São Paulo, Segunda-feira, 18 de Outubro de 1999
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ARTIGO
Cinismo une mostra "Sensation" e Donald Trump

GERALD THOMAS
especial para a Folha, em Nova York

Enquanto nascia o bebê de número 6 bilhão na Bósnia e um golpe militar no Paquistão colocava em dúvida a estabilidade nuclear do planeta, a mostra "Sensation", no Brooklyn Museum, continuava a bater seu próprio recorde.
Alvo da curiosidade de dezenas de milhares de pessoas e de inúmeras controvérsias e acirradas discussões em torno da moralidade (e outras éticas) na arte, a exposição mobilizava o precioso tempo do prefeito Rudolph Giuliani, que atacava o museu e ameaçava cortar sua verba.
Reminiscências da era Reagan? Sim. A era Reagan/Bush aplicou a pena de morte no National Endowment for the Arts quando essa instituição fez uma retrospectiva do fotógrafo Robert Mapplethorpe, considerado simplesmente um "pornógrafo" pelos governantes, e sua verba foi toda pras cucuias.
Mas o sucesso absoluto de "Sensation" é quase sem precedentes. Desde a monstruosa retrospectiva de Picasso, no MoMA, não se via nada igual. O sucesso se deve, em parte, à reação que o público teve ao prefeito e à tentativa dele de tentar manipular e abafar a "cidade que grita", seja por meio de artifícios publicitários como o seu famoso "tolerância zero" (que visava acabar, de vez, com a criminalidade), ou, agora, com o seu veto oral detonando o museu que abriga a genial exposição.
Giuliani é uma raposa, e sua "tolerância zero" foi desmascarada por uma equipe da CNN e da "Time", que constatou que a polícia simplesmente não registrava uma porcentagem de seus pedidos diários de socorro.
"Sensation" é uma sensação porque é uma exposição crua, cruel, cujo resultado (se é que podemos chamá-lo disso) é a constatação da efemeridade da matéria, seja ela humana, animal ou mesmo ideológica.
Nesse mundo "aparentemente" organizado, cabe ao artista a desconstrução, a desorganização, a anarquia. Giuliani não tolera anarquias e aplicou seu "tolerância zero" à arte, criando com isso a horrenda noção de que crime e arte se parecem, quando levados a cabo. E ambos merecem ser reprimidos.
Mas, sem dúvida, grande parte do sucesso da exposição reside na ranhetice desse prefeito fascista. Foi o eco da burrice dele que despertou tanta curiosidade na exposição. Giuliani é o tenor da direita, aquele que canta as bobagens em tom mais alto, e seu governo é pura fachada. Mas, em suas peripécias e desastrosas manobras políticas, Giuliani sempre teve um grande amigo e aliado: Donald Trump.
Semana passada, Nova York e a América tiveram duas grandes surpresas. Uma delas foi a aprovação de um antigo projeto de Trump, engavetado há anos por ser polêmico demais, de construir o prédio mais alto do mundo na esquina da Columbus Avenue com a rua 59. Por mais de uma década, grupos influentes protestaram contra a sua construção pois ela criaria uma sombra enorme no Central Park. Tais grupo eram liderados por figuras do porte de Jackie Onassis e Walter Cronkite. A vitória de Trump não deixa dúvidas quanto à maquiavélica parceria de Giuliani nesse processo.
A segunda surpresa foi o anúncio de Trump, no "Larry King Live", que estaria concorrendo à presidência dos Estados Unidos nas próximas eleições.
Ao mesmo tempo arquiteto e imperador (e na verdade nada mais que um construtor e ocasional celebridade), Donald Trump não deixa de ser o símbolo máximo do novo-riquismo americano dos anos pós-modernos e consumistas. Seu poder aquisitivo, carisma e falta de papas na língua lhe permitem acesso a tudo e todos e o posto de presidente da nação não está off limits. Sua total falta de cultura ou ética nunca foi de deixar um único escrúpulo de pé.
O que une, estranhamente, a "Sensation" à candidatura de Trump é o cinismo. Nossa era de (falso) glamour e exaustão alcançada em tão poucos anos de globalização resulta nesses dois expoentes que colocam em foco não mais a questão existencial em si, mas sua leitura trivial e falsificada, a versão mais colorida dos fatores que, somados, constroem nosso ser cívico e espiritual.
Enquanto a exposição celebra a crueldade de nossa efêmera existência e a hipocrisia na constante tentativa em conseguir fazer o pacto com a eternidade, Trump é a caricatura de Mefisto em si, a versão de um diabinho decorado e ilustrado pelos piores pintores das Belas Artes.
Trump epitomiza a escolha pelo luxo europeu vulgarizado, os mármores polidos, os vidros fumês e as falsas perspectivas do "Trump L'oeil".
Seus prédios baratos com apartamentos caríssimos são a cara do pobre que acabou de ficar rico.
Donald Trump se sente um mini-imperador romano, mastigando o que resta da esquerda em seu mísero império. Assim como seu amigo Giuliani, ele testa, na prática, a transformação da arte em crime e sua lenta substituição de valores que levarão o mundo a virar uma possível versão inverosímil de si mesmo, justamente como aquelas lareiras falsas pintadas na parede com suas respectivas sombrinhas.


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