São Paulo, sábado, 18 de setembro de 2004

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"SE UMA CRIANÇA, NUMA MANHÃ..."

Em carta ao filho, Cotroneo entrelaça literatura e vida

CARLOS EDUARDO LINS DA SILVA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Roberto Cotroneo é um crítico literário italiano. Em 94, quando seu filho Francesco tinha dois anos, resolveu escrever-lhe uma carta sobre o amor pelos livros. O resultado é "Se uma Criança, Numa Manhã de Verão...", recém-lançado no Brasil.
Trata-se de um trabalho singelo, erudito e cheio de amor, que talvez todo pai que ama os livros e os filhos devesse tentar replicar. Cotroneo escolheu quatro autores (Robert Louis Stevenson, J.D. Salinger, T.S. Eliot e Thomas Bernhard) para mostrar a Francesco o quanto uma pessoa pode aprender com a leitura. Ele associou cada um desses autores a um sentimento que considera importante: a inquietação, a ternura, a paixão e a frustração por possuir menos talento do que um gênio.
Fez uma interpretação de "A Ilha do Tesouro", "O Apanhador no Campo de Centeio", dois poemas de Eliot e "O Náufrago" relacionada respectivamente a cada um dos sentimentos escolhidos.
E fechou a carta com uma releitura do ensaio de Jorge Luis Borges intitulado "Do Culto dos Livros", em que o grande argentino, citando Mallarmé, dizia que "o mundo existe para justificar um livro". Não que Cotroneo tenha diante dos livros (ou recomende ao filho) uma atitude de reverência. Ao contrário, diz a Francesco: "Fique sabendo que os livros podem até ser jogados fora". O conselho é que a criança explore os livros, brinque com eles, da mesma forma como ele sempre lhe permitiu brincar ao piano para ir se familiarizando com a música.
A atitude que ele acha saudável ter com a literatura, embora a considere "a única maneira de compreender o mundo", não é de temor, de subserviência a verdades definitivas, mas de amizade, questionamento e contínuo redescobrimento. Na esteira das lições de Borges, Cotroneo afirma: "Não chegaremos, é claro, a qualquer tipo de conclusão, pois na literatura as conclusões não existem, não há ponto de chegada. Tudo permanece ambíguo, tudo escoa. Um livro nunca é o mesmo: é por isso que às vezes reler é até mais estimulante do que enfrentar novos livros".
Nada é sagrado no diálogo com os livros, conta ele ao filho. Nem começá-los pelo começo e terminá-los no fim. Porque a literatura e a vida se entrelaçam de forma indissolúvel. E na vida, quantas vezes entramos num trem que já está rodando há horas? Ou participamos de uma conversa já iniciada? Ou nos encantamos com uma música ouvida no rádio já ao seu finalzinho?
O importante, o fundamental é que os livros são "máquinas interpretativas provenientes de uma consciência, a do leitor. E é justamente aí que está a grandeza dos livros: precisam de leituras diferentes, abrem-se com chaves que você tem de encontrar, ou que a sorte entrega em suas mãos quando você menos espera".
Essas chaves podem ajudar a pessoa a enfrentar as dificuldades da vida, e é isso o que Cotroneo tenta mostrar ao filho. "A vida é feita de revelações, de epifanias. Eu estou contando as minhas epifanias". Ao se expor assim ao filho, o autor se revela a ele e, com certeza, o auxilia a descobrir a si próprio. Que magnífico presente Roberto deu a Francesco ao escrever esta carta. E a todos os pais, ao publicá-la em forma de livro.
Pouco importa se os autores escolhidos formam um bom cânone para crianças (com certeza ninguém classificaria Eliot como poeta infanto-juvenil) ou se a as inferências de Cotroneo fazem sentido ou não. Vale o exemplo. Se a herança de todo pai ao filho fosse uma carta como a de Cotroneo a Francesco, em uma geração, com certeza, o mundo estaria bastante melhor do que é hoje.


Carlos Eduardo Lins da Silva é jornalista e diretor da Patri Relações Governamentais e Políticas Públicas

Se uma Criança, Numa Manhã de Verão...
    
Autor: Roberto Cotroneo
Editora: Rocco
Quanto: R$ 28 (214 págs.)



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