São Paulo, sexta, 18 de setembro de 1998

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Teclas de acesso para entender o carioca

CARLOS HEITOR CONY
do Conselho Editorial

O carioca é que nem os absorventes íntimos usados pelas mulheres naqueles dias: apesar de bem situados, não aproveitam o melhor do dia. A culpa é histórica: o Rio foi cobiçado por franceses, depois virou corte portuguesa e, com o advento da República, tornou-se pasto e prêmio para os provincianos que, servindo ao poder, serviam-se da cidade. O carioca foi ficando pelos cantos, refugiou- se nos bairros menos nobres, ao longo dos trilhos das antigas Central e Leopoldina.
Geograficamente, o Rio que vale a pena começa naquela terra de ninguém situada entre os leitos das duas linhas férreas -que caracterizam e determinam o subúrbio- e acaba nas imediações da praça da Bandeira. Depois dela, sim, vem a cidade que é chata como qualquer outra cidade do mundo.
Para uso comum, o carioca é um fraco abusado simpático que se mete em tudo o que não é da sua conta. No fundo, gosta mesmo é de coxinha de galinha da Colombo, na medida em que olha com desconfiança para os pratos de outras terras.
Os baianos têm vatapá; os mineiros, os toucinhos; os gaúchos, o churrasco; cada brasileiro tem sua culinária folclórica. No Rio não há nada disso. Além das citadas coxinhas de galinha da Colombo, que o carioca reserva para os dias solenes (casamentos, batizados, aniversários especiais), o que ele gosta mesmo é de ovo frito. Sua comida é simples, sem elementos culturais, coisa rápida e alimentícia. A melhor é aquela que é paga pelos outros.
O carioca é o cismado, pior do que o mineiro. Este tem medo do ridículo e por isso se fecha, apavorado com a idéia de que os outros pensem que ele está querendo comprar o bonde ou comer o Pão de Açúcar. O carioca tem reação contrária: ele é capaz de comprar bonde, mas sem passar recibo. Antes de os psicanalistas lançarem o conceito, o carioca já era um "assumido" sem o saber. Tirante mulher de boa bunda, ele não se deslumbra com nada.
Pois o carioca assistiu a tudo, viu Pinheiro Machado ser assassinado, viu Getúlio suicidar- se. Nas manhãs de golpe, conviveu com os tanques da Vila Militar que entupiam o tráfego já entupidíssimo de suas ruas.
É o único brasileiro que não faz força para vencer no Rio. É mais fácil o sujeito nascer em Garanhuns e ir morar na rua Barata Ribeiro do que o carioca nascido no Andaraí-Leopoldo atravessar os túneis e ir morar em Laranjeiras. Se consegue melhorar de vida, descola um pequeno sítio em Jacarepaguá e ali acaba seus dias num calor de 40 graus -ele gosta do calor. Cria galinhas -outra vocação do carioca que aprecia o fato de alguém trabalhar para ele. Ou simplesmente não faz nada, como quase nada fez ao longo da vida, preocupado em arranjar o mais cedo possível uma aposentadoria frugal, que ele reforça com galhos de circunstância nem sempre confessáveis.
O carioca não nasceu para ser rico, gosta de caminhar pela vida sem chamar atenção, mas adora tirar vantagem até onde for possível, desde que não haja complicação com a polícia.
A zona sul está para o carioca como o Rio está para o resto do Brasil: gosta-se e desconfia- se. No fundo, a zona sul é um imenso quarto-e-sala tamanho família, com janela dando para o mar, onde gente de todos os lugares se esforça para ser carioca. O habitante da zona sul é como turista que desembarca no Havaí com aquele colar colorido e a saia de palha. Todo mundo olha admirado para ele, principalmente os havaianos.
Carioca no duro é devoto de qualquer santo, acredita em todas as religiões, mas sem levar a sério nenhuma delas. Não dá despacho em macumba, sobretudo naquela que ele mesmo brotou.
É folgazão para uso externo, mas facilmente cai em depressão, transformando-a em pretexto para arranjar qualquer outra coisa: uma namorada, um aumento de ordenado, uma renovação de título bancário. Ele se vira, modestamente, sem muito orgulho, mas sem fossa específica de nada - daí ser capaz de aproveitar o velório da mãe para namorar a mulher do vizinho. Considera- se respeitador das leis gerais da vida -mas sem fanatismo- afinal, nunca se sabe de onde vem o próximo lance do destino que pode tornar o carioca mais carioca, ou seja, aquele tipo que aceita a vida sem complicações, sem grandes ambições de poder e glória, mas com capacidade de gozar sua própria dor - desde que isso lhe dê algum lucro.
Diferença fundamental com o Brasil que não é sério e procura sê-lo. E, ao usar o pronome de forma castiça, lembremos o finado Jânio Quadros. Prometeu ele que, eleito presidente da República, viria morar no Méier. Se se pudesse definir lagosta dizendo que ela é o contrário de um abridor de latas, poderíamos definir o carioca como sendo o contrário do sr. Jânio Quadros.
Mas nem tanto: essa história de vir morar no Méier é digna de um carioca que leva a sério a falta de seriedade. Se Jânio como presidente da República tivesse morado no Méier, tudo teria sido diferente. Menos o carioca, que sempre será o mesmo enquanto houver um oiti ao longo do Boulevard 28 de Setembro, em Vila Isabel, onde nasceu o jogo do bicho. E os sambas de Noel que alegram o seu coração, o seu olhar e o seu gesto.



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