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O supérfluo prospera durante a crise econômica
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
²
Crise, colapso financeiro global, falências, recessão: no Brasil e em outras partes do mundo, os negócios -como se sabe- não vão bem. Mas há exceções. Leio numa revista americana que o sr. Timothy Haw-
ley, do Kentucky, prospera
num inusitado ramo de atividades. Ele encaderna defuntos.
Sim, você também pode encomendar esta novidade, o "bibliocadáver": um volume com
encadernação de luxo, cujas
páginas são feitas a partir de
uma pasta especial. Nela estarão misturadas as cinzas de um
ente querido. Em vez de uma
visita ao cemitério, basta uma
rápida consulta à biblioteca.
Uma única prateleira é capaz
de abrigar a mais extensa parentela.
Não é tudo, diz a reportagem
da "The Atlantic" de setembro
passado. Há, por exemplo, uma
empresa que mantém, e renova
periodicamente, o site de seu
parente na Internet. Para
quem se espantava com os luxuosos cemitérios de animais
domésticos, que existem nos
Estados Unidos já há muito
tempo, é tempo de reconhecer
os progressos feitos ultimamente nessa área.
Não existe limite para as necessidades humanas, diz um
velho preceito da teoria econômica. Recebi outro dia um catálogo com sugestões de presentes natalinos. Há coisas curiosas. Um secador de unhas
movido a pilha -por que perder tempo esperando o esmalte
secar sozinho? Um porta-xampu em três compartimentos:
você aperta o botão e o xampu
sai na dose certa. Não precisa
furar o ladrilho para fixá-lo na
parede. Mais poético é o simulador de ruídos: imita sons de
mar, de cachoeira ou as batidas do coração. Possui saída
para fone de ouvido.
Nós, brasileiros, somos ainda
aprendizes nessa área. Os americanos são imbatíveis no desperdício e na inventividade para o consumo. Não é difícil encontrar nas melhores bancas
dos Jardins uma revista chamada "Robb Report". É dirigida aos muito, muito ricos. Alguns anúncios são interessantes.
Há, por exemplo, várias marcas de um aparelho cuja existência jamais desconfiei. É um
estojo para manter os seus relógios de pulso automáticos funcionando. Você não pode, claro, usar todos de uma vez. Sem
uso, eles param. O estojo impõe-lhes um movimento minúsculo, preciso e regular, de
modo a que, como seu corpo,
eles nunca fiquem parados.
"Conhecemos o seu problema", diz outro anúncio. Você
está pronta para sair e lembra
que deixou as jóias no banco.
Ou então você tirou as jóias do
banco, foi à festa... e agora, onde guardá-las? Ah, você tem
um cofre em casa? Mas tem de
ficar escarafunchando horas lá
dentro até achar sua jóia preferida? Nós temos a solução! É
um cofre eletrônico, com o interior folheado a ouro, que acende automaticamente quando
você abre e tem gavetas individuais, projetadas de acordo
com suas necessidades específicas para guardar cada jóia.
Falando em jóias, uma boa
idéia é o anel com outro anel
embutido -dentro do qual se
pode gravar uma mensagem
íntima. Presente mais romântico é o CD com uma música especialmente composta para a
pessoa a quem você quer agradar. Propostas de casamento,
aniversários, comemorações
em geral? Cito em inglês: "Your
deepest feelings expressed into
lyrics and professionally composed and produced into an
original song of any style of
music".
A revista ainda oferece aparelhos de controle remoto para
cortinas e persianas, além de
sistemas de som computadorizados. Funcionam assim: cada
ambiente da casa tem acesso a
uma central de 300 CDs, de modo que o hóspede pode escolher
o tipo de música que quiser. Na
sala de jogos toca uma coisa,
no fitness center particular, outra. Aliás, nesta última dependência há um dispositivo interessante. Trata-se de uma piscina que produz correntes adversas para aumentar o esforço
do nadador.
Claro que nem tudo é tranquilidade nesse mundo milionário. Armas, detectores de
grampos telefônicos, serviços
de contra-espionagem, câmeras em miniatura, blindagem
de carros e janelas são anunciados em profusão. Assim como consultores financeiros,
fundos de investimentos, carteiras de ações.
Não prossigo nesta exposição,
que vai assumindo um tom
moralista e acusatório. Artigos
de luxo sempre existiram, e a
vida cotidiana de um cidadão
de classe média já é, por si só,
um mostruário de comodidades impensáveis para o grosso
da população mundial.
Mas esses exemplos de luxo
não deixam de ser interessantes na atual conjuntura. Estamos todos preocupados, naturalmente, em atrair o investidor estrangeiro. Em tranquilizar o mercado. Em manter a
confiança dos acionistas internacionais. Essas palavras -o
mercado, o investidor, os acionistas- são sempre um tanto
vagas. Revistas como a "Robb
Report" nos ajudam a conhecê-
las mais de perto. Bom, deve
haver também mafiosos e traficantes consumindo as coisas
anunciadas ali. Não estou pensando nesses casos extremos.
O problema, aliás, não é tanto dos exemplos evidentes de
concentração de renda, dos escândalos de gastos suntuários
que vemos nessas páginas.
Mais importante do que o
consumismo individual, que
também no Brasil se manifesta
com vigor, é um consumismo
nacional: os países desenvolvidos, em especial os Estados
Unidos, parecem chegar a um
estágio onde o lucro, o excedente, não mais consegue se
traduzir no velho e bom luxo
material.
Surge uma espécie de luxo
"ideológico", mental, abstrato,
que se baseia na mais louca invencionice para o supérfluo.
Pessoas que gastam dinheiro
batizando estrelas e asteróides
-é verdade, há empresas que
fazem a corretagem disso junto
à Nasa-; pessoas que encadernam seus mortos; que constróem túmulos para seus peixinhos de aquário... O que são
braceletes e limusines perto
desse delírio?
Há um ponto em que a desigualdade de renda entre países
e pessoas não é meramente
acintosa -sempre foi-, mas
parece quase patológica.
Quando penso que, para manter esse quadro internacional,
temos de jogar os juros na estratosfera, criar milhões de desempregados e falidos, cortar
programas de vacinação, tenho
sinceramente de fazer muita
força para não ser demagógico.
Claro que precisamos do capital externo. Claro que FHC
não pode alterar o sistema financeiro internacional. O jogo
é esse. Nele, fazemos ou não o
papel de otários -eis um outro
problema. Mas sou incapaz de
acreditar que esse jogo não tenha nada de errado.
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