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Teclas de acesso para entender o carioca
CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial
O carioca é que nem os absorventes íntimos usados pelas
mulheres naqueles dias: apesar
de bem situados, não aproveitam o melhor do dia. A culpa é
histórica: o Rio foi cobiçado por
franceses, depois virou corte
portuguesa e, com o advento da
República, tornou-se pasto e
prêmio para os provincianos
que, servindo ao poder, serviam-se da cidade. O carioca foi
ficando pelos cantos, refugiou-
se nos bairros menos nobres, ao
longo dos trilhos das antigas
Central e Leopoldina.
Geograficamente, o Rio que
vale a pena começa naquela
terra de ninguém situada entre
os leitos das duas linhas férreas
-que caracterizam e determinam o subúrbio- e acaba nas
imediações da praça da Bandeira. Depois dela, sim, vem a
cidade que é chata como qualquer outra cidade do mundo.
Para uso comum, o carioca é
um fraco abusado simpático
que se mete em tudo o que não
é da sua conta. No fundo, gosta
mesmo é de coxinha de galinha
da Colombo, na medida em que
olha com desconfiança para os
pratos de outras terras.
Os baianos têm vatapá; os mineiros, os toucinhos; os gaúchos, o churrasco; cada brasileiro tem sua culinária folclórica.
No Rio não há nada disso. Além
das citadas coxinhas de galinha
da Colombo, que o carioca reserva para os dias solenes (casamentos, batizados, aniversários especiais), o que ele gosta
mesmo é de ovo frito. Sua comida é simples, sem elementos
culturais, coisa rápida e alimentícia. A melhor é aquela
que é paga pelos outros.
O carioca é o cismado, pior do
que o mineiro. Este tem medo
do ridículo e por isso se fecha,
apavorado com a idéia de que
os outros pensem que ele está
querendo comprar o bonde ou
comer o Pão de Açúcar. O carioca tem reação contrária: ele
é capaz de comprar bonde, mas
sem passar recibo. Antes de os
psicanalistas lançarem o conceito, o carioca já era um "assumido" sem o saber. Tirante mulher de boa bunda, ele não se
deslumbra com nada.
Pois o carioca assistiu a tudo,
viu Pinheiro Machado ser assassinado, viu Getúlio suicidar-
se. Nas manhãs de golpe, conviveu com os tanques da Vila Militar que entupiam o tráfego já
entupidíssimo de suas ruas.
É o único brasileiro que não
faz força para vencer no Rio. É
mais fácil o sujeito nascer em
Garanhuns e ir morar na rua
Barata Ribeiro do que o carioca
nascido no Andaraí-Leopoldo
atravessar os túneis e ir morar
em Laranjeiras. Se consegue
melhorar de vida, descola um
pequeno sítio em Jacarepaguá e
ali acaba seus dias num calor
de 40 graus -ele gosta do calor. Cria galinhas -outra vocação do carioca que aprecia o
fato de alguém trabalhar para
ele. Ou simplesmente não faz
nada, como quase nada fez ao
longo da vida, preocupado em
arranjar o mais cedo possível
uma aposentadoria frugal, que
ele reforça com galhos de circunstância nem sempre confessáveis.
O carioca não nasceu para ser
rico, gosta de caminhar pela vida sem chamar atenção, mas
adora tirar vantagem até onde
for possível, desde que não haja
complicação com a polícia.
A zona sul está para o carioca
como o Rio está para o resto do
Brasil: gosta-se e desconfia- se.
No fundo, a zona sul é um
imenso quarto-e-sala tamanho
família, com janela dando para
o mar, onde gente de todos os
lugares se esforça para ser carioca. O habitante da zona sul é
como turista que desembarca
no Havaí com aquele colar colorido e a saia de palha. Todo
mundo olha admirado para ele,
principalmente os havaianos.
Carioca no duro é devoto de
qualquer santo, acredita em todas as religiões, mas sem levar a
sério nenhuma delas. Não dá
despacho em macumba, sobretudo naquela que ele mesmo
brotou.
É folgazão para uso externo,
mas facilmente cai em depressão, transformando-a em pretexto para arranjar qualquer
outra coisa: uma namorada,
um aumento de ordenado, uma
renovação de título bancário.
Ele se vira, modestamente, sem
muito orgulho, mas sem fossa
específica de nada - daí ser
capaz de aproveitar o velório
da mãe para namorar a mulher
do vizinho. Considera- se respeitador das leis gerais da vida
-mas sem fanatismo- afinal,
nunca se sabe de onde vem o
próximo lance do destino que
pode tornar o carioca mais carioca, ou seja, aquele tipo que
aceita a vida sem complicações,
sem grandes ambições de poder
e glória, mas com capacidade
de gozar sua própria dor -
desde que isso lhe dê algum lucro.
Diferença fundamental com o
Brasil que não é sério e procura
sê-lo. E, ao usar o pronome de
forma castiça, lembremos o finado Jânio Quadros. Prometeu
ele que, eleito presidente da República, viria morar no Méier.
Se se pudesse definir lagosta dizendo que ela é o contrário de
um abridor de latas, poderíamos definir o carioca como sendo o contrário do sr. Jânio Quadros.
Mas nem tanto: essa história
de vir morar no Méier é digna
de um carioca que leva a sério a
falta de seriedade. Se Jânio como presidente da República tivesse morado no Méier, tudo teria sido diferente. Menos o carioca, que sempre será o mesmo
enquanto houver um oiti ao
longo do Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel, onde
nasceu o jogo do bicho. E os
sambas de Noel que alegram o
seu coração, o seu olhar e o seu
gesto.
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