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"SE UMA CRIANÇA, NUMA MANHÃ..."
Em carta ao filho, Cotroneo
entrelaça literatura e vida
CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Roberto Cotroneo é um crítico literário italiano. Em 94,
quando seu filho Francesco tinha
dois anos, resolveu escrever-lhe
uma carta sobre o amor pelos livros. O resultado é "Se uma
Criança, Numa Manhã de Verão...", recém-lançado no Brasil.
Trata-se de um trabalho singelo,
erudito e cheio de amor, que talvez todo pai que ama os livros e os
filhos devesse tentar replicar. Cotroneo escolheu quatro autores
(Robert Louis Stevenson, J.D. Salinger, T.S. Eliot e Thomas Bernhard) para mostrar a Francesco
o quanto uma pessoa pode aprender com a leitura. Ele associou cada um desses autores a um sentimento que considera importante:
a inquietação, a ternura, a paixão
e a frustração por possuir menos
talento do que um gênio.
Fez uma interpretação de "A
Ilha do Tesouro", "O Apanhador
no Campo de Centeio", dois poemas de Eliot e "O Náufrago" relacionada respectivamente a cada
um dos sentimentos escolhidos.
E fechou a carta com uma releitura do ensaio de Jorge Luis Borges intitulado "Do Culto dos Livros", em que o grande argentino,
citando Mallarmé, dizia que "o
mundo existe para justificar um
livro". Não que Cotroneo tenha
diante dos livros (ou recomende
ao filho) uma atitude de reverência. Ao contrário, diz a Francesco:
"Fique sabendo que os livros podem até ser jogados fora". O conselho é que a criança explore os livros, brinque com eles, da mesma
forma como ele sempre lhe permitiu brincar ao piano para ir se
familiarizando com a música.
A atitude que ele acha saudável
ter com a literatura, embora a
considere "a única maneira de
compreender o mundo", não é de
temor, de subserviência a verdades definitivas, mas de amizade,
questionamento e contínuo redescobrimento. Na esteira das lições de Borges, Cotroneo afirma:
"Não chegaremos, é claro, a qualquer tipo de conclusão, pois na literatura as conclusões não existem, não há ponto de chegada.
Tudo permanece ambíguo, tudo
escoa. Um livro nunca é o mesmo:
é por isso que às vezes reler é até
mais estimulante do que enfrentar novos livros".
Nada é sagrado no diálogo com
os livros, conta ele ao filho. Nem
começá-los pelo começo e terminá-los no fim. Porque a literatura
e a vida se entrelaçam de forma
indissolúvel. E na vida, quantas
vezes entramos num trem que já
está rodando há horas? Ou participamos de uma conversa já iniciada? Ou nos encantamos com
uma música ouvida no rádio já ao
seu finalzinho?
O importante, o fundamental é
que os livros são "máquinas interpretativas provenientes de uma
consciência, a do leitor. E é justamente aí que está a grandeza dos
livros: precisam de leituras diferentes, abrem-se com chaves que
você tem de encontrar, ou que a
sorte entrega em suas mãos quando você menos espera".
Essas chaves podem ajudar a
pessoa a enfrentar as dificuldades
da vida, e é isso o que Cotroneo
tenta mostrar ao filho. "A vida é
feita de revelações, de epifanias.
Eu estou contando as minhas epifanias". Ao se expor assim ao filho, o autor se revela a ele e, com
certeza, o auxilia a descobrir a si
próprio. Que magnífico presente
Roberto deu a Francesco ao escrever esta carta. E a todos os pais, ao
publicá-la em forma de livro.
Pouco importa se os autores escolhidos formam um bom cânone para crianças (com certeza
ninguém classificaria Eliot como
poeta infanto-juvenil) ou se a as
inferências de Cotroneo fazem
sentido ou não. Vale o exemplo.
Se a herança de todo pai ao filho
fosse uma carta como a de Cotroneo a Francesco, em uma geração,
com certeza, o mundo estaria bastante melhor do que é hoje.
Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista e diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas
Se uma Criança, Numa Manhã de Verão...
Autor: Roberto Cotroneo
Editora: Rocco
Quanto: R$ 28 (214 págs.)
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