São Paulo, Sábado, 18 de Dezembro de 1999


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MÚSICA ERUDITA
As formas diferentes de olhar para Bach

ARTHUR NESTROVSKI
da Equipe de Articulistas


Idéia para um conto à Henry James: um jovem pianista brasileiro atinge a fama tocando "O Cravo Bem Temperado" em concertos nos EUA. Sofre um acidente num jogo de futebol, que o deixa afastado do instrumento. Retorna aos palcos depois de anos de esforço e se põe a reconstruir a carreira.
A música de Bach permanece um destino e um desafio. Assaltado na Bulgária, leva uma pancada que o deixa novamente longe do piano. E mais uma vez, com dedicação única, ensina o cérebro a comandar os dedos, a ponto de completar a gravação integral das obras para teclado de Bach.
A gravação fica pronta. O pianista, chegando aos 60 anos, não tem dúvida do próprio talento; mas a crítica se divide. As extravagâncias do intérprete podem ser uma expressão de genialidade, mas talvez não passem de uma coleção de equívocos. O final da história só pode deixar o juízo em aberto. Escrita por James, essa seria uma alegoria da vocação do artista, correndo sempre riscos na avaliação de si mesmo, e uma fábula a ser lembrada por todo ouvinte e crítico, correndo sempre riscos na avaliação dos outros.
Em linhas gerais, a história resume a carreira de João Carlos Martins, que chega a um ponto decisivo com o lançamento da integral de Bach, em 19 CDs (selo Concord). Combinando registros gravados nos EUA há 20 anos com gravações num estúdio da Bulgária, antes do atentado (1985) e depois (1997), a coleção tem ambições proporcionais à força de vontade desse pianista pouco festejado em seu próprio país.
Que o pouco reconhecimento se deva à atuação política -a empresa de Martins foi utilizada por campanha eleitoral de Paulo Maluf, e o caso ainda está tramitando na Justiça Eleitoral, por determinação do Supremo Tribunal Federal- é provável, compreensível. Mas a gravação terá força o bastante, quem sabe, para promover uma escuta mais atenta de sua arte. Isso não garantiria, necessariamente, uma aceitação maior: talvez até pelo contrário, mas João Carlos Martins é um pianista, no mínimo, diferente dos outros, e sua interpretação serve para sublinhar diferenças desses outros, o que não é pouco.
Numa entrevista à revista "Bravo!" há alguns meses, ele falava em tons reverenciais da música de Bach e explicava sua teoria de um ponto-chave a ser descoberto em cada obra, definido pelas proporções áureas (aproximadamente: 2,3,5,8,13, 21 etc.). Rigores matemáticos, e suas conotações simbólicas e teológicas, são clichê da musicologia bachiana. Mas a interpretação de Martins é muito mais livre do que isso sugere.
A liberdade aproxima-se da arbitrariedade, por outro lado, na escolha do tempo ou no tratamento da dinâmica. Veja-se a ária das "Variações Goldberg", que Martins transforma num grande "crescendo", até o final em acordes retumbantes. A mesma idéia rege sua versão do Prelúdio da "Partita" nº 1; e em ambos os casos vai contra as convenções de interpretação barroca.
Isso não é, a priori, nem bom nem ruim. Pode ser instrutivo comparar, por exemplo, a gravação de Martins com a nova integral das "Partitas" pela cravista Maria Lúcia Nogueira (Eldorado). Nogueira toca tudo com enorme cuidado: estudou a música com afinco de especialista, e não há uma nota aí que não seja pensada. Mas o resultado se ressente da falta de audácia. Tudo o que em Martins é aberração e excesso, em Nogueira tende a pecar pela neutralidade.
Ninguém pode reclamar de uma gravação tão correta; é uma antologia que vale a pena ter na estante, como instrumento de comparação, que seja. Mas dificilmente será a gravação de cabeceira de alguém, ao contrário da de Martins, que deve encontrar ouvidos receptivos à sua paixão e seu delírio.
Nesse contexto, cabe lembrar as interpretações do grande pianista austríaco Edwin Fischer (1886-1960), integrando a coleção "Great Pianists of the 20th Century" (Philips). Professor de Alfred Brendel, entre outros, ele foi o primeiro pianista a gravar uma integral do "Cravo Bem Temperado", na década de 30. Um número representativo desses prelúdios e fugas, além de fantasias e concertos, foram restaurados no CD duplo e confirmam a mitologia de Fischer, como intérprete original dessa música que passou por tanta originalidade.
Chama a atenção, para além dos pianíssimos lendários e das intervenções autorais na partitura (baixos dobrados, trocas de registro), uma presença temporal que tem a autoridade das coisas mais naturais. Mesmo quando a música se desacelera lentamente, ao final de várias peças, esse gesto (que vem da música dos compositores românticos, bem posteriores a Bach) incorpora-se ao contraponto barroco de modo muito menos extravagante do que seria de imaginar.
Tudo somado, Fischer é um intérprete modesto frente à música; e as enormidades da música são pequenas para as enormidades intimadas por ela e reverenciadas por Bach, em tons que a interpretação de Fischer torna impossível desprezar.
Outra forma de reverência pela própria música de Bach talvez explique o que há de mais vulnerável nas leituras de João Carlos Martins. Ela se traduz numa expressão do tempo que quer, justamente, fazer soar a música das esferas em cada compasso. O resultado tende a uma música de efeito, mais do que de substância.
Uma continuação possível para o pastiche de Henry James seria a constatação penosa de que toda a genialidade do pianista só o compeliu, afinal, a tomar a via errada, o lado errado da música, em cada caso. Uma espécie de genialidade às avessas ou avesso exuberante da arte. Outra faria de seus ouvintes uma platéia de surdos, sem generosidade ou gênio para escutar a revelação. Cada um, no fundo, terá de escrever a conclusão da história por si. O que fazer do Bach de João Carlos Martins? Oxalá as respostas fossem tão instigantes quanto essas gravações, que bem ou mal nos obrigam a definir o Bach de cada um de nós.



Coleção: J.S. Bach - Obras Completas para Teclado (19 CDs) Intérprete: João Carlos Martins, piano Gravadora:Concord
Quanto: R$ 35,50 (CD simples); R$ 55 (CD duplo)


Avaliação:    

Coleção: Seis Partitas (3 CDs) Intérprete: Maria Lúcia Nogueira, cravo Gravadora: Eldorado Quanto: R$ 20, em média
Avaliação:    

Coleção: Great Pianists of the 20th Century Destaque: Prelúdios e Fugas, Fantasia Cromática e outras peças Gravadora: Philips Intérprete: Edwin Fischer, piano Quanto: R$ 59 (cada pacote de dois CDs)

Avaliação:     

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