São Paulo, sábado, 18 de outubro de 1997.




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Costa-Gavras enfrenta a mídia. Nós também

ALBERTO DINES
Colunista da Folha O seu nome está associado ao cinema político, à luta contra opressão, injustiça, preconceito. Os estetas puros torcem o nariz ao seu engajamento, os "psicologistas" o acusam de simplificação.
O grego-francês Constantin Costa Gavras, 64, com mais de 20 filmes na bagagem, é também recordista de ordens de censura e polêmicas (entre eles, "Z", "A Confissão", "Estado de Sítio", "O Desaparecido", "Seção Especial", "Hanna K." "Music Box", "Betrayed").
Herdeiro de André Cayatte (1909-1989), o jornalista e advogado que fez do cinema uma tribuna contra as injustiças da justiça, Costa-Gavras denunciou a ditadura militar grega, o stalinismo, a ação da CIA, o colaboracionismo de Vichy, o drama palestino, o golpe contra Allende.
Onde há uma causa justa e uma dor coletiva provocada pelo abuso do poder, lá está Costa-Gavras (às vezes acompanhado por Jorge Semprun, outro cruzado contra as tiranias) com uma câmera despojada, sem truques, efeitos especiais ou jorros de ketchup fingindo de sangue. Sua missão é comover e convocar.
Cineasta-repórter, acaba de entrar na redação-estúdio de uma TV americana para denunciar os abusos da mídia em "Mad City" (estréia em novembro nos EUA). Não se trata de produção alternativa, tipo "off-Hollywood". Tem no elenco duas estrelas de primeira grandeza, Dustin Hoffman, John Travolta e selo da Time-Warner. O que não evitou algumas crises no maior oligopólio de mídia do mundo.
"The New York Times" da última segunda-feira (13/10) lhe dedicou a capa do seu exigente caderno de artes. O roteirista, Tom Matthews, foi jornalista, e o produtor Arnold Kopelson sabe o que diz quando diz: "A mídia agora é notícia, ultrapassou os limites. O repórter Dustin Hoffman não é um vilão, ele quer apenas empurrar ligeiramente estes limites."
Antes mesmo que a imprensa inventasse os antídotos aos seus excessos (como o ombudsman), o cinema, com pouco mais de uma década de existência, já se assumia como a principal plataforma de crítica da mídia quando apresentou "The Power of the Press" ("O Poder da Imprensa", 1909, Van Dyke Brook). Catálogo organizado pela Cinemateca Portuguesa e publicado pelo semanário "Expresso", em 1993, lista mais de 600 de obras sobre o tema sem contar a enxurrada de westerns B em que o jornalista -ao lado do xerife, o dono do "saloon", e a cantora- protagoniza o polígono dramático, ora como corrupto, ora como herói.
A fase de ouro do jornalismo no cinema começa no início dos anos 30, quando a Grande Depressão, a corrupção e o gangsterismo oferecem o pano de fundo para apresentar o repórter como a última profissão romântica. Encarnado por James Cagney, Edward G. Robinson, Henry Fonda ou Barbara Stanwick e tropeçando, às vezes, no cinismo, ambição e falta de escrúpulos, foi símbolo do "american way of life" e, por isso, sempre triunfante. Até que Orson Welles mudou as lentes com "Cidadão Kane" (1941), em que o protagonista é um vilão. E um poderoso dono de jornal.
Assisti como crítico de cinema (do semanário "Cena Muda") "A Montanha dos Sete Abutres" ("Big Carnival", 1951, Billy Wilder) no breve interregno em que Hollywood permitiu-se assumir o seu lado "noir". Revoltei-me não com os esgares de Kirk Douglas, mas com o retrato brutal do sensacionalismo. Meses depois trocava o cinema pelo jornalismo. Coisas da vida.
Falando ao "Times" nova-iorquino, Costa-Gavras disse: "Reclamamos que a mídia é isso, a mídia é aquilo. Quem é a mídia? A mídia é feita por gente. Alguns fazem um bom trabalho, alguns não, outros aprontam coisas horríveis."
