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ARTIGO
Cinismo une mostra "Sensation" e Donald Trump
GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York
Enquanto nascia o bebê de número 6 bilhão na Bósnia e um
golpe militar no Paquistão colocava em dúvida a estabilidade nuclear do planeta, a mostra "Sensation", no Brooklyn Museum,
continuava a bater seu próprio
recorde.
Alvo da curiosidade de dezenas
de milhares de pessoas e de inúmeras controvérsias e acirradas
discussões em torno da moralidade (e outras éticas) na arte, a
exposição mobilizava o precioso
tempo do prefeito Rudolph Giuliani, que atacava o museu e
ameaçava cortar sua verba.
Reminiscências da era Reagan?
Sim. A era Reagan/Bush aplicou a
pena de morte no National Endowment for the Arts quando essa instituição fez uma retrospectiva do fotógrafo Robert Mapplethorpe, considerado simplesmente um "pornógrafo" pelos
governantes, e sua verba foi toda
pras cucuias.
Mas o sucesso absoluto de
"Sensation" é quase sem precedentes. Desde a monstruosa retrospectiva de Picasso, no MoMA, não se via nada igual. O sucesso se deve, em parte, à reação
que o público teve ao prefeito e à
tentativa dele de tentar manipular e abafar a "cidade que grita",
seja por meio de artifícios publicitários como o seu famoso "tolerância zero" (que visava acabar,
de vez, com a criminalidade), ou,
agora, com o seu veto oral detonando o museu que abriga a genial exposição.
Giuliani é uma raposa, e sua
"tolerância zero" foi desmascarada por uma equipe da CNN e da
"Time", que constatou que a polícia simplesmente não registrava
uma porcentagem de seus pedidos diários de socorro.
"Sensation" é uma sensação
porque é uma exposição crua,
cruel, cujo resultado (se é que podemos chamá-lo disso) é a constatação da efemeridade da matéria, seja ela humana, animal ou
mesmo ideológica.
Nesse mundo "aparentemente"
organizado, cabe ao artista a desconstrução, a desorganização, a
anarquia. Giuliani não tolera
anarquias e aplicou seu "tolerância zero" à arte, criando com isso
a horrenda noção de que crime e
arte se parecem, quando levados
a cabo. E ambos merecem ser reprimidos.
Mas, sem dúvida, grande parte
do sucesso da exposição reside na
ranhetice desse prefeito fascista.
Foi o eco da burrice dele que despertou tanta curiosidade na exposição. Giuliani é o tenor da direita, aquele que canta as bobagens em tom mais alto, e seu governo é pura fachada. Mas, em
suas peripécias e desastrosas manobras políticas, Giuliani sempre
teve um grande amigo e aliado:
Donald Trump.
Semana passada, Nova York e a
América tiveram duas grandes
surpresas. Uma delas foi a aprovação de um antigo projeto de
Trump, engavetado há anos por
ser polêmico demais, de construir o prédio mais alto do mundo na esquina da Columbus Avenue com a rua 59. Por mais de
uma década, grupos influentes
protestaram contra a sua construção pois ela criaria uma sombra enorme no Central Park. Tais
grupo eram liderados por figuras
do porte de Jackie Onassis e Walter Cronkite. A vitória de Trump
não deixa dúvidas quanto à maquiavélica parceria de Giuliani
nesse processo.
A segunda surpresa foi o anúncio de Trump, no "Larry King Live", que estaria concorrendo à
presidência dos Estados Unidos
nas próximas eleições.
Ao mesmo tempo arquiteto e
imperador (e na verdade nada
mais que um construtor e ocasional celebridade), Donald Trump
não deixa de ser o símbolo máximo do novo-riquismo americano
dos anos pós-modernos e consumistas. Seu poder aquisitivo, carisma e falta de papas na língua
lhe permitem acesso a tudo e todos e o posto de presidente da nação não está off limits. Sua total
falta de cultura ou ética nunca foi
de deixar um único escrúpulo de
pé.
O que une, estranhamente, a
"Sensation" à candidatura de
Trump é o cinismo. Nossa era de
(falso) glamour e exaustão alcançada em tão poucos anos de globalização resulta nesses dois expoentes que colocam em foco
não mais a questão existencial em
si, mas sua leitura trivial e falsificada, a versão mais colorida dos
fatores que, somados, constroem
nosso ser cívico e espiritual.
Enquanto a exposição celebra a
crueldade de nossa efêmera existência e a hipocrisia na constante
tentativa em conseguir fazer o
pacto com a eternidade, Trump é
a caricatura de Mefisto em si, a
versão de um diabinho decorado
e ilustrado pelos piores pintores
das Belas Artes.
Trump epitomiza a escolha pelo luxo europeu vulgarizado, os
mármores polidos, os vidros fumês e as falsas perspectivas do
"Trump L'oeil".
Seus prédios baratos com apartamentos caríssimos são a cara
do pobre que acabou de ficar rico.
Donald Trump se sente um mini-imperador romano, mastigando o que resta da esquerda em
seu mísero império. Assim como
seu amigo Giuliani, ele testa, na
prática, a transformação da arte
em crime e sua lenta substituição
de valores que levarão o mundo a
virar uma possível versão inverosímil de si mesmo, justamente como aquelas lareiras falsas pintadas na parede com suas respectivas sombrinhas.
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