São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

RODAPÉ

Cerebralismo e banalidade

MANUEL DA COSTA PINTO
COLUNISTA DA FOLHA

O modo frio de narrar situações insólitas ecoa Kafka. A atenção obsessiva a detalhes insignificantes lembra os diálogos sem conteúdo de Beckett. A temática erótica, oscilando entre perversão e cinismo, tem algo de Nelson Rodrigues. E o humor remete ora às ironias de Borges, ora às comédias da vida privada de Luis Fernando Verissimo.
Referências a autores tão díspares podem dar uma idéia da singular combinação de registros presente em "O Porquê de Todas as Coisas", de Quim Monzó. Escrito em catalão e traduzido pelo poeta e ensaísta Ronald Polito, o livro desse espanhol nascido em Barcelona reúne trinta contos e é sua primeira obra vertida para o português.
Associar o impacto da leitura de um escritor a nomes já consagrados é uma forma fácil de pacificar seu caráter enigmático, de submetê-lo a uma escrita reconhecível. No caso de Monzó, porém, a remissão é inevitável, pois a matéria-prima de seus contos é feita de formas literárias e situações estereotipadas, que ele retrabalha de modo surpreendente.
Não por acaso, é possível identificar no livro duas séries de contos que fazem largo uso de clichês narrativos. Em textos como "Pigmalião", "A Bela Adormecida", "O Sapo" e "A Monarquia", Monzó parodia mitos e contos de fadas com intenções anárquicas.
Neste último, por exemplo, a Gata Borralheira desconfia que o rei, com quem se casara na fábula tradicional, fica entediado porque ela se "nega a práticas que considera perversas (sodomia e chuva dourada, basicamente)" e descobre que ele se entrega a orgias noturnas com suas meio-irmãs.
Numa outra seqüência, mais metalingüística, ele retoma a estrutura "en abîme" da ficção dentro da ficção -uma tópica que, depois de ter atingido seu apogeu com Borges, costuma redundar em literatice na mão de discípulos pouco talentosos.
O cerebralismo de Monzó, no entanto, jamais é um fim em si mesmo. Em "A Divina Providência", um erudito que empenhou a vida para escrever uma Grande Obra percebe, quando chega ao septuagésimo segundo volume, que a tinta dos tomos iniciais está se apagando, lançando-o num dilema dilacerante (concluir o projeto ou refazer os primeiros manuscritos?) que expõe o ridículo dessa existência livresca.
E, em "O Conto", um escritor produz um relato que considera perfeito, a tal ponto que não consegue achar um título condizente para o texto -que, dessa forma, mostra sua imperfeição.
Aliás, pode-se dizer que é nesse contraste entre cerebralismo e banalidade que está a força de "O Porquê de Todas as Coisas". Mas, na maioria absoluta dos contos, Monzó fala de situações conjugais, com instantâneos da crueldade e do descompasso das relações amorosas.
Suas tramas sumárias, normalmente reduzidas a uma única cena em que as personagens cismam e se digladiam, assemelham-se a crônicas de jornal. Não há aqui pinceladas de "cor local": os contos do escritor catalão pertencem a essa zona incolor de uma classe média urbana, que é mais ou menos igual em qualquer parte do planeta.
Nada menos suscetível de inquietações metafísicas do que a "mulher fatal" e o "homem irresistível" que se separam depois de terem atingido o ápice da "perfeição fornicadora"; ou do que a esposa que, para resgatar o desejo do marido, se submete a intervenções plásticas que a transformam num andróide de silicone; ou do que o homem que dissimula para a esposa uma conversa telefônica com a amante (mesmo que, ao final, a trama derive para a farsa).
Quim Monzó exacerba essas vidas robotizadas, transforma suas falas previsíveis sobre a sinceridade afetiva numa espécie de salmodia hipnotizante. Em vários contos, o sadomasoquismo e o grotesco se insinuam com deformações corporais que são integradas ao naturalismo seco da narrativa.
Mas não há espaço para transcendência nesse universo kafkiano às avessas: tudo retorna à pacífica banalidade cotidiana num mundo perturbado por essa "coisa racionalmente tão nefasta" que é paixão e nessas personagens derrisórias, abismadas pelo "funesto costume humano de se emparelhar e conviver".


O Porquê de Todas as Coisas
    
Autor: Quim Monzó
Tradução: Ronald Polito
Editora: Globo
Quanto: R$ 28 (168 págs.)



Texto Anterior: Mônica Bergamo
Próximo Texto: Literatura: Nelson Motta compõe "pulp fiction" carioca
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.