São Paulo, quinta-feira, 18 de agosto de 2005

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COMIDA

Biografia de Antonin Carême, "chef-celebridade" no séc. 18, chega ao Brasil e inspira festival no Rio

Na cozinha da corte

CRISTIANE LEONEL
ENVIADA ESPECIAL AO RIO

Antonin Carême, considerado o primeiro "chef-celebridade" da história, conseguiu algo muito além do sonho de socialites, que é o de se eternizar no seleto espaço da coluna social. Seus inventos, nascidos entre os séculos 18 e 19, atravessaram a maré turbulenta da história e chegam agora, praticamente intactos, ao século 21. A prova de que sua imagem se mantém sagrada está, por exemplo, na "toque", o conhecido chapéu de mestre-cuca criado por ele. E, agora, o livro "Carême - Cozinheiro dos Reis" (R$ 39,50; 288 págs.), que acaba ser lançado no Brasil pela editora Jorge Zahar, vem destrinchar a sua intensa trajetória.
A biografia, escrita por Ian Kelly, ator que viveu Carême nos palcos nova-iorquinos e na Inglaterra em 2004, é certamente sucinta, haja vista a grandeza de sua contribuição para a gastronomia -só para ter uma idéia, entre as suas invenções estão o suflê, o merengue, o molho béchamel (também conhecido como molho branco, à base de manteiga, farinha e leite) e a famosa entrada de massa folhada, o vol-au-vent.
Sua história começa em 1783. Num cortiço na rue du Bac, à margem do rio Sena, em Paris, nasce o menino Marie Antoine Carême. Nove anos depois, o garoto é abandonado pelo pai na região central da capital francesa, deixando-lhe apenas algumas palavras: "Hoje em dia, é só usar a inteligência para fazer fortuna e ser alguém, e inteligência você tem. "Va, petit!'".
Carême obedeceu com esmero às palavras paternas e usou sua inteligência (na cozinha, especificamente) para, assim, conquistar fortuna e fama. Acolhido por um cozinheiro nas ruas de Paris, o garoto aprendeu, em regime quase escravocrata, a descascar batatas para fazer sopas num pequeno restaurante de Sainte Ménèhould. Cerca de seis anos depois, deixou o estabelecimento e iniciou seu aprendizado com o pâtissier Sylvain Bailly. Em pouco tempo, Bailly e seu "ambicioso aprendiz" tornaram-se famosos na sociedade parisiense, que vivia uma fase de "inovações", brotadas após as explosões políticas da Revolução Francesa.
Carême seguia trajetória não menos "revolucionária", superando (com pouco mais de 15 anos) seu mestre, recebendo inclusive visitas de clientes ilustres, como o líder revolucionário venezuelano Simon Bolívar, que freqüentava a confeitaria para provar seus bolos esculturais -cuja inspiração provinha de seus estudos nos livros de arquitetura (outra paixão do cozinheiro).
Tal salto inicial justifica os jantares que Carême promoveu pouco tempo depois para a família Bonaparte, uma das mais importantes da França, que já assistia à ascensão de Napoleão. Não só ele mas também o czar Alexandre, da Rússia, membros da dinastia Rothschild e o embaixador britânico em Viena, o lorde Charles Steward, são alguns dos nomes que experimentaram a arte de Carême, o que, aliás, justifica o subtítulo do livro de Kelly, cujo lançamento inspirou um festival no Rio de Janeiro. Entre os dias 26 de agosto e 4 de setembro, oito restaurantes franceses do Rio recriarão pratos do chef, incluindo, mais que obviamente, o bistrô Carême, chefiado por Flávia Quaresma.

Inspiração do acaso
Durante seu período de estudos na École Le Cordon Bleu, na França, Quaresma descobriu a história de Carême. Não bastasse a coincidência do nome -Carême significa Quaresma em português-, a sala onde estudou durante meses também levava o nome do chef francês. O acaso facilitou, anos depois, o batismo de seu restaurante em Botafogo.
"Ele era um obcecado. Tinha a meta de fazer da gastronomia uma arte. Foi muito moderno para a sua época", define Quaresma.
Carême, de fato, foi homem um tanto à frente de seu tempo. Ele foi responsável pela popularização do serviço à russa, em que os pratos vêem prontos à mesa para cada comensal, e pela adoção do tradicional uniforme branco para os cozinheiros. Além de ter sido um dos primeiros a pensar no aspecto visual do prato, precedendo, de certa forma, a nouvelle cuisine, estilo culinário iniciado em 1970 que caracteriza uma comida leve, servida em pouca quantidade, com inequívoco requinte.
Será que há algum chef com o mesmo perfil e importância atualmente? Quaresma acredita que Heston Blumenthal, do restaurante inglês The Fat Duck, é um nome que deve deixar um legado para a história da gastronomia. "Ele é um químico, um estudioso mesmo. Consegue ser mais insano do que o Adrià [Ferran Adrià, chef espanhol do El Bulli]", explica a chef carioca.
Christophe Lidy, chef francês do restaurante Garcia & Rodrigues, que também participará do festival, define Carême em duas palavras: "Coragem e perseverança".
"Eram outros tempos. Eu fico pensando na dificuldade de encontrar toda a matéria-prima, de conseguir conservar os alimentos e, principalmente, de trabalhar com o carvão, que é muito difícil de controlar a temperatura", completou Lidy.
Ironicamente, foi o carvão o responsável pelo fim da saga de Carême. Assim como seu ídolo, o famoso cozinheiro Vatel, que se suicidou aos 36 anos por não ter conseguido dar conta de um banquete ao rei Luís 14, a causa da morte do "cozinheiro dos reis" foi a própria profissão. Auxiliada, no caso, pela inalação do monóxido de carbono que os fogões baforaram nas cozinhas que Carême freqüentou por anos, cujo resultado foi um envenenamento que o vitimou no cair da noite de 12 de janeiro de 1833.


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