|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
Costa-Gavras enfrenta a mídia. Nós também
ALBERTO DINES
Colunista da Folha
O seu nome está associado ao
cinema político, à luta contra
opressão, injustiça, preconceito. Os estetas puros torcem o
nariz ao seu engajamento, os
"psicologistas" o acusam de
simplificação.
O grego-francês Constantin
Costa Gavras, 64, com mais de
20 filmes na bagagem, é também recordista de ordens de
censura e polêmicas (entre
eles, "Z", "A Confissão",
"Estado de Sítio", "O Desaparecido", "Seção Especial",
"Hanna K." "Music Box",
"Betrayed").
Herdeiro de André Cayatte
(1909-1989), o jornalista e advogado que fez do cinema uma
tribuna contra as injustiças da
justiça, Costa-Gavras denunciou a ditadura militar grega,
o stalinismo, a ação da CIA, o
colaboracionismo de Vichy, o
drama palestino, o golpe contra Allende.
Onde há uma causa justa e
uma dor coletiva provocada
pelo abuso do poder, lá está
Costa-Gavras (às vezes acompanhado por Jorge Semprun,
outro cruzado contra as tiranias) com uma câmera despojada, sem truques, efeitos especiais ou jorros de ketchup fingindo de sangue. Sua missão é
comover e convocar.
Cineasta-repórter, acaba de
entrar na redação-estúdio de
uma TV americana para denunciar os abusos da mídia em
"Mad City" (estréia em novembro nos EUA). Não se trata
de produção alternativa, tipo
"off-Hollywood". Tem no
elenco duas estrelas de primeira grandeza, Dustin Hoffman,
John Travolta e selo da Time-Warner. O que não evitou
algumas crises no maior oligopólio de mídia do mundo.
"The New York Times" da
última segunda-feira (13/10)
lhe dedicou a capa do seu exigente caderno de artes. O roteirista, Tom Matthews, foi jornalista, e o produtor Arnold
Kopelson sabe o que diz quando diz: "A mídia agora é notícia, ultrapassou os limites. O
repórter Dustin Hoffman não é
um vilão, ele quer apenas empurrar ligeiramente estes limites."
Antes mesmo que a imprensa
inventasse os antídotos aos
seus excessos (como o ombudsman), o cinema, com pouco
mais de uma década de existência, já se assumia como a
principal plataforma de crítica
da mídia quando apresentou
"The Power of the Press" ("O
Poder da Imprensa", 1909,
Van Dyke Brook). Catálogo organizado pela Cinemateca
Portuguesa e publicado pelo
semanário "Expresso", em
1993, lista mais de 600 de obras
sobre o tema sem contar a enxurrada de westerns B em que
o jornalista -ao lado do xerife, o dono do "saloon", e a
cantora- protagoniza o polígono dramático, ora como corrupto, ora como herói.
A fase de ouro do jornalismo
no cinema começa no início
dos anos 30, quando a Grande
Depressão, a corrupção e o
gangsterismo oferecem o pano
de fundo para apresentar o repórter como a última profissão
romântica. Encarnado por James Cagney, Edward G. Robinson, Henry Fonda ou Barbara
Stanwick e tropeçando, às vezes, no cinismo, ambição e falta de escrúpulos, foi símbolo
do "american way of life" e,
por isso, sempre triunfante.
Até que Orson Welles mudou
as lentes com "Cidadão Kane" (1941), em que o protagonista é um vilão. E um poderoso dono de jornal.
Assisti como crítico de cinema (do semanário "Cena Muda") "A Montanha dos Sete
Abutres" ("Big Carnival",
1951, Billy Wilder) no breve interregno em que Hollywood
permitiu-se assumir o seu lado
"noir". Revoltei-me não com
os esgares de Kirk Douglas,
mas com o retrato brutal do
sensacionalismo. Meses depois
trocava o cinema pelo jornalismo. Coisas da vida.
Falando ao "Times" nova-iorquino, Costa-Gavras
disse: "Reclamamos que a mídia é isso, a mídia é aquilo.
