirigido um documentário sobre ele para a rede de televisão France 3, co-roteirizado por Henri Raillard.
Jorge Amado estava ligando para pedir algo por uma pessoa que ele não conhecia. Tratava-se de Sérgio Machado, um jovem realizador baiano que havia feito um média-metragem, "Troca de Cabeças", com... Grande Otelo. Por coincidência, o último trabalho de Otelo.
"Dê uma olhada no vídeo, acho que este rapaz tem talento", disse-me Jorge. "E, se for possível, arrume um estágio para ele no seu próximo filme" (que seria "Central do Brasil").
Olhei o vídeo. Jorge Amado tinha razão. O jovem diretor era talentoso. Não estagiou em "Central do Brasil". Fez, sim, todo o processo de procura dos atores e a pesquisa iconográfica, além de ter sido um excelente assistente de direção. Depois, em "Abril Despedaçado", Machado trabalhou como diretor-assistente. Fez toda a pesquisa histórica, assim como a procura de atores e de locações. O filme não existiria sem ele.
Assim era Jorge Amado. Generoso a ponto de tentar ajudar alguém que não conhecia apenas por ter visto o seu trabalho por acidente na casa de um amigo. O afeto transbordante dos seus personagens não nascia do nada. Tinha uma raiz pessoal profunda. Era parte do seu dia-a-dia.
Sei que é hoje de bom tom relativizar todas as coisas -a começar pela trajetória das pessoas. No caso de Jorge Amado, quem quiser que atire as pedras. O leitor que me perdoe, mas não quero nem saberia como fazer isso com ele. Sua vida e sua obra foram centradas na prática da inclusão e da alteridade no país que se eterniza no exercício da exclusão. Como diria Borges, Amado deu nome ao que ainda não havia sido nomeado. E incorporou um imenso não-dito, ampliou -novamente de forma generosa- o mundo no qual vivemos.
A esta altura, tudo ou quase tudo já foi dito sobre Jorge Amado. Cá deste cantinho, desejo-lhe apenas o seguinte: que, crente como era, já tenha reencontrado Grande Otelo. E que, juntos, tenham entornado uns bons copos e contado umas boas histórias. E rido um pouco de nós, seres patéticos, que ficamos cá embaixo sem os dois a nos iluminar.



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