São Paulo, quarta-feira, 18 de setembro de 2002

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MARCELO COELHO

Se esses são os mocinhos, imagine a cara do bandido

Nos tempos em que o melhor carro à venda no Brasil era o Ford Maverick e a propaganda eleitoral era regida pela Lei Falcão (só podia aparecer a foto, o nome e o currículo de cada candidato), havia um seriado policial na TV Bandeirantes chamado "Canon".
O herói era um sujeito gordíssimo, careca, com um bigode que combinava com as costeletas, um terno mostarda por cima da camisa de voile azul-marinho e um olhar que não era dos mais argutos. O anúncio do seriado dizia o seguinte: "Esse é o mocinho que o 13 apresenta hoje à noite. Imagine a cara do bandido".
Essa foi uma das primeiras campanhas publicitárias inventadas por Washington Olivetto, que é entrevistado por Manuel da Costa Pinto na revista "Cult" de setembro. A revista traz na capa uma foto de Marx: artigos e entrevistas discutem a atualidade de seu pensamento.
Mas voltemos ao anúncio de "Canon". Na época, lembro-me de ter gostado do uso daquele tom humorístico na publicidade. Hoje em dia, reconheço com bastante náusea um certo estilo espirituoso nos outdoors, que foi passando dos anúncios da "Playboy" para os de algumas revistas semanais e agora promove todo tipo de produto, de remédios a cursos de inglês.
O fato é que esse estilo vai me irritando um pouco, especialmente quando estou parado num congestionamento e leio, pela quarta ou quinta vez, a mesma piada. Não sei se me incomoda a intenção publicitária de dirigir-se a um público supostamente "inteligente"; há algo de invariavelmente adulatório nesse humorismo, que nunca perde a ocasião para uma "fina ironia" -não importa se sobre Auschwitz ou sobre os novos tratamentos para a queda de cabelo.
É como se estivessem permanentemente piscando o olho para o consumidor, numa espécie de cumplicidade genérica e indulgente; "sei que você é esperto demais para ser enganado", parecem dizer esses anúncios, "mas pelo menos temos algo em comum...".
Nessa cumplicidade está, sem dúvida, o principal mecanismo com que se foi construindo a identidade ideológica da famosa "classe média" urbana, um conceito suficientemente amplo para incluir todos aqueles que não dependem dos serviços públicos -transporte, educação, saúde e mesmo segurança- em seu cotidiano.
É provavelmente essa condição -a de contar com previdência privada, ter os filhos estudando em escolas particulares etc.- que funciona como uma espécie de atestado de inteligência para o destinatário da publicidade humorística; congratulamo-nos pela astúcia, pela finura -aliás, brasileiríssima- com que nos situamos acima da vala comum. Afinal, quem olha o mundo da sacada do edifício já tem concepções mais arejadas do que quem está lá embaixo no ponto de ônibus.
O que me incomoda mais na propaganda humorística, entretanto, é uma certa impertinência: um ar de quem veio sem ser chamado, mas que se julga automaticamente merecedor da atenção do público.
Em outros tempos, essa atenção era conquistada aos berros. São assim os velhos anúncios, bem diretos, bem merecedores do antigo nome de "reclames", que podemos ver recolhidos num livro editado há pouco, "A Propaganda Brasileira através do Cartão-Postal, 1900-1950", S. Gorberg, editor.
Na verdade, há todo tipo de cartão-postal nesse livro, desde lembranças do Carnaval de 1905 em Manaus até santinhos de Getúlio Vargas. O que mais me fascina são os anúncios de remédio, de tão diretos nas suas promessas, de tão honestos na própria hipérbole.
A começar pelos nomes: se é um remédio para a pele, chama-se "Epidermol". Se para a tosse, é "Pulmotil". Um fortificante se chama "Vigoron", e seus anúncios mostram um touro sendo vencido na arena.
Outro, contra a asma, arrisca uma metáfora: vemos a imagem de um senhor de vastos bigodes, assomando à janela, de garrucha em punho. Fugindo dos tiros, está um gato preto. Não o deixava dormir. Sobre o dorso do gato, o letreiro: "a asma". Para combatê-la, Kraemina.
Os laxativos exigem mais sutileza publicitária. O cartão de Bromo Quinina ilustra suas próprias virtudes -ou os males de que é a cura- com uma paisagem das eclusas do canal do Panamá.
Inúmeros os exemplos -sabonetes, conservas, carros, tecidos- em que simplesmente se grita: "o melhor".
É por gostar desse tipo de coisa que tenho sensações ambíguas quando vejo o horário eleitoral. Toda aquela estética publicitária de classe média, com suas propostas "inteligentes", vai por água abaixo na parte dos candidatos a deputado. É o momento em que sujeitos muito feios, mal pronunciando o próprio nome, aparecem hirtos diante da tela, às vezes com dois ou três assessores que parecem tirados das páginas de Lombroso.
É tão ruim que até parece verdade. Poderiam dizer: se esses são os mocinhos, imagine a cara do bandido. Mas o bandido não precisa mais ser imaginado. É Fernandinho Beira-Mar; sua ascensão como inimigo público número um coincide com uma trégua, não sei se duradoura, no processo de demonização da esquerda. Seja quem for o bandido, o importante -numa sociedade tão cindida, tão desfigurada e assustadora como a brasileira- é preservar a inocência geral.



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