São Paulo, quarta, 18 de novembro de 1998

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O supérfluo prospera durante a crise econômica

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

² Crise, colapso financeiro global, falências, recessão: no Brasil e em outras partes do mundo, os negócios -como se sabe- não vão bem. Mas há exceções. Leio numa revista americana que o sr. Timothy Haw- ley, do Kentucky, prospera num inusitado ramo de atividades. Ele encaderna defuntos.
Sim, você também pode encomendar esta novidade, o "bibliocadáver": um volume com encadernação de luxo, cujas páginas são feitas a partir de uma pasta especial. Nela estarão misturadas as cinzas de um ente querido. Em vez de uma visita ao cemitério, basta uma rápida consulta à biblioteca. Uma única prateleira é capaz de abrigar a mais extensa parentela.
Não é tudo, diz a reportagem da "The Atlantic" de setembro passado. Há, por exemplo, uma empresa que mantém, e renova periodicamente, o site de seu parente na Internet. Para quem se espantava com os luxuosos cemitérios de animais domésticos, que existem nos Estados Unidos já há muito tempo, é tempo de reconhecer os progressos feitos ultimamente nessa área.
Não existe limite para as necessidades humanas, diz um velho preceito da teoria econômica. Recebi outro dia um catálogo com sugestões de presentes natalinos. Há coisas curiosas. Um secador de unhas movido a pilha -por que perder tempo esperando o esmalte secar sozinho? Um porta-xampu em três compartimentos: você aperta o botão e o xampu sai na dose certa. Não precisa furar o ladrilho para fixá-lo na parede. Mais poético é o simulador de ruídos: imita sons de mar, de cachoeira ou as batidas do coração. Possui saída para fone de ouvido.
Nós, brasileiros, somos ainda aprendizes nessa área. Os americanos são imbatíveis no desperdício e na inventividade para o consumo. Não é difícil encontrar nas melhores bancas dos Jardins uma revista chamada "Robb Report". É dirigida aos muito, muito ricos. Alguns anúncios são interessantes.
Há, por exemplo, várias marcas de um aparelho cuja existência jamais desconfiei. É um estojo para manter os seus relógios de pulso automáticos funcionando. Você não pode, claro, usar todos de uma vez. Sem uso, eles param. O estojo impõe-lhes um movimento minúsculo, preciso e regular, de modo a que, como seu corpo, eles nunca fiquem parados.
"Conhecemos o seu problema", diz outro anúncio. Você está pronta para sair e lembra que deixou as jóias no banco. Ou então você tirou as jóias do banco, foi à festa... e agora, onde guardá-las? Ah, você tem um cofre em casa? Mas tem de ficar escarafunchando horas lá dentro até achar sua jóia preferida? Nós temos a solução! É um cofre eletrônico, com o interior folheado a ouro, que acende automaticamente quando você abre e tem gavetas individuais, projetadas de acordo com suas necessidades específicas para guardar cada jóia.
Falando em jóias, uma boa idéia é o anel com outro anel embutido -dentro do qual se pode gravar uma mensagem íntima. Presente mais romântico é o CD com uma música especialmente composta para a pessoa a quem você quer agradar. Propostas de casamento, aniversários, comemorações em geral? Cito em inglês: "Your deepest feelings expressed into lyrics and professionally composed and produced into an original song of any style of music".
A revista ainda oferece aparelhos de controle remoto para cortinas e persianas, além de sistemas de som computadorizados. Funcionam assim: cada ambiente da casa tem acesso a uma central de 300 CDs, de modo que o hóspede pode escolher o tipo de música que quiser. Na sala de jogos toca uma coisa, no fitness center particular, outra. Aliás, nesta última dependência há um dispositivo interessante. Trata-se de uma piscina que produz correntes adversas para aumentar o esforço do nadador.
Claro que nem tudo é tranquilidade nesse mundo milionário. Armas, detectores de grampos telefônicos, serviços de contra-espionagem, câmeras em miniatura, blindagem de carros e janelas são anunciados em profusão. Assim como consultores financeiros, fundos de investimentos, carteiras de ações.
Não prossigo nesta exposição, que vai assumindo um tom moralista e acusatório. Artigos de luxo sempre existiram, e a vida cotidiana de um cidadão de classe média já é, por si só, um mostruário de comodidades impensáveis para o grosso da população mundial.
Mas esses exemplos de luxo não deixam de ser interessantes na atual conjuntura. Estamos todos preocupados, naturalmente, em atrair o investidor estrangeiro. Em tranquilizar o mercado. Em manter a confiança dos acionistas internacionais. Essas palavras -o mercado, o investidor, os acionistas- são sempre um tanto vagas. Revistas como a "Robb Report" nos ajudam a conhecê- las mais de perto. Bom, deve haver também mafiosos e traficantes consumindo as coisas anunciadas ali. Não estou pensando nesses casos extremos.
O problema, aliás, não é tanto dos exemplos evidentes de concentração de renda, dos escândalos de gastos suntuários que vemos nessas páginas.
Mais importante do que o consumismo individual, que também no Brasil se manifesta com vigor, é um consumismo nacional: os países desenvolvidos, em especial os Estados Unidos, parecem chegar a um estágio onde o lucro, o excedente, não mais consegue se traduzir no velho e bom luxo material.
Surge uma espécie de luxo "ideológico", mental, abstrato, que se baseia na mais louca invencionice para o supérfluo. Pessoas que gastam dinheiro batizando estrelas e asteróides -é verdade, há empresas que fazem a corretagem disso junto à Nasa-; pessoas que encadernam seus mortos; que constróem túmulos para seus peixinhos de aquário... O que são braceletes e limusines perto desse delírio?
Há um ponto em que a desigualdade de renda entre países e pessoas não é meramente acintosa -sempre foi-, mas parece quase patológica. Quando penso que, para manter esse quadro internacional, temos de jogar os juros na estratosfera, criar milhões de desempregados e falidos, cortar programas de vacinação, tenho sinceramente de fazer muita força para não ser demagógico.
Claro que precisamos do capital externo. Claro que FHC não pode alterar o sistema financeiro internacional. O jogo é esse. Nele, fazemos ou não o papel de otários -eis um outro problema. Mas sou incapaz de acreditar que esse jogo não tenha nada de errado.



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