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MÚSICA ERUDITA
As formas diferentes de olhar para Bach
ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas
Idéia para um conto à Henry James: um jovem pianista brasileiro
atinge a fama tocando "O Cravo
Bem Temperado" em concertos
nos EUA. Sofre um acidente num
jogo de futebol, que o deixa afastado do instrumento. Retorna aos
palcos depois de anos de esforço e
se põe a reconstruir a carreira.
A música de Bach permanece
um destino e um desafio. Assaltado na Bulgária, leva uma pancada
que o deixa novamente longe do
piano. E mais uma vez, com dedicação única, ensina o cérebro a
comandar os dedos, a ponto de
completar a gravação integral das
obras para teclado de Bach.
A gravação fica pronta. O pianista, chegando aos 60 anos, não
tem dúvida do próprio talento;
mas a crítica se divide. As extravagâncias do intérprete podem ser
uma expressão de genialidade,
mas talvez não passem de uma
coleção de equívocos. O final da
história só pode deixar o juízo em
aberto. Escrita por James, essa seria uma alegoria da vocação do
artista, correndo sempre riscos na
avaliação de si mesmo, e uma fábula a ser lembrada por todo ouvinte e crítico, correndo sempre
riscos na avaliação dos outros.
Em linhas gerais, a história resume a carreira de João Carlos
Martins, que chega a um ponto
decisivo com o lançamento da integral de Bach, em 19 CDs (selo
Concord). Combinando registros
gravados nos EUA há 20 anos
com gravações num estúdio da
Bulgária, antes do atentado (1985)
e depois (1997), a coleção tem ambições proporcionais à força de
vontade desse pianista pouco festejado em seu próprio país.
Que o pouco reconhecimento se
deva à atuação política -a empresa de Martins foi utilizada por
campanha eleitoral de Paulo Maluf, e o caso ainda está tramitando
na Justiça Eleitoral, por determinação do Supremo Tribunal Federal- é provável, compreensível. Mas a gravação terá força o
bastante, quem sabe, para promover uma escuta mais atenta de
sua arte. Isso não garantiria, necessariamente, uma aceitação
maior: talvez até pelo contrário,
mas João Carlos Martins é um
pianista, no mínimo, diferente
dos outros, e sua interpretação
serve para sublinhar diferenças
desses outros, o que não é pouco.
Numa entrevista à revista "Bravo!" há alguns meses, ele falava
em tons reverenciais da música de
Bach e explicava sua teoria de um
ponto-chave a ser descoberto em
cada obra, definido pelas proporções áureas (aproximadamente:
2,3,5,8,13, 21 etc.). Rigores matemáticos, e suas conotações simbólicas e teológicas, são clichê da
musicologia bachiana. Mas a interpretação de Martins é muito
mais livre do que isso sugere.
A liberdade aproxima-se da arbitrariedade, por outro lado, na
escolha do tempo ou no tratamento da dinâmica. Veja-se a ária
das "Variações Goldberg", que
Martins transforma num grande
"crescendo", até o final em acordes retumbantes. A mesma idéia
rege sua versão do Prelúdio da
"Partita" nº 1; e em ambos os casos vai contra as convenções de
interpretação barroca.
Isso não é, a priori, nem bom
nem ruim. Pode ser instrutivo
comparar, por exemplo, a gravação de Martins com a nova integral das "Partitas" pela cravista
Maria Lúcia Nogueira (Eldorado). Nogueira toca tudo com
enorme cuidado: estudou a música com afinco de especialista, e
não há uma nota aí que não seja
pensada. Mas o resultado se ressente da falta de audácia. Tudo o
que em Martins é aberração e excesso, em Nogueira tende a pecar
pela neutralidade.
Ninguém pode reclamar de
uma gravação tão correta; é uma
antologia que vale a pena ter na
estante, como instrumento de
comparação, que seja. Mas dificilmente será a gravação de cabeceira de alguém, ao contrário da de
Martins, que deve encontrar ouvidos receptivos à sua paixão e
seu delírio.
Nesse contexto, cabe lembrar as
interpretações do grande pianista
austríaco Edwin Fischer (1886-1960), integrando a coleção
"Great Pianists of the 20th Century" (Philips). Professor de Alfred Brendel, entre outros, ele foi
o primeiro pianista a gravar uma
integral do "Cravo Bem Temperado", na década de 30. Um número representativo desses prelúdios e fugas, além de fantasias e
concertos, foram restaurados no
CD duplo e confirmam a mitologia de Fischer, como intérprete
original dessa música que passou
por tanta originalidade.
Chama a atenção, para além dos
pianíssimos lendários e das intervenções autorais na partitura
(baixos dobrados, trocas de registro), uma presença temporal que
tem a autoridade das coisas mais
naturais. Mesmo quando a música se desacelera lentamente, ao final de várias peças, esse gesto
(que vem da música dos compositores românticos, bem posteriores a Bach) incorpora-se ao contraponto barroco de modo muito
menos extravagante do que seria
de imaginar.
Tudo somado, Fischer é um intérprete modesto frente à música;
e as enormidades da música são
pequenas para as enormidades
intimadas por ela e reverenciadas
por Bach, em tons que a interpretação de Fischer torna impossível
desprezar.
Outra forma de reverência pela
própria música de Bach talvez explique o que há de mais vulnerável nas leituras de João Carlos
Martins. Ela se traduz numa expressão do tempo que quer, justamente, fazer soar a música das esferas em cada compasso. O resultado tende a uma música de efeito, mais do que de substância.
Uma continuação possível para
o pastiche de Henry James seria a
constatação penosa de que toda a
genialidade do pianista só o compeliu, afinal, a tomar a via errada,
o lado errado da música, em cada
caso. Uma espécie de genialidade
às avessas ou avesso exuberante
da arte. Outra faria de seus ouvintes uma platéia de surdos, sem generosidade ou gênio para escutar
a revelação. Cada um, no fundo,
terá de escrever a conclusão da
história por si. O que fazer do
Bach de João Carlos Martins?
Oxalá as respostas fossem tão instigantes quanto essas gravações,
que bem ou mal nos obrigam a
definir o Bach de cada um de nós.
Coleção: J.S. Bach - Obras Completas
para Teclado (19 CDs)
Intérprete: João Carlos Martins, piano
Gravadora:Concord
Quanto: R$ 35,50 (CD simples); R$ 55
(CD duplo)
Avaliação:
Coleção: Seis Partitas (3 CDs)
Intérprete: Maria Lúcia Nogueira, cravo
Gravadora: Eldorado
Quanto: R$ 20, em média
Avaliação:
Coleção: Great Pianists of the 20th
Century
Destaque: Prelúdios e Fugas, Fantasia
Cromática e outras peças
Gravadora: Philips
Intérprete: Edwin Fischer, piano
Quanto: R$ 59 (cada pacote de dois CDs)
Avaliação:
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