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LIVRO LANÇAMENTOS
Em busca da espiritualidade perdida
MARCELO COELHO
do Conselho Editorial
"Padres de um
culto estrangeiro,
vindo da Síria e da
Palestina, cuidaram
de me educar. Esses
padres eram sábios
e santos. Ensinaram-me as longas
histórias de Cronos, que criou o
mundo, e de seu filho, que fez (...)
uma viagem pela terra."
É assim que Ernest Renan
(1823-1892), ex-seminarista, inicia sua "oração diante da Acrópole", onde celebra o milagre da Razão e as luzes da Grécia, em contraponto à fantasia gótica do catolicismo, pela qual manifesta ternura e desencanto.
Carlos Heitor Cony não sofre
das melancolias de Renan; é carioca, não nasceu "nas margens
de um mar sombrio, eriçado de
rochedos, sempre batido pelas
tempestades, onde o sol mal se
conhece, e as flores são os musgos
marinhos, as algas e conchas coloridas que se encontram no fundo das baías solitárias", como declama o escritor bretão.
A melancolia romântica está,
em geral, ausente das páginas de
Cony; quando aparece, é mais na
forma do mau humor. De certo
modo, é como se a melancolia, o
tédio, a tristeza mesmo, que o
acometem de vez em quando, tivessem de ser exorcizadas. Os teólogos falam de um "demônio do
meio-dia", que impõe, sob o sol a
pino, em suas vítimas a sensação
de que nada faz sentido.
Esta sensação está presente nas
crônicas de Carlos Heitor Cony; é
raro, entretanto, que Cony se deixe impregnar por ela. Ou surge a
reação brusca, mal-humorada,
como se o autor estivesse com raiva do sentimento que tem, ou, então, o absurdo, o sem-sentido, se
transfigura em celebração.
É nisto que este autor brasileiríssimo tem muito, a meu ver, de
Renan: não apenas pela biografia
(foi seminarista, largou a batina,
"Informação ao Crucificado" nos
conta como), mas principalmente
pelo que poderíamos chamar de
senso do milagre; milagre ateu,
milagre material, milagre feito de
arbítrio e carne, mas milagre; milagre de uma literatura, sobretudo, que na coleção de crônicas intitulada, com certa derrisão, "O
Harém das Bananeiras", manifesta-se em toda página.
Pode parecer cupinchagem; paciência. Mas este "O Harém das
Bananeiras" é uma maravilha.
Nos encontros que tive com
Cony, sempre me surpreendeu o
arbítrio, o tom quase louco de seu
senso de humor. Contou-me, por
exemplo, das sessões de cinema
que havia no seminário. Em geral,
passavam filmes de Charles Chaplin. Mas uma vez, por engano,
foi apresentado "O Gabinete do
Dr. Calligari", obra de horror, em
que o padre responsável pela projeção confundiu os diversos rolos
da fita, tornando ainda mais confusa uma história que já era das
mais confusas.
Cony diz que o filme teve diversos diretores -começa a rir-,
sucessivamente encarregados de
tornar inteligível a história do filme. Por fim, "O Gabinete do Dr.
Calligari" foi assinado por Robert
Wiene. E nesse momento Cony
está rindo às gargalhadas: pois
Robert Wiene é o único cineasta,
diz, que tem seu nome nos créditos precedido de um "doutor".
Doutor Robert Wiene, repete
Cony, rindo sem parar.
O interlocutor, perplexo, não
entenderá nada de Cony se não
perceber que para ele o absurdo
do mundo se resolve de forma cômica; o acaso, que tantos de nós
queremos dissolver em certezas
científicas ou dogmáticas, é para
ele uma fonte de vida. Não há crônica de Cony que não manifeste o
absurdo das coisas; absurdo que
ele reproduz em finais súbitos, em
associações arbitrárias, em gestos
de mestre, como quem tirasse das
costas o peso de viver.
Leia-se por exemplo a crônica
em que, de repente, o falecido
Moisés Weitman, criador da revista "Amiga", reaparece num bar
em Paris, que Cony frequenta
sem nenhuma razão, pois ali o café é péssimo e ele está hospedado
num hotel nada perto; surge uma
consideração sobre César Bórgia,
sobre a "polidez quase ofensiva
dos franceses", a história termina
com um palavrão, e tudo, nessa
crônica, transmite-nos a idéia de
que a vida só vale a pena pelo fato
de ser tão absurda.
Um diálogo marcante do romance "Informação ao Crucificado", mostra o narrador, seminarista em crise, respondendo às interrogações do arcebispo. "Afinal,
por que você quis ser padre?
-Quis, respondi sem resposta
(...) Achei bonito ser padre. Bonito e difícil." O sem-sentido de
uma decisão, que neste livro aparece como problema mais vocacional do que de fé, é como que
comemorado nas crônicas, na vida do autor, onde tudo, como o
filme de terror, vem com os rolos
trocados, numa maluquice risível
e muda.
A geração anterior à de Cony,
nascido em 1926, foi marcada pelo ceticismo de Anatole France,
pela apostasia de Renan; por um
modelo de elegância estilística, de
leveza boêmia que se pavoneava
nas confeitarias cariocas.
Diante desse ceticismo fácil,
Cony sofreu como ninguém a ausência da fé religiosa. Se a geração
anterior à sua foi perturbada pela
gentileza dissolvente de Anatole
France, ei-lo, por volta dos vinte
anos, enfrentando a amargura de
Sartre e de Camus. Nestes autores, o absurdo ganha dimensões
teológicas; confirma-se um ateísmo radical, que nada tem de leve
ou sorridente.
É como se Cony tentasse, em
suas crônicas, anular a experiência existencial desse absurdo,
exorcizá-lo pela alegria de viver,
encontrando a dimensão cômica
da tragédia, ou do escuro pessimismo, em que ele vive.
Essa comicidade não tem nada
de frívolo. Ao contrário, reconcilia o autor com a espiritualidade
que ele perdeu. Trata-se de registrar, a cada dia, no absurdo, na
coincidência, no arbítrio, no acaso, a ocorrência de um milagre.
Há milagres em todas as páginas
de Cony.
Livro: O Harém das Bananeiras
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Objetiva
Quanto: R$ 20,80 (270 págs.)
Avaliação:
Livro: Informação ao Crucificado
Autor: Carlos Heitor Cony
Editora: Cia. das Letras
Quanto: R$ 17,50 (108 págs.)
Avaliação:
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