Quem é a mídia? A mídia é feita por gente. Alguns fazem um
bom trabalho, alguns não, outros aprontam coisas horríveis."
A mídia andou frequentando
as manchetes dos jornais de todo o mundo, a partir da morte
trágica de Diana Spencer.
Aqui, nessas plagas, ela voltou
à primeira página de alguns
jornalões, no início de outubro, quando se publicou um
inusitado manifesto sob a forma de anúncio, assinado pelas
três entidades que reúnem os
empresários de jornais, revistas, rádios e televisões, condenando a Lei de Imprensa, que
tramita na Câmara dos Deputados.
Desse manifesto foi excluída
a Federação dos Jornalistas,
que se opõe à violência de alguns dos dispositivos do novo
texto, mas o aceita, em princípio. A exclusão ocorreu porque, na redação proposta pelos
jornalistas, havia um parágrafo em que reconheciam eventuais abusos cometidos pela
mídia. Que o patronato não
podia admitir. Em troca, o
anúncio ostentou o apoio da
ABI que, na realidade, resultou de um mal-entendido (corrigido nesta semana, quando a
instituição emitiu uma nota
oficial, junto com a federação
profissional, prometendo continuar a luta para alterar o
projeto e não o revogar como
pretendia o documento das
empresas).
O leitor interessado poderá
encontrar todos os detalhes do
episódio na próxima edição do
"Observatório da Imprensa"
(http://www2.uol.com.br/observatorio). Mas aqui fica um
breve registro, porque a imprensa concerne a todos os leitores e à cidadania como um
todo. E não apenas àquele punhado de consumidores auscultados pelo telefone para dizer se gostaram ou não da primeira página do dia.
O manifesto-anúncio é emblemático não só pela entonação, arrogante e autoritária. A
eliminação dos profissionais
caracteriza uma tomada de
posição absolutista e presunçosa, análoga à do Rei Sol quando proclamou "O Estado Sou
Eu". A Imprensa não é só a
Empresa, mas também, e muito, o operador do jornalismo,
jogado na rua para cobrir a vida e o mundo, correndo riscos
e desgastes. Principalmente
carregando a carga de frustração daquela "missão inacabável", referida por Kant.
Por cesarismo, os grandes estrategistas da mídia cometeram um erro estratégico capital. Ungiram-se como os únicos responsáveis pelo atual sistema da mídia que, como sabemos, vive hoje um de seus piores momentos. Anteciparam-se
em alguns dias, a Rupert Murdoch que, na mais cínica declaração de um barão jornalístico de todos os tempos,
declarou que no caso da princesa morta (pela qual tinha
muito respeito), só lamentava
o preço alto que foi obrigado a
pagar aos paparazzi.
Os deuses escrevem certo por
linhas tortas. Ao recusar qualquer tipo de instrumento para
prover o indispensável jogo de
"checks and balances" do regime democrático, os caríssimos empresários agora deverão engolir algo muito pior,
porque inepto e de má-fé: o
projeto de lei que regula o Direito de Resposta, aprovado
"simbolicamente" pelo plenário do Senado na última
quarta.
Seu autor é o Filho da Mídia,
senador Roberto Requião, que
no último verão saiu do anonimato para o picadeiro do circo
da notícia, engabelando grande parte da reportagem política de Brasília, sem que ninguém se lembrasse de apresentar aos leitores sua ficha pregressa.
Quem pariu Mateus que o
embale, como se diz em Portugal: empresários e jornalistas,
finalmente juntos, terão agora
algo com o que se ocupar -o
pernicioso subproduto de ânsia de produzir sensações, sem
averiguar. Enquanto isso,
aguardemos "Mad City", em
que Dustin Hoffman, novamente repórter, mas já não
derrubador de presidentes, explora em seu proveito o sequestro dentro de um museu por
um guarda desempregado
(Travolta).
Costa-Gavras sabe, como
poucos, fazer do escurinho do
cinema o lugar para acionar
inquietações. Isso, antes, era o
papel do jornal.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|