São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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"JORNAL NACIONAL: A NOTÍCIA FAZ HISTÓRIA"

Pesquisa rigorosa não esconde tom oficialista de obra sobre telejornal

Livro reescreve a história dos 35 anos do "JN'

BIA ABRAMO
COLUNISTA DA FOLHA

De cara , é preciso problematizar um livro que se propõe a "fazer história" e invoca, já no seu prefácio, uma fantasmagoria como "a pura verdade".
Está lá, no prefácio de João Roberto Marinho, vice-presidente das Organizações Globo ao "Jornal Nacional: A Notícia Faz História": "Quando o leitor virar a última página, esperamos que ele tenha a mesma certeza diária que tem ao terminar de assistir ao "Jornal Nacional': a de que o que acabou de ler, goste-se ou não, é a pura verdade".
É partindo dessa dupla premissa de que ambos, história e jornalismo, lidam com uma matéria-prima tão intangível quanto a verdade que o livro pretende reconstituir em detalhes exaustivos os 35 anos do telejornal e do Brasil que o assistia. A ambição, portanto, é mesmo aquela que o peso da palavra "verdade" confere: a de estabelecer a versão irrefutável e definitiva, esclarecer os mal entendidos, responder às críticas. Trocando em miúdos, trata-se de mostrar como o "Jornal Nacional" (goste-se ou não) transformou-se num dos principais veículos de informação do Brasil. Mas também quer dizer que a Globo anda empenhada em reescrever sua história, com tudo o que isso significa.
Da primeira tarefa, "Jornal Nacional: A Notícia Faz História" até que se sai bem. Os responsáveis pela empreitada, o projeto Memória Globo, esbanjam cifras superlativas na elaboração do livro: a pesquisa consumiu cinco anos, foram assistidas mais de 2.000 fitas e realizadas 200 entrevistas etc. etc. A minúcia com que são lembrados os fatos, personagens, circunstâncias que deram forma e volume ao telejornalismo brasileiro constituem, de fato, material valioso para a pesquisa em televisão.
Se a pesquisa foi determinada pelo detalhe, tanto a edição quanto a redação final obedeceram à ambição de dar conta dos mais diversos aspectos envolvidos na confecção de um telejornal. Dos equipamentos ao ambiente político, da formação das equipes à criatividade em contornar problemas técnicos, a preocupação foi de tudo registrar e tudo narrar de forma organizada e coerente. Nesse sentido, o proverbial padrão de qualidade, que, vira e mexe anda deixando de dar o ar de sua graça na programação, aqui imprime sua marca. Quase nada nem ninguém foi deixado de lado.
Seria, em suma, um livro institucional ao mesmo tempo como tantos, mas também como poucos. O apuro, rigor e investimento despendidos em sua elaboração o singularizam como um esforço diferenciado, mas o tom chapa-branca e o risco da parcialidade estão na base de qualquer história de empresa ou instituição que é feita por encomenda. Só que a Globo não é uma empresa qualquer e o "Jornal Nacional" é, menos ainda, um telejornal qualquer.
O movimento de reescrever a história sob a égide da pureza da verdade só pode produzir um simulacro de história. Nesse sentido, o rigor da pesquisa torna-se tímido diante do desejo de interpretação. E a interpretação que emana de "Jornal Nacional: A Notícia Faz História" sugere que o telejornal da Globo a) não esteve do lado do regime durante "os anos de chumbo" (como eles mesmos caracterizam o período pós-68); b) que sempre praticou um jornalismo isento e imparcial, mesmo quando seus interesses estavam em jogo; e c) que, nos anos 90, não se dobrou ao sensacionalismo e barateou a notícia diante da concorrência mais popularesca. Ou seja, de que seu passado é impoluto. Puro?
Os mecanismos revisionistas aos quais o livro recorre são vários. Um fumo de autocrítica, por exemplo, perpassa todo o trecho sobre a campanha das Diretas. A Rede Globo entende que, fora a maledicência de uns e outros, nunca nomeados, o fato de o "Jornal Nacional" não ter coberto a campanha das Diretas deveu-se a um "desencontro e a uma mistificação": "O desencontro entre o desejo da população e a postura que a TV Globo adotou no período inicial dos comícios. E a mistificação, produzida por alguns, ao transformar a mentira numa verdade estabelecida. (...) O desencontro se deu quando a Globo, condicionada pelas circunstâncias históricas da época e por um jogo de pressões políticas muito forte, decidiu manter a cobertura, ao menos inicialmente, num tom não-emocional, eqüidistante, comedido". As injunções históricas, portanto, justificam qualquer coisa, inclusive aquilo que está, no livro, bem explícito: as orientações para baixar o tom da campanha, a despolitização da notícia sobre o comício da Sé (dizia o texto de Ernesto Paglia: "Não foi apenas uma manifestação política").
Já no episódio da edição do debate de 1989 entre os candidatos à Presidência Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor, a tática é de desorientação pura e simples. Os depoimentos dos principais envolvidos se contradizem francamente e não, como o texto que os antecede sugere, são versões "talvez sem coincidência entre elas". A não-coincidência, caridosamente, é imputada à distância temporal, mas como, então, confiar em quaisquer outras informações do livro, algumas delas sobre acontecimentos ainda mais distantes no tempo?
No entanto, emerge uma história mais ou menos oficial desse disse-que-disse: a de que os responsáveis pelo desacerto seriam o então diretor de telejornais Alberico Sousa Cruz e o editor de Política Ronald de Carvalho, que, à revelia da família Marinho e da direção da Central Globo de Jornalismo, teriam reeditado o debate. Mas o que, então, explica que Alberico e Ronald tenham subido na hierarquia da empresa menos de quatro meses mais tarde?
Se a tarefa de reescrever a história tem lá seus percalços, o que dirá a de contar a verdade, sobretudo quando se supõe que ela exista em estado de pureza para além dos fatos?


Jornal Nacional: A Notícia Faz História
  
Autoria: Memória Globo
Editora: Jorge Zahar
Quanto: R$ 29,50 (408 páginas)



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