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MARCELO COELHO
Se esses são os mocinhos, imagine a cara do bandido
Nos tempos em que o melhor carro à venda no Brasil
era o Ford Maverick e a propaganda eleitoral era regida pela
Lei Falcão (só podia aparecer a
foto, o nome e o currículo de cada
candidato), havia um seriado policial na TV Bandeirantes chamado "Canon".
O herói era um sujeito gordíssimo, careca, com um bigode que
combinava com as costeletas, um
terno mostarda por cima da camisa de voile azul-marinho e um
olhar que não era dos mais argutos. O anúncio do seriado dizia o
seguinte: "Esse é o mocinho que o
13 apresenta hoje à noite. Imagine a cara do bandido".
Essa foi uma das primeiras
campanhas publicitárias inventadas por Washington Olivetto,
que é entrevistado por Manuel da
Costa Pinto na revista "Cult" de
setembro. A revista traz na capa
uma foto de Marx: artigos e entrevistas discutem a atualidade de
seu pensamento.
Mas voltemos ao anúncio de
"Canon". Na época, lembro-me
de ter gostado do uso daquele tom
humorístico na publicidade. Hoje
em dia, reconheço com bastante
náusea um certo estilo espirituoso
nos outdoors, que foi passando
dos anúncios da "Playboy" para
os de algumas revistas semanais e
agora promove todo tipo de produto, de remédios a cursos de inglês.
O fato é que esse estilo vai me irritando um pouco, especialmente
quando estou parado num congestionamento e leio, pela quarta
ou quinta vez, a mesma piada.
Não sei se me incomoda a intenção publicitária de dirigir-se a um
público supostamente "inteligente"; há algo de invariavelmente
adulatório nesse humorismo, que
nunca perde a ocasião para uma
"fina ironia" -não importa se
sobre Auschwitz ou sobre os novos tratamentos para a queda de
cabelo.
É como se estivessem permanentemente piscando o olho para
o consumidor, numa espécie de
cumplicidade genérica e indulgente; "sei que você é esperto demais para ser enganado", parecem dizer esses anúncios, "mas
pelo menos temos algo em comum...".
Nessa cumplicidade está, sem
dúvida, o principal mecanismo
com que se foi construindo a
identidade ideológica da famosa
"classe média" urbana, um conceito suficientemente amplo para
incluir todos aqueles que não dependem dos serviços públicos
-transporte, educação, saúde e
mesmo segurança- em seu cotidiano.
É provavelmente essa condição
-a de contar com previdência
privada, ter os filhos estudando
em escolas particulares etc.- que
funciona como uma espécie de
atestado de inteligência para o
destinatário da publicidade humorística; congratulamo-nos pela
astúcia, pela finura -aliás, brasileiríssima- com que nos situamos acima da vala comum. Afinal, quem olha o mundo da sacada do edifício já tem concepções
mais arejadas do que quem está
lá embaixo no ponto de ônibus.
O que me incomoda mais na
propaganda humorística, entretanto, é uma certa impertinência:
um ar de quem veio sem ser chamado, mas que se julga automaticamente merecedor da atenção
do público.
Em outros tempos, essa atenção
era conquistada aos berros. São
assim os velhos anúncios, bem diretos, bem merecedores do antigo
nome de "reclames", que podemos ver recolhidos num livro editado há pouco, "A Propaganda
Brasileira através do Cartão-Postal, 1900-1950", S. Gorberg, editor.
Na verdade, há todo tipo de cartão-postal nesse livro, desde lembranças do Carnaval de 1905 em
Manaus até santinhos de Getúlio
Vargas. O que mais me fascina
são os anúncios de remédio, de
tão diretos nas suas promessas, de
tão honestos na própria hipérbole.
A começar pelos nomes: se é um
remédio para a pele, chama-se
"Epidermol". Se para a tosse, é
"Pulmotil". Um fortificante se
chama "Vigoron", e seus anúncios mostram um touro sendo
vencido na arena.
Outro, contra a asma, arrisca
uma metáfora: vemos a imagem
de um senhor de vastos bigodes,
assomando à janela, de garrucha
em punho. Fugindo dos tiros, está
um gato preto. Não o deixava
dormir. Sobre o dorso do gato, o
letreiro: "a asma". Para combatê-la, Kraemina.
Os laxativos exigem mais sutileza publicitária. O cartão de Bromo Quinina ilustra suas próprias
virtudes -ou os males de que é a
cura- com uma paisagem das
eclusas do canal do Panamá.
Inúmeros os exemplos -sabonetes, conservas, carros, tecidos-
em que simplesmente se grita: "o
melhor".
É por gostar desse tipo de coisa
que tenho sensações ambíguas
quando vejo o horário eleitoral.
Toda aquela estética publicitária
de classe média, com suas propostas "inteligentes", vai por água
abaixo na parte dos candidatos a
deputado. É o momento em que
sujeitos muito feios, mal pronunciando o próprio nome, aparecem
hirtos diante da tela, às vezes com
dois ou três assessores que parecem tirados das páginas de Lombroso.
É tão ruim que até parece verdade. Poderiam dizer: se esses são
os mocinhos, imagine a cara do
bandido. Mas o bandido não precisa mais ser imaginado. É Fernandinho Beira-Mar; sua ascensão como inimigo público número um coincide com uma trégua,
não sei se duradoura, no processo
de demonização da esquerda. Seja quem for o bandido, o importante -numa sociedade tão cindida, tão desfigurada e assustadora como a brasileira- é preservar a inocência geral.
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