|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
COMIDA
Biografia de Antonin Carême, "chef-celebridade" no séc. 18, chega ao Brasil e inspira festival no Rio
Na cozinha da corte
CRISTIANE LEONEL
ENVIADA ESPECIAL AO RIO
Antonin Carême, considerado o
primeiro "chef-celebridade" da
história, conseguiu algo muito
além do sonho de socialites, que é
o de se eternizar no seleto espaço
da coluna social. Seus inventos,
nascidos entre os séculos 18 e 19,
atravessaram a maré turbulenta
da história e chegam agora, praticamente intactos, ao século 21. A
prova de que sua imagem se mantém sagrada está, por exemplo, na
"toque", o conhecido chapéu de
mestre-cuca criado por ele. E,
agora, o livro "Carême - Cozinheiro dos Reis" (R$ 39,50; 288
págs.), que acaba ser lançado no
Brasil pela editora Jorge Zahar,
vem destrinchar a sua intensa trajetória.
A biografia, escrita por Ian
Kelly, ator que viveu Carême nos
palcos nova-iorquinos e na Inglaterra em 2004, é certamente sucinta, haja vista a grandeza de sua
contribuição para a gastronomia
-só para ter uma idéia, entre as
suas invenções estão o suflê, o
merengue, o molho béchamel
(também conhecido como molho
branco, à base de manteiga, farinha e leite) e a famosa entrada de
massa folhada, o vol-au-vent.
Sua história começa em 1783.
Num cortiço na rue du Bac, à
margem do rio Sena, em Paris,
nasce o menino Marie Antoine
Carême. Nove anos depois, o garoto é abandonado pelo pai na região central da capital francesa,
deixando-lhe apenas algumas palavras: "Hoje em dia, é só usar a
inteligência para fazer fortuna e
ser alguém, e inteligência você
tem. "Va, petit!'".
Carême obedeceu com esmero
às palavras paternas e usou sua inteligência (na cozinha, especificamente) para, assim, conquistar
fortuna e fama. Acolhido por um
cozinheiro nas ruas de Paris, o garoto aprendeu, em regime quase
escravocrata, a descascar batatas
para fazer sopas num pequeno
restaurante de Sainte Ménèhould.
Cerca de seis anos depois, deixou
o estabelecimento e iniciou seu
aprendizado com o pâtissier
Sylvain Bailly. Em pouco tempo,
Bailly e seu "ambicioso aprendiz"
tornaram-se famosos na sociedade parisiense, que vivia uma fase
de "inovações", brotadas após as
explosões políticas da Revolução
Francesa.
Carême seguia trajetória não
menos "revolucionária", superando (com pouco mais de 15
anos) seu mestre, recebendo inclusive visitas de clientes ilustres,
como o líder revolucionário venezuelano Simon Bolívar, que freqüentava a confeitaria para provar seus bolos esculturais -cuja
inspiração provinha de seus estudos nos livros de arquitetura (outra paixão do cozinheiro).
Tal salto inicial justifica os jantares que Carême promoveu pouco
tempo depois para a família Bonaparte, uma das mais importantes da França, que já assistia à ascensão de Napoleão. Não só ele
mas também o czar Alexandre, da
Rússia, membros da dinastia
Rothschild e o embaixador britânico em Viena, o lorde Charles
Steward, são alguns dos nomes
que experimentaram a arte de Carême, o que, aliás, justifica o subtítulo do livro de Kelly, cujo lançamento inspirou um festival no
Rio de Janeiro.
Entre os dias 26 de agosto e 4 de
setembro, oito restaurantes franceses do Rio recriarão pratos do
chef, incluindo, mais que obviamente, o bistrô Carême, chefiado
por Flávia Quaresma.
Inspiração do acaso
Durante seu período de estudos
na École Le Cordon Bleu, na França, Quaresma descobriu a história
de Carême. Não bastasse a coincidência do nome -Carême significa Quaresma em português-, a
sala onde estudou durante meses
também levava o nome do chef
francês. O acaso facilitou, anos
depois, o batismo de seu restaurante em Botafogo.
"Ele era um obcecado. Tinha a
meta de fazer da gastronomia
uma arte. Foi muito moderno para a sua época", define Quaresma.
Carême, de fato, foi homem um
tanto à frente de seu tempo. Ele foi
responsável pela popularização
do serviço à russa, em que os pratos vêem prontos à mesa para cada comensal, e pela adoção do tradicional uniforme branco para os
cozinheiros. Além de ter sido um
dos primeiros a pensar no aspecto
visual do prato, precedendo, de
certa forma, a nouvelle cuisine,
estilo culinário iniciado em 1970
que caracteriza uma comida leve,
servida em pouca quantidade,
com inequívoco requinte.
Será que há algum chef com o
mesmo perfil e importância atualmente? Quaresma acredita que
Heston Blumenthal, do restaurante inglês The Fat Duck, é um
nome que deve deixar um legado
para a história da gastronomia.
"Ele é um químico, um estudioso
mesmo. Consegue ser mais insano do que o Adrià [Ferran Adrià,
chef espanhol do El Bulli]", explica a chef carioca.
Christophe Lidy, chef francês do
restaurante Garcia & Rodrigues,
que também participará do festival, define Carême em duas palavras: "Coragem e perseverança".
"Eram outros tempos. Eu fico
pensando na dificuldade de encontrar toda a matéria-prima, de
conseguir conservar os alimentos
e, principalmente, de trabalhar
com o carvão, que é muito difícil
de controlar a temperatura",
completou Lidy.
Ironicamente, foi o carvão o responsável pelo fim da saga de Carême. Assim como seu ídolo, o famoso cozinheiro Vatel, que se suicidou aos 36 anos por não ter conseguido dar conta de um banquete ao rei Luís 14, a causa da morte
do "cozinheiro dos reis" foi a própria profissão. Auxiliada, no caso,
pela inalação do monóxido de
carbono que os fogões baforaram
nas cozinhas que Carême freqüentou por anos, cujo resultado
foi um envenenamento que o vitimou no cair da noite de 12 de janeiro de 1833.
Texto Anterior: Morre o fotógrafo Tonino Delli Colli Próximo Texto: Oito restaurantes estão em festival Índice
|