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RODAPÉ
Cerebralismo e banalidade
MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA
O modo frio de narrar situações insólitas ecoa Kafka. A
atenção obsessiva a detalhes insignificantes lembra os diálogos
sem conteúdo de Beckett. A temática erótica, oscilando entre perversão e cinismo, tem algo de Nelson Rodrigues. E o humor remete
ora às ironias de Borges, ora às comédias da vida privada de Luis
Fernando Verissimo.
Referências a autores tão díspares podem dar uma idéia da singular combinação de registros
presente em "O Porquê de Todas
as Coisas", de Quim Monzó. Escrito em catalão e traduzido pelo
poeta e ensaísta Ronald Polito, o
livro desse espanhol nascido em
Barcelona reúne trinta contos e é
sua primeira obra vertida para o
português.
Associar o impacto da leitura de
um escritor a nomes já consagrados é uma forma fácil de pacificar
seu caráter enigmático, de submetê-lo a uma escrita reconhecível. No caso de Monzó, porém, a
remissão é inevitável, pois a matéria-prima de seus contos é feita de
formas literárias e situações estereotipadas, que ele retrabalha de
modo surpreendente.
Não por acaso, é possível identificar no livro duas séries de contos
que fazem largo uso de clichês
narrativos. Em textos como "Pigmalião", "A Bela Adormecida",
"O Sapo" e "A Monarquia", Monzó parodia mitos e contos de fadas
com intenções anárquicas.
Neste último, por exemplo, a
Gata Borralheira desconfia que o
rei, com quem se casara na fábula
tradicional, fica entediado porque
ela se "nega a práticas que considera perversas (sodomia e chuva
dourada, basicamente)" e descobre que ele se entrega a orgias noturnas com suas meio-irmãs.
Numa outra seqüência, mais
metalingüística, ele retoma a estrutura "en abîme" da ficção dentro da ficção -uma tópica que,
depois de ter atingido seu apogeu
com Borges, costuma redundar
em literatice na mão de discípulos
pouco talentosos.
O cerebralismo de Monzó, no
entanto, jamais é um fim em si
mesmo. Em "A Divina Providência", um erudito que empenhou a
vida para escrever uma Grande
Obra percebe, quando chega ao
septuagésimo segundo volume,
que a tinta dos tomos iniciais está
se apagando, lançando-o num dilema dilacerante (concluir o projeto ou refazer os primeiros manuscritos?) que expõe o ridículo
dessa existência livresca.
E, em "O Conto", um escritor
produz um relato que considera
perfeito, a tal ponto que não consegue achar um título condizente
para o texto -que, dessa forma,
mostra sua imperfeição.
Aliás, pode-se dizer que é nesse
contraste entre cerebralismo e banalidade que está a força de "O
Porquê de Todas as Coisas". Mas,
na maioria absoluta dos contos,
Monzó fala de situações conjugais, com instantâneos da crueldade e do descompasso das relações amorosas.
Suas tramas sumárias, normalmente reduzidas a uma única cena em que as personagens cismam e se digladiam, assemelham-se a crônicas de jornal. Não
há aqui pinceladas de "cor local":
os contos do escritor catalão pertencem a essa zona incolor de
uma classe média urbana, que é
mais ou menos igual em qualquer
parte do planeta.
Nada menos suscetível de inquietações metafísicas do que a
"mulher fatal" e o "homem irresistível" que se separam depois de
terem atingido o ápice da "perfeição fornicadora"; ou do que a esposa que, para resgatar o desejo
do marido, se submete a intervenções plásticas que a transformam
num andróide de silicone; ou do
que o homem que dissimula para
a esposa uma conversa telefônica
com a amante (mesmo que, ao final, a trama derive para a farsa).
Quim Monzó exacerba essas vidas robotizadas, transforma suas
falas previsíveis sobre a sinceridade afetiva numa espécie de salmodia hipnotizante. Em vários contos, o sadomasoquismo e o grotesco se insinuam com deformações corporais que são integradas
ao naturalismo seco da narrativa.
Mas não há espaço para transcendência nesse universo kafkiano às avessas: tudo retorna à pacífica banalidade cotidiana num
mundo perturbado por essa "coisa racionalmente tão nefasta" que
é paixão e nessas personagens
derrisórias, abismadas pelo "funesto costume humano de se emparelhar e conviver".
O Porquê de Todas as Coisas
Autor: Quim Monzó
Tradução: Ronald Polito
Editora: Globo
Quanto: R$ 28 (168 págs.)
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