A mídia andou frequentando as manchetes dos jornais de todo o mundo, a partir da morte trágica de Diana Spencer. Aqui, nessas plagas, ela voltou à primeira página de alguns jornalões, no início de outubro, quando se publicou um inusitado manifesto sob a forma de anúncio, assinado pelas três entidades que reúnem os empresários de jornais, revistas, rádios e televisões, condenando a Lei de Imprensa, que tramita na Câmara dos Deputados.
Desse manifesto foi excluída a Federação dos Jornalistas, que se opõe à violência de alguns dos dispositivos do novo texto, mas o aceita, em princípio. A exclusão ocorreu porque, na redação proposta pelos jornalistas, havia um parágrafo em que reconheciam eventuais abusos cometidos pela mídia. Que o patronato não podia admitir. Em troca, o anúncio ostentou o apoio da ABI que, na realidade, resultou de um mal-entendido (corrigido nesta semana, quando a instituição emitiu uma nota oficial, junto com a federação profissional, prometendo continuar a luta para alterar o projeto e não o revogar como pretendia o documento das empresas).
O leitor interessado poderá encontrar todos os detalhes do episódio na próxima edição do "Observatório da Imprensa" (http://www2.uol.com.br/observatorio). Mas aqui fica um breve registro, porque a imprensa concerne a todos os leitores e à cidadania como um todo. E não apenas àquele punhado de consumidores auscultados pelo telefone para dizer se gostaram ou não da primeira página do dia.
O manifesto-anúncio é emblemático não só pela entonação, arrogante e autoritária. A eliminação dos profissionais caracteriza uma tomada de posição absolutista e presunçosa, análoga à do Rei Sol quando proclamou "O Estado Sou Eu". A Imprensa não é só a Empresa, mas também, e muito, o operador do jornalismo, jogado na rua para cobrir a vida e o mundo, correndo riscos e desgastes. Principalmente carregando a carga de frustração daquela "missão inacabável", referida por Kant.
Por cesarismo, os grandes estrategistas da mídia cometeram um erro estratégico capital. Ungiram-se como os únicos responsáveis pelo atual sistema da mídia que, como sabemos, vive hoje um de seus piores momentos. Anteciparam-se em alguns dias, a Rupert Murdoch que, na mais cínica declaração de um barão jornalístico de todos os tempos, declarou que no caso da princesa morta (pela qual tinha muito respeito), só lamentava o preço alto que foi obrigado a pagar aos paparazzi.
Os deuses escrevem certo por linhas tortas. Ao recusar qualquer tipo de instrumento para prover o indispensável jogo de "checks and balances" do regime democrático, os caríssimos empresários agora deverão engolir algo muito pior, porque inepto e de má-fé: o projeto de lei que regula o Direito de Resposta, aprovado "simbolicamente" pelo plenário do Senado na última quarta.
Seu autor é o Filho da Mídia, senador Roberto Requião, que no último verão saiu do anonimato para o picadeiro do circo da notícia, engabelando grande parte da reportagem política de Brasília, sem que ninguém se lembrasse de apresentar aos leitores sua ficha pregressa.
Quem pariu Mateus que o embale, como se diz em Portugal: empresários e jornalistas, finalmente juntos, terão agora algo com o que se ocupar -o pernicioso subproduto de ânsia de produzir sensações, sem averiguar. Enquanto isso, aguardemos "Mad City", em que Dustin Hoffman, novamente repórter, mas já não derrubador de presidentes, explora em seu proveito o sequestro dentro de um museu por um guarda desempregado (Travolta).
Costa-Gavras sabe, como poucos, fazer do escurinho do cinema o lugar para acionar inquietações. Isso, antes, era o papel do jornal.



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