São Paulo, Segunda-feira, 18 de Outubro de 1999
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MOSTRA DE CINEMA "A HUMANIDADE"
Dumont filma homens como se fossem insetos

AMIR LABAKI
da Equipe de Articulistas

A primeira qualidade de "A Humanidade", de Bruno Dumont, é provocar reações exageradas. Os jurados de Cannes 99, presididos por David Cronenberg, o acumularam de diplomas: Grande Prêmio do Júri, melhor ator, melhor atriz. Só o drama realista belga "Rosetta" o superou, levando a Palma de Ouro.
A crítica internacional rachou, ficando a maior parte contra o segundo longa de Dumont, diretor de "A Vida de Jesus", vencedor da Mostra há dois anos. O influente Todd McCarthy, da "Variety", classificou o filme como "a mais lenta investigação criminal já realizada". "Completamente insano", emendou o "Los Angeles Times". "Sórdido até quase a náusea", completou o "El País".
"Cahiers du Cinéma" e "Liberátion" à frente, os franceses celebraram como "radical" o veredicto de Cannes e aplaudiram "a austeridade" de Dumont. Serge Toubiana, editor dos "Cahiers", destacou o filme como "pictórico e metafísico", "uma verdadeira observação do mundo".
É cinema dos bons aquele que produz filmes mobilizadores de opiniões tão opostas e radicais. "A Humanidade" exige uma posição de seu público. Ninguém aguentaria uma dieta exclusiva de filmes como este, mas a apuração do paladar fílmico é indiscutível.
A reação contrária da crítica americana nada surpreende. "A Humanidade" põe de cabeça para baixo um gênero caríssimo à tradição hollywoodiana: o policial. Dumont caça-lhe o suspense e o substitui pela espera. Naturalmente os resenhistas franceses vibram com a inversão.
Duas horas e meia é a duração da busca compassada de um criminoso, numa cidadela do norte da França. Um abobado policial de província (Emmanuel Schotté) encabeça a investigação. Chama-se Pharaon e é um idiota de bom coração, uma espécie de filho sem carisma do inspetor Clouseau.
Pharaon mora com a mãe e não oculta a paixão platônica pela voluptuosa vizinha Domino (Séverine Caneele). A disponibilidade dela nada se reduz mesmo diante da agressividade sexual de seu namorado, tolo e bonitão. Pharaon recua frente a generosa oferta da amada, professando a máxima do crítico Luiz Nazário, o sexo como uma espécie de traição do desejo.
Dumont não tem qualquer pressa na apresentação detalhada do cotidiano de seus personagens. Pharaon ziguezagueia na pesquisa do assassino e estuprador de uma garota. O triângulo amoroso se amplia e se reduz.
Toubiana é preciso ao aproximar o estilo de Dumont do enfoque de um entomólogo (estudioso dos insetos). Tudo é filmado em cinemascope, com os cenários largamente superando os espaços vitais dos personagens. O caráter não profissional dos intérpretes serve à tipologia desdramatizante do cineasta.
"A Humanidade" agarra-se à concretude dos corpos na busca de alguma transcendência. Muito da carga simbólica do filme concentra-se em dois closes genitais. O primeiro, logo no início, mostra a vulva esgarçada de um jovem cadáver. A segunda, perto do fim, exibe a insaciável xoxota de Domino. "Um filme sobre sexo e morte", prometeu Dumont. Ei-lo.


Avaliação:     

Filme: A Humanidade (L" Humanité) Direção: Bruno Dumont Produção: França, 1999, 148 min Onde: hoje, às 19h45, no MIS Outras exibições na mostra: 20, 21 e 28 de outubro


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