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"JORNAL NACIONAL: A NOTÍCIA FAZ HISTÓRIA"
Pesquisa rigorosa não esconde tom oficialista de obra sobre telejornal
Livro reescreve a história dos 35 anos do "JN'
BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA
De cara , é preciso problematizar um livro que se propõe
a "fazer história" e invoca, já no
seu prefácio, uma fantasmagoria
como "a pura verdade".
Está lá, no prefácio de João Roberto Marinho, vice-presidente
das Organizações Globo ao "Jornal Nacional: A Notícia Faz História": "Quando o leitor virar a última página, esperamos que ele tenha a mesma certeza diária que
tem ao terminar de assistir ao
"Jornal Nacional': a de que o que
acabou de ler, goste-se ou não, é a
pura verdade".
É partindo dessa dupla premissa de que ambos, história e jornalismo, lidam com uma matéria-prima tão intangível quanto a verdade que o livro pretende reconstituir em detalhes exaustivos os 35
anos do telejornal e do Brasil que
o assistia. A ambição, portanto, é
mesmo aquela que o peso da palavra "verdade" confere: a de estabelecer a versão irrefutável e definitiva, esclarecer os mal entendidos, responder às críticas. Trocando em miúdos, trata-se de
mostrar como o "Jornal Nacional" (goste-se ou não) transformou-se num dos principais veículos de informação do Brasil.
Mas também quer dizer que a
Globo anda empenhada em reescrever sua história, com tudo o
que isso significa.
Da primeira tarefa, "Jornal Nacional: A Notícia Faz História" até
que se sai bem. Os responsáveis
pela empreitada, o projeto Memória Globo, esbanjam cifras superlativas na elaboração do livro:
a pesquisa consumiu cinco anos,
foram assistidas mais de 2.000 fitas e realizadas 200 entrevistas etc.
etc. A minúcia com que são lembrados os fatos, personagens, circunstâncias que deram forma e
volume ao telejornalismo brasileiro constituem, de fato, material
valioso para a pesquisa em televisão.
Se a pesquisa foi determinada
pelo detalhe, tanto a edição quanto a redação final obedeceram à
ambição de dar conta dos mais diversos aspectos envolvidos na
confecção de um telejornal. Dos
equipamentos ao ambiente político, da formação das equipes à
criatividade em contornar problemas técnicos, a preocupação
foi de tudo registrar e tudo narrar
de forma organizada e coerente.
Nesse sentido, o proverbial padrão de qualidade, que, vira e mexe anda deixando de dar o ar de
sua graça na programação, aqui
imprime sua marca. Quase nada
nem ninguém foi deixado de lado.
Seria, em suma, um livro institucional ao mesmo tempo como
tantos, mas também como poucos. O apuro, rigor e investimento
despendidos em sua elaboração o
singularizam como um esforço
diferenciado, mas o tom chapa-branca e o risco da parcialidade
estão na base de qualquer história
de empresa ou instituição que é
feita por encomenda. Só que a
Globo não é uma empresa qualquer e o "Jornal Nacional" é, menos ainda, um telejornal qualquer.
O movimento de reescrever a
história sob a égide da pureza da
verdade só pode produzir um simulacro de história. Nesse sentido, o rigor da pesquisa torna-se tímido diante do desejo de interpretação. E a interpretação que
emana de "Jornal Nacional: A Notícia Faz História" sugere que o telejornal da Globo a) não esteve do
lado do regime durante "os anos
de chumbo" (como eles mesmos
caracterizam o período pós-68);
b) que sempre praticou um jornalismo isento e imparcial, mesmo
quando seus interesses estavam
em jogo; e c) que, nos anos 90, não
se dobrou ao sensacionalismo e
barateou a notícia diante da concorrência mais popularesca. Ou
seja, de que seu passado é impoluto. Puro?
Os mecanismos revisionistas
aos quais o livro recorre são vários. Um fumo de autocrítica, por
exemplo, perpassa todo o trecho
sobre a campanha das Diretas. A
Rede Globo entende que, fora a
maledicência de uns e outros,
nunca nomeados, o fato de o "Jornal Nacional" não ter coberto a
campanha das Diretas deveu-se a
um "desencontro e a uma mistificação": "O desencontro entre o
desejo da população e a postura
que a TV Globo adotou no período inicial dos comícios. E a mistificação, produzida por alguns, ao
transformar a mentira numa verdade estabelecida. (...) O desencontro se deu quando a Globo,
condicionada pelas circunstâncias históricas da época e por um
jogo de pressões políticas muito
forte, decidiu manter a cobertura,
ao menos inicialmente, num tom
não-emocional, eqüidistante, comedido". As injunções históricas,
portanto, justificam qualquer coisa, inclusive aquilo que está, no livro, bem explícito: as orientações
para baixar o tom da campanha, a
despolitização da notícia sobre o
comício da Sé (dizia o texto de Ernesto Paglia: "Não foi apenas uma
manifestação política").
Já no episódio da edição do debate de 1989 entre os candidatos à
Presidência Luiz Inácio Lula da
Silva e Fernando Collor, a tática é
de desorientação pura e simples.
Os depoimentos dos principais
envolvidos se contradizem francamente e não, como o texto que
os antecede sugere, são versões
"talvez sem coincidência entre
elas". A não-coincidência, caridosamente, é imputada à distância
temporal, mas como, então, confiar em quaisquer outras informações do livro, algumas delas sobre
acontecimentos ainda mais distantes no tempo?
No entanto, emerge uma história mais ou menos oficial desse
disse-que-disse: a de que os responsáveis pelo desacerto seriam o
então diretor de telejornais Alberico Sousa Cruz e o editor de Política Ronald de Carvalho, que, à revelia da família Marinho e da direção da Central Globo de Jornalismo, teriam reeditado o debate.
Mas o que, então, explica que Alberico e Ronald tenham subido
na hierarquia da empresa menos
de quatro meses mais tarde?
Se a tarefa de reescrever a história tem lá seus percalços, o que dirá a de contar a verdade, sobretudo quando se supõe que ela exista
em estado de pureza para além
dos fatos?
Jornal Nacional: A Notícia Faz História
Autoria: Memória Globo
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 29,50 (408 páginas)